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Ao fim de vários anos
numa prateleira, ao lado de muitos outros irmãos de palavras escuras,
alinhadas horizontalmente em folhas de papel já amarelecido pelos
anos, fui retirado da verticalidade em que me encontrava pelo meu
actual dono. Tal como todos os meus outros irmãos livros, temos a
virtude da paciência. Ficamos, por vezes, anos e até séculos à
espera de um leitor, sem nada perdermos dos nossos conteúdos; e
sempre disponíveis para quem de nós gostar e for capaz de entender
as palavras que os autores em nós registaram.
De facto, temos a
virtude da paciência. Desde que nos mantenham em local com boas
características de conservação, conseguimos desafiar os tempos e
manter intactos os nossos conteúdos. Quando as condições não são as
melhores, ficamos cobertos de poeira, às vezes esburacados por
pequenos animais que adoram mastigar as nossas folhas e, por vezes
até, chegamos a ficar completamente destruídos e ilegíveis.
Felizmente, não é este o meu caso.
O meu primeiro dono,
quando me adquiriu, lá para os anos de 1913, gostou tanto de mim que
me mandou encadernar. Eu que, inicialmente, apenas possuía uma
vulgar capa de cor castanha, com uma maravilhosa alegoria da
Liberdade feita em gesso por um escultor aveirense da época, o
artista Romão Júnior, fui envolvido por uma capa resistente, de cor
azul-escuro, e muito bem encadernado por um senhor de nome Pereira
Guimarães, dono da Imprensa Universal, dos poucos que em Aveiro já
possuía, na época, telefone, com o número 125. Para me valorizar
mais, dotou-me de uma magnífica lombada em carneira preta, com
letras gravadas a ouro e dois pequenos relevos circulares, cada um
antes e depois do título. Não obstante esta excelente apresentação e
protecção, mesmo assim quem me reconverteu para uma nova forma de
leitura, mais de acordo com as tecnologias do século XXI, fartou-se
de barafustar, queixando-se de que as letras eram demasiado pequenas
e com pouca tinta no momento da impressão, o que, segundo ele,
tornou difícil a leitura de muitas das minhas palavras. E deve ter
sido mesmo difícil. Frequentemente o vi utilizar uma pequena lupa e
barafustar pelo trabalho que lhe deu a reconversão para um formato,
dizia ele, interactivo.
No meu tempo de
juventude, lá para os começos do século XX, não existiam as máquinas
modernas, que o meu «reconversor» chama de computadores; e a palavra
«interactivo» nem sequer era conhecida. Por isso, ao princípio, não
sabia o que ele queria dizer. Mas penso ter descoberto o sentido da
palavra. Segundo me apercebi, por aquilo que ele fez com o meu
material, o «interactivo» é o leitor poder carregar, parece que o
nome actual é «clicar», nas páginas, para que elas reajam e adquiram
uma outra forma de leitura e visualização.
E por causa destas
palavras novas estou com uma certa comichão nas minhas páginas, que
é tanta que chega até às linhas com que os meus cadernos foram
cosidos pelo meu encadernador. Já pedi ajuda a companheiros de
estante, mas eles não foram capazes de me resolver a questão. Será
que não estou a cometer as mesmas asneiras que o compositor da
tipografia onde fui impresso? Será «reconversor» ou «reconvertor»?
Nenhum dos meus companheiros me deu resposta ao problema. Nem sequer
a grande enciclopédia, que foi publicada alguns anos depois de mim e
que até hoje me tem feito companhia, duas prateleiras mais abaixo do
local onde tenho passado os meus anos, a ver entrar e a sair do
escritório o meu actual dono, que me herdou do anterior que em 1913
me comprou numa livraria de Aveiro. Diz-me ela, a enciclopédia,
claro está, que a palavra não existe. Paciência! Se não existe,
passa a existir! Está a dizer-me o meu amigo, que teve a paciência
de conviver comigo durante várias semanas, que me deixe de
reflexões, que a palavra correcta é «reconversor». Diz ele que se
conversor e reconversão existem, também existe «reconversor», que é
aquele que faz a reconversão.
Deixemos as reflexões
metalinguísticas e voltemos ao que estava a
dizer. Falei há pouco em máquinas modernas que não existiam no meu
tempo. Estou agora a lembrar-me
que as máquinas de escrever também não existiam. Aliás, para ser mais
exacto, elas até já existiam no meu tempo. Só que eram um
objecto raro. Tão raro e desconhecido como eram os computadores nas
décadas de 1980 e 1990. Não eram para toda a gente! Por isso, os
originais dos meus textos eram escritos à mão, muitas vezes em
folhas de papel de má qualidade e com uma caligrafia de difícil
leitura. Que o diga o compositor lá na tipografia, que se viu grego
para compreender o que estava escrito e, por isso, e também pela sua
elevada falta de cultura, copiou-me os textos com erros de
palmatória. Como desconhecia muitas palavras, escrevia como lhe
parecia melhor. E, por isso, apareceram no meu texto palavras com
letras a mais. Então, quando eram palavras em língua estrangeira ou
nomes de figurões que ele não conhecia, trocava-lhes as letras. Para
dar só um exemplo, Confúcio virou Confuico. E os nomes em francês,
esses foram uma verdadeira desgraça. Mas disso se irão aperceber
todos os que leiam a minha nova versão, porque quem me reconverteu
decidiu que não alteraria as palavras e faria a transcrição dos
textos com todos os erros resultantes de uma quase total falta de
revisão textual. Bem, estou a fugir um pouco à verdade. Não
relativamente à falta de revisão textual, mas sim ao que disse há
pouco. Houve algumas palavras que o meu «reconversor» se recusou a
grafar erradamente. Estou a lembrar-me de Confúcio, que ele
corrigiu, e de uma ou outra expressão que, de outro modo, ficaria
com sentido pouco claro. Mas foram raros estes casos de correcção.
Praticamente, está quase tudo de acordo com o original.
Não imaginava que, ao
fim de tantos anos, arrumado numa prateleira, as minhas palavras
ainda estavam tão fluentes. Deixemos este entusiasmo de me ver
temporariamente livre
da prateleira e do esquecimento e procuremos dar uma ordem ao
trabalho de apresentação. Quem me reconverteu e me pediu para falar
acerca de mim já está a torcer o nariz, que é como quem diz, a dizer-me que estou com
conversa a mais e que tenho de dar uma certa ordem ao texto. Quer
ele que eu fale um pouco acerca dos meus sucessivos donos; e também
acerca do meu pai, o Dr. Alberto Souto.
Vai ser um trabalho nada
fácil, tanto mais que pouco sei acerca disto e a poeira dos tempos
já me fez esquecer muita coisa. Além do mais, o melhor de mim é o
que está registado nas minhas páginas e que os leitores poderão
descobrir. E, se tiverem o cuidado de fazer uma leitura atenta e
crítica, irão ter algumas surpresas. Estou a lembrar-me, a propósito
disto, da surpresa do meu «reconversor», quando se deparou com as
palavras «carro» e «automóvel». Graças à minha leitura, ele
descobriu que «carro» e «automóvel» não são a mesma coisa, nem mesmo
sinónimos, como as pessoas do século XXI pensam ser. No meu tempo,
lá para os começos do século XX, tudo o que circulava nas nossas
estradas eram carros. Poucas pessoas sabiam o que eram automóveis.
Automóvel era um meio de transporte pouco conhecido e que só alguns
tinham poder económico para possuir. Mas carros eram os transportes
utilizados por toda a gente. Eles eram carros de bois, eles eram
carros de mão, eles eram carros puxados por cavalos e com diferentes
nomes, de acordo com a sua qualidade e objectivo (caleches,
diligências, coches, tipóias, etc.). Mas, automóveis, eram um verdadeiro
fenómeno, uma verdadeira ave rara, não tanto como uma Fénix, mas
quase. Ou seja, «carro» era todo o veículo de tracção animal.
«Automóvel» era a grande invenção da época, isto é, um meio de
transporte que se auto-move graças a um motor, sem necessidade de
ser puxado por um animal, seja ele humano ou não humano. A
propósito, sabem qual é o meio de transporte em que o animal que
puxa vai sentado? Penso que, no século XXI, até deve haver mais do
que um.
Vamos então dar ordem a
este texto e fazer a vontade ao meu «reconversor». Quer ele que eu
fale do meu pai e das pessoas que me possuíram E também, está ele a
lembrar-me, que fale um pouco acerca de mim.
Se eu fosse dizer tudo o
que sei acerca do meu criador, o DR. ALBERTO SOUTO, ficaria aqui
todo o resto do ano a falar só dele. Como no espaço AVEIRO E CULTURA
existem muitos textos da autoria dele, e até textos em que se fala
dele, vou cingir-me a algumas breves notas. Apenas três ou quatro
pontos mais importantes.
− Alberto Souto
nasceu em Aveiro a 23 de Julho de 1888, um ano de acontecimentos
bastante marcantes na História do nosso País. Estou até a
lembrar-me do célebre incêndio no teatro Baquet, no Porto, que deu
imenso que falar em todo o País. Mas isto não é para aqui chamado.
Voltemos ao meu criador. Foram seus pais Manuel Germano Simões e Rufina Amália da Gama Souto.
− Inicialmente
seminarista e encarreirado para a vida eclesiástica, acabou por
mudar de rumo e licenciar-se em Direito.
− Considerado pelas
pessoas do meu tempo como um bom advogado, não foi aqui que ele
adquiriu particular vulto. Ele era uma mente aberta a todas as
coisas da cultura, muito para além da advocacia e da política.
Tirando
o breve espaço de tempo em que, por motivos de saúde, foi obrigado a
ir para a Suíça, para Davos Platz, de onde enviou
diversas fotos da
sua autoria ao amigo Lívio Salgueiro, Alberto Souto ocupou-se das mais diversas áreas do saber:
Arqueologia, Geografia, Arte, Etnografia, História, etc. Para
ficarmos com uma breve ideia da elevada quantidade de artigos sobre
diversas áreas, não há como consultar o índice de autores do
«Arquivo do Distrito de Aveiro», precisamente no mesmo espaço
moderno dedicado a Aveiro e à nossa Cultura − o espaço "Aveiro e
Cultura".
− Como jornalista, é
director do jornal "A Liberdade"; e a ele fiquei a dever a minha
existência, em finais de 1912. A ele e a todos os que colaboraram e
responderam aos seus pedidos estou hoje ainda disponível, embora
acredite que não deverão existir muitos exemplares. E, quase de
certeza, nenhum com a qualidade de conservação com que cheguei a
2018.
− Em 1925 é nomeado
director do Museu Regional, cargo que manteve durante 33 anos.
− Em 1927 é nomeado
Director da Biblioteca Pública.
− Entre 1957 e 1961 a
sua actividade destaca-se como Presidente da Câmara Municipal de
Aveiro.
− Faleceu em 23 de
Outubro de 1961.
Se muito teria a dizer
acerca de Alberto Souto, o mesmo não poderei dizer acerca das
pessoas que foram meus donos. Daquele que me adquiriu por volta de
1913, até possuo alguns conhecimentos. Mas, tal como fiz
relativamente a quem me criou, vou limitar-me ao essencial.
O meu primeiro dono foi
o Dr. António Cristo (ou Christo). E aqui temos mais um nome
para o qual não precisarei de muitas palavras, porque bastará remeter os leitores, mais uma vez, para o espaço "Aveiro e
Cultura", pois também aqui há material relativamente a ele.
Esta família de Cristos,
com H entre o C e o R, é uma das mais antigas de Aveiro. Segundo
creio ter ouvido, teve a sua origem numa figura da região, natural
de Serém, que se terá distinguido na Batalha do Buçaco, durante as
invasões francesas. Foi condecorado como herói e depois colocado
como sacristão nas igrejas de S. Francisco e Santo António, em
Aveiro. E em Aveiro acabou por casar e dar origem a uma família
bastante conhecida dos aveirenses de gema. Registemos aqui os
principais elementos acerca de quem me adquiriu.
−
António de Almeida Silva e Christo nasceu a 3 de Junho de
1904, na freguesia da Glória, em Aveiro.
− Licenciou-se em
Direito em Julho de 1930.
− A sua vida foi pautada
por uma elevada actividade essencialmente de índole cultural, tendo
deixado um vasto espólio bibliográfico, estando talvez ainda
inéditos alguns dos seus trabalhos.
− Faleceu a 16 de
Outubro de 1963.
Para os leitores que
queiram saber mais acerca deste meu primeiro dono e leitor,
remeto-os novamente para o endereço
[http://ww3.aeje.pt/avcultur/hjco/Aderav/Pg002020.htm].
Do meu actual dono,
José Luís Christo, de nome completo José Luís Rebocho de
Albuquerque Christo, posso dizer que é outro dos descendentes do tal
sacristão e herói da Batalha do Buçaco, que nasceu em Aveiro a 18 de
Janeiro de 1936 e que continua, felizmente para ele, de boa saúde,
embora queixando-se do ADN (Afastamento da Data de Nascimento). Mas
este é um problema de que todos os mortais se queixam. Até mesmo eu,
que sou feito de papel e material de impressão, me vejo já com as
letras sumidas e o papel amarelecido. E se pior não estou, devo-o a
quem tão bem me encadernou e tratou.
Falta-me agora, para
satisfazer quem me reconverteu para os formatos modernos de leitura,
falar um pouco acerca de mim.
A primeira grande
diferença entre mim, impresso em papel, e a versão electrónica (aqui
está outra palavra − electrónica − que não existia no meu tempo) tem
a ver com os conteúdos e a maneira de ser lido.
Eu sou constituído por
um total de 232 páginas e não apresento qualquer tipo de índice.
Quem em mim pegar e me quiser conhecer, ou saborear, tem que se
limitar a ir folheando as páginas e a descobrir os conteúdos. Mas
deverá folhear-me com muito cuidado e carinho, para que as
páginas se conservem tal como estão. De outro modo, poderei ficar
irremediavelmente estragado.
Na versão electrónica,
podem folhear-me à vontade, que não haverá o risco de me causarem
danos. Além dos meus conteúdos, existem vários índices,
inexistentes na minha versão impressa, alguns dos quais nem sei bem
para que servem e que me parecem de interesse reduzido. Olha lá, não
querem vocês saber? Está o meu «reconversor» a dizer-me que não diga
disparates, porque todos os índices são úteis. Ele lá saberá. Então,
como dizia, há um Índice Geral de Conteúdos, que apresenta os
conteúdos pela mesma ordem em que se encontram, quando os leitores
folheiam as minhas páginas; um Índice Alfabético de Conteúdos,
que me parece útil, porque, com ele, os meus leitores podem mais
facilmente encontrar o que pretendem; um Índice Alfabético de
Autores e um Índice Onomástico.
É relativamente ao
índice onomástico que me surgem dúvidas quanto à sua utilidade. Pelo
menos, que deu um elevado trabalho, lá isso deu. Não me lembro de,
no meu tempo, os livros apresentarem este tipo de índice. O que era
normal existir, e nem sempre, nos meus tempos de juventude, lá para
os começos do século XX, eram os índices gerais. E mesmo estes não
eram em todas as publicações, muito menos em almanaques como eu. Das
conversas com os meus companheiros de prateleira, sei que alguns
possuem índices, os índices dos capítulos, como, por exemplo, nos
romances. Mas não me lembro de ter encontrado índices onomásticos.
Mas... Está o meu amigo, que andou comigo durante umas semanas de
trabalho, a dizer-me que o índice onomástico permite aos leitores
modernos descobrir nomes referidos na obra, alguns dos quais com
interesse do ponto de vista cultural. Por exemplo, está a dizer-me
que há muitos postais ilustrados de Aveiro que foram editados por
uma casa de Aveiro. E o nome desse editor está precisamente num dos
anúncios, o anúncio à casa Souto Ratolla. E há vários anúncios ao
longo do almanaque, que ajudaram a suportar os custos da edição, que
também constituem marcos para o estudo da História da cidade. E
bastará «clicar» sobre cada um dos nomes, a cor azul, para
imediatamente o leitor ter acesso à página onde se encontra a
referência a fulano ou a sicrano.
Outra grande diferença
entre mim e a versão electrónica reside na maior facilidade de
leitura, porque as páginas reproduzidas em fac-símile podem ser
ampliadas «clicando» sobre elas. Todas as páginas se lêem sem
qualquer dificuldade. Os leitores podem também ir folheando as
páginas, «clicando» nos botões para a «página seguinte» ou para a
«página anterior», tal como se estivessem a manusear a minha versão
impressa. E as imagens, que na minha versão em papel apresentam uma
péssima qualidade, na versão moderna têm melhor apresentação. As
manchas de tinta preta, autênticos borrões de sujidade, foram
removidas. Vê-se muito melhor o que a gravura nos mostra. Só não
é susceptível de poder ser «clicado» um insignificante número de
ilustrações, cuja qualidade e interesse são reduzidos e não merecedores
do trabalho que
eventualmente poderiam dar.
Penso que disse mais
do que o suficiente a meu respeito. Resta-me desejar que o trabalho do
meu «reconversor» não tenha sido em vão e que cada um possa tirar o
melhor proveito e o máximo prazer da minha leitura. Com um pouco
de imaginação, será como viajar numa máquina do tempo e recuar até
aos princípios do século XX. E, mesmo sem dela precisarem, se prestarem atenção ao mapa das
estradas reproduzido, talvez cheguem à conclusão de que
o distrito de Aveiro até nem estava mal servido do ponto de vista
rodoviário, embora as estradas
fossem quase todas de macadame. E aqui está outra palavra, macadame, que
sendo para mim coisa
vulgar, é praticamente desconhecida para maior parte da gente do século XXI.
E o pior é que, mesmo consultando algumas modernas enciclopédias,
continuarão a saber o mesmo, porque as
definições estão longe de corresponder à realidade do meu tempo. Mas isto seriam outras
conversas, que não são para aqui chamadas.
Aveiro, 22 de Setembro de
2018.
Pelo «Almanaque
ilustrado d'
A Liberdade para 1913»
Henrique J. C. de Oliveira |