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farol n.º 28 - mil novecentos e sessenta e oito ♦ sessenta e nove, págs. 23 a 25.

«A Juventude Feminina

na Gesta da Reconquista

Francisco José Paula dos Santos Piçarra
(6.º e)
 

Sabemos pela História que, na Idade Média, duas civilizações se defrontaram, em luta de vida ou de morte: a cristã e a muçulmana. Ora, uma das principais regiões em que a luta era mais encarniçada, situava-se precisamente na Península Ibérica. Portugal procurava então desembaraçar-se do jugo dos Mouros, tentando, por contínuas e valorosas lutas, conquistar território que lhe permitisse tornar-se um país autónomo, livre e soberano.

Mas, para levar a bom termo tão sublime e difícil tarefa, era necessário que nele colaborassem todos os homens válidos e muito especialmente a flor da juventude que, sob a chefia de um rei corajoso, conseguisse levar avante tão arriscada empresa. Assim o «amigo», o jovem enamorado, teria de se ausentar, frequentemente para o serviço militar, e a donzela apaixonada sentia profundamente esta separação. O saudosismo que daí advinha deu ensejo a que muitas das manifestações poéticas do tempo, sobretudo as chamadas «cantigas de amigo», se ocupassem desta temática. Esta modalidade da poesia trovadoresca é, afinal, a expressão dos sentimentos amorosos da donzela enamorada, que conta o que lhe vai na alma, quanto ama o seu (amigo), quanto lhe custa estar separado dele... Estes sentimentos, que a afectavam, eram naturalmente diversos, consoante se tratava da partida, da ausência ou da ansiedade da chegada do ente amado.

Com efeito, o choque sentido no momento da partida para a luta é de dor profunda, que quase lhe arranca um grito, sobretudo se essa partida é inesperada:

           «Como vivo coitada, Madre, por meu amigo
Ca me mandou recado, que se vai no ferido
           E por ele vivo coitada»

           «Como vivo coitada, Madre, por meu amado
Ca me mandou recado, que se vai no fossado
           E por ele vivo coitada»
                                                       (Cancioneiro da Vaticana)

Como se vê, a donzela confessa à sua mãe quanto sofre, porque a partida do «amigo» foi tão repentina que ele nem teve tempo de se despedir, limitando-se a mandar-lhe um recado.
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A luta estendia-se por vezes também ao mar. Este foi muitas vezes campo de batalha entre Portugueses e Mouros. Assim, sabemos que em 1179 o chefe Abu Icaub preparou e enviou ao Tejo uma frota, com a qual os cristãos se tiveram de bater.

Desta forma não será de estranhar que a donzela contemple orgulhosa, embora triste, a partida do seu (amado), que vai lutar por uma causa nobre, isto é, servir EI-Rei de Portugal e alargar o reino de Cristo:

      «As ffroles do meu amigo
briosas uan no nauyo!
      E nã-as [e] as frores
      d'aqui ben cõ meus amores!
      Idas con as frores
      d'aqui bë con meus amores!»

 

      «Briosas uã eno barco
pera chegar a ffossado:
      E uã-ss [e] as frores
      d'aqui ben cõ meus amores!
      Idas son as frores
      d'aqui bë con meus amores!»

                                          (Paay Gomez Charinho)

A realçar esta ideia podemos ainda observar a seguinte «cobra» (cobra=copla):

        «El-rei de Portugale
barcas mandou lavrare
        e lá era nas barcas migo
        mia filha, o voss'amigo»
                        (Joan Zorro)

Vejamos agora o aspecto da ausência do «amigo». A donzela, inquieta pela prolongada ausência do «amigo», confessa a uma amiga os seus receios de que ele possa ter morrido. É o que nos dá a entender D. Dini», nesta sua tão bela composição:

«− Ay amiga, eu ando tã coytada
que sol nõ poss'ë mi tomar prazer,
cuydand'en como sse pode fazer
que nõ é ia comigo tornada,
e, par Deus, por que o nõ ui' aqui,
que é morto gram sospeyta tom' [ i ]
e, sse mort' é, mal dia eu fuy nada.»

É claro que ela deseja ardentemente o seu regresso e esse seu desejo ampara-a na dor. Mas esse sentimento é, por vezes, tão forte, que ela caminha até à praia para dialogar com as ondas e pergunta-lhes pelo «amigo»: / 25 /

        «Ondas do mar de Vigo
se vistes meu amigo!
        E ay Deus, se uerra cedo!»

 

        «Se uistes meu amigo
o por que eu sospiro!
        E ay Deus, se uerra cedo!»

                                                (Martin Codax)

 

Por vezes a donzela está convencida de que o «amado» vem dentro em breve, pois o prazo está a terminar. Mas, passado esse tempo, a esperança tão forte que a animava, não se concretiza e então lamenta-se profundamente, dirigindo-se à sua mãe:

 

           «Vy eu, mha madre, andar
as barcas eno mar,
           e moyro-me d'amor!

 

           E foi-las aguardar,
e nom o pud' achar
           e moyro-me d'amor!

                                 (Nuno Fernandes Torneol)

 

Ontem, como hoje, os sentimentos de quem ama são muito semelhantes entre si. Sofre-se à partida, chora-se de saudade na ausência, que se prolonga bem contra vontade; mas este padecimento é suavizado pela esperança do regresso, que, tarde ou cedo, se concretizará numa grande alegria: o encontro de dois seres que se querem bem!...

Por aqui podemos verificar como através das «cantigas de amigo» podemos conhecer não só alguns aspectos da sociedade medieval, mas também a poderosa influência que eles exerceram sobre as almas enamoradas da juventude.

Ao fim de todas estas considerações uma ideia nos salta à vista: a juventude feminina desempenhou um papel indirecto na gesta da Reconquista, visto que, embora não tenha tomado nela parte activa, o seu espírito delicado e sempre lírico ressentiu-se dessa árdua empresa, pois nela tomaram parte activa os seus «amigos», que a todo o momento podiam sucumbir na luta.

Como nos tempos medievais, também hoje, nesta nova Cruzada que é a luta no nosso Ultramar, a juventude feminina sofre pela partida, pela ausência ou pela expectativa da chegada daqueles entes queridos a quem deram o seu coração e, com ele, a coragem de serem dignos de seus maiores, na defesa do património nacional.

 

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09-06-2018