Ana Maria da Silva
Valente
VAIS partir.
Podes crer que o sinto sinceramente. Esta partida significa o fim de
uma amizade íntima que começava a brotar entre o meu e o teu
coração.
Lembras-te, por exemplo, de quando, sentada perto da janela, com o
livro aberto no regaço, interrompias o estudo e me falavas dos teus problemas particulares, num tom
confidencial que transformava a mais insignificante palavra num
saco de mistérios. Era bom sentir que confiavas em mim, que vias na
minha pessoa uma... – bem, não direi «amiga», porque tenho essa
classificação como o maior elogio que alguém pode fazer a outrem; –
direi antes que vias em mim uma rapariguinha simpática que te
compreendia.
Falavas do teu irmão, dos desgostos que dava aos teus pais, das
lágrimas que a sua rebeldia fazia correr dos olhos da tua mãe.
Disseste-me até, se não me engano, que tiveste que a consolar
várias vezes e que o teu pai sofria também muito, mas em
silêncio, sem testemunhas.
Lembras-te de quando me disseste o nome daquele rapaz teu vizinho
que te fazia corar, sempre que falava contigo? Ri-me de ti,
chamei-te criança, como se eu fosse urna velhota com larga
experiência da vida.
Podes crer que apreciei a confiança que depositaste em mim, que me
senti francamente honrada com as tuas confidências. Vou lembrar-te
com muita saudade, podes crer. E tu?
Lembrar-te-ás de mim?
Ou será que te ofendeste com as minhas brincadeiras?
Não me digas que as tomaste a sério... Tu conheces-me
suficientemente bem para saberes que a vida, para mim, é urna
brincadeira contínua: mesmo nos assuntos mais sérios eu vejo
sempre algo de pitoresco, de aventuroso, de divertido.
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18 /
Preguei-te partidas?
Sim, é verdade, mas
sabes que é próprio. Quando se vive
em comunidade como nós, quatro jovens – quatro autênticos diabretes
– reunidas num quarto... Tem de haver estas partidas da
praxe, compreendes?
Tu vais começar vida nova, vais conhecer outras colegas, mas não
acredito que nos esqueças, que me esqueças.
Sabes? Ao ver-te partir sinto que levas um pouquinho da minha
mocidade, do meu tempo de estudante. Sim, porque tu fizeste parte
desse tempo maravilhoso e, um dia, ao recordá-lo, tu serás um
episódio, um desvio do curso normal do dia a dia.
Com a tua partida esse episódio acaba e nunca tão bem
como agora soube distinguir o fim de uma das pequenas histórias que
compõem a minha vida.
Desculpa teres perdido tempo, por minha causa. Perdoa tudo o que
em mim te tenha desagradado durante estes meses de vida em comum.
Por mim agradeço-te todas as horas agradáveis que me
proporcionaste, quer em conversas amenas, quer em brincadeiras e
risotas.
Só peço a Deus que recordes com tanta saudade como eu te
recordarei e que eu seja na tua vida um episódio agradável.
«Até sempre»: virás fazer-me muitas visitas, não é verdade? Sabes
que espero notícias tuas e que quero ver-te de vez em quando.
«Até nunca mais»: tu não voltarás a ser a companheira, a futura
amiga talvez, que foste até a este momento e que serias se não
tivesses tomado a decisão de partir. |