No meu tempo de miúdo — que me vai ficando já na recordação delido e
indistinto como um sonho — o bombeiro desfrutava de um aliciante
prestígio, que lhe conferia as auras e a dignidade de modelo para as
nossas infantis tendências de macaqueação.
Estou em crer que a
pequenada de agora, com as atenções absorventemente suscitadas pelos
ases, as proezas e os pleitos desportivos, se suporia amesquinhada com a
mera hipótese de lhe apontarem como praticável o nosso entretém
anacrónico de «brincar aos bombeiros». Mas aqui há umas quatro décadas
de anos, na época pré-civilizada em que os relatos radiofónicos não
ocorreriam a uma imaginação divinatória tão fértil como a de um Júlio
Verne, a bola de câmara de ar era quase tão inacessível como hoje o
planeta Marte, e os brios nacionais ainda se arrastavam na triste
indigência de não poderem enfeitar-se com os louros dos triunfos
futebolísticos e quejandos.
Então, a petizada, a
par de uns jogositos inglórios e sensaborões, de alguma tropelia
ingénua, de qualquer aventuras a incursão em despique com a do bairro
vizinho, aplicava a sua tineta de imitar os adultos e a irreprimível
necessidade de agitar-se no arremedo desses homens generosos que, sem
outro prémio além de servir o semelhante, arriscavam o sossego e a vida,
e tinham o ânimo forte, a destreza atlética, o garbo inalterável e a
olímpica indiferença pelos riscos mais inquietantes.
Com capacetes de
papelão e machadas toscas de madeira, insígnias recortadas em papel de
cor que a cola de sapateiro mal fazia aderir às blusas das horas de
folguedo, ser «bombeiro» constituía um prazer e um orgulho.
Sem dúvida a impoluta
farda de gala; o reluzente capacete metálico; as paradas e cortejos
cívicos onde ao bombeiro se conferiam primazias de evidência; as
inverosímeis agulhetas que esguichavam água até aos telhados das casas
mais altas; as escadas articuladas com uma presteza insuperável; a
capacidade acrobática dos participantes nos simulacros; os apitos dos
comandantes, imperativos e milagreiros como uma varinha mágica que tudo
movesse com disciplinada exactidão, exerciam uma forte influência na
miudagem.
Mas, mais fundo e
mais alto que as exterioridades impressionava o fervor que animava os
homens à acção filantrópica; a abnegação individual diluída no trabalho
de equipa e quase sempre relegada ao anonimato; o impulso de
fraternidade humana, despido de quaisquer laivos de egoísmo, isenta de
toda a sorte de predilecção e lateralidade; o ser o amigo do próprio
inimigo, se adregasse de pender sobre ele a ameaça ou do dano.
Cingíamo-nos,
decerto, ao que estava ao nosso alcance: à canhestra imitação, reduzida
à escala do nosso material de fancaria e da compleição de petimetres com
prosápias de meter lanças em Africa. Mas, para o resto, laborava em voos
de águia a fantasia desfrenada e a inesgotável capacidade de sonhar e de
crer nos sonhos como nas realidades mais autênticas.
Apagar o fogo
convencionado, dominar labaredas imaginárias, arrancar ao suposto
braseiro algum camarada, subalterno e submisso, a
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cometido o papel de entrevado, eram, ao fim, os nossos altos propósitos
de humanitarismo platónico.
O que nos
incentivava, o que incendia os nossos entusiasmos juvenis era a
cintilação daquela «chama»que conduz a apagar as chamas, aquele arder no
amor do próximo que traz a satisfação no esforço oferecido e torna a dor
alheia mais merecedora. que a própria.
E, se tudo restava no
âmbito da brincadeira improfícua, havia, por detrás da aparência
insignificante, uma expansão do sentimento, um propósito puro de
revestir a traquinice de um sentido que a sobrelevasse.
Assim fui «bombeiro»,
e dessa missão me reformei, ainda de calções. Bons tempos, os dos
calções! Despi com eles inúmeras quimeras — que o fato de homem tolhe a
gente para toda a vida...
Demiti-me de
«bombeiro», e quantas coisas mais que desejaria ser! Ficou-me, todavia,
mais consciente, embora inoperante, a tenaz admiração por esse
voluntariado de bem-fazer; a viva gratidão pela vigília em que
permanentemente se coloca para acudir às aflições alheias; o apreço por
essa forma nobilíssima de desinteressado sacrifício, a que não sei
afoitar-me.
Fiquei na convicção
de que exaltar os bombeiros corresponde a preitear uma virtude que é
apanágio de poucos; e, mais do que serviços fruídos, é reconhecer o
mérito de quem dá sem recompensa, e não a pede nem a ambiciona.
Fiquei no dever de
lhes afirmar, em todos os ensejos que se me proporcionem, uma palavra de
louvor e homenagem, se me não é lícito dizer de solidariedade.
Essa palavra
dissaborida lhes trago, de saudade para os mortos, de aplauso e simpatia
para os actuais, de bons desejos para a corporação que devotadamente
serviram ou servem, nesta festiva comemoração do 75.º aniversário da tão
querida e benemérita Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de
Aveiro.
EDUARDO CERQUEIRA |