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farol n.º 20 - mil novecentos e sessenta e cinco ♦ sessenta e seis, págs. 9 a 13.

A Natureza na Poesia Trovadoresca

Cármen Rosa
(6.º - B)
 

A Natureza, como expressão estético-literária (voluntária ou ocasional), surge na nossa literatura desde os seus alvores. Na verdade, logo na poesia lírica do primeiro período medieval, ela está presente.

Mas forçoso é dizer que é sobretudo nas Cantigas de Amigo que a poderemos encontrar, o que, aliás, se explica pelo seu carácter essencialmente popular e rústico. O tema mais tratado era o amor, mas o amor no campo. Por isso os elementos a utilizar não podiam estar longe do âmbito dos conhecimentos campesinos. E quem melhor que a Natureza para falar bem fundo na alma da gente que passa a vida a observá-la, a admirá-la, a amá-la?

Interessa-nos, assim, analisar os diferentes aspectos sob que se nos apresenta a Natureza nas Cantigas de Amigo, o que bastará olhar para a vida sentimental da enamorada nesses tempos recuados. Essencialmente são três esses aspectos: como confidente da donzela, como cenário no qual se desenrola o drama amoroso e até como interveniente nesse mesmo drama.

No primeiro caso, a Natureza aparece representada pelo reino vegetal, pelo reino animal ou ainda pelo mar. A donzela faz deles seus confidentes, confidentes fiéis, que a escutam atentamente.

      Ay flores, ay flores do verde pyno,
Se sabedes novos do meu amigo I
      Ay Deus e hu é?


      Ay flores, Ay flores do verde ramo,
Se sabedes novas do meu amado!
      Ay Deus, e hu é?

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Esta composição, sobejamente conhecida e apreciada, da autoria do Rei D. Dinis, demonstra-nos a predilecção dos trovadores pelas pequenas maravilhas do reino vegetal. São as flores do pinheiro os ouvintes fiéis e atentos ao queixume da jovem enamorada que nada sabe do «amigo» que anda por longes terras.

E as próprias florinhas lhe respondem e a consolam:

      Vós me perguntades polo voss' amigo,
e eu bem vos digo que é san'e vivo;
      Ay Deus, e hu é?


      Vos me perguntades polo voss' amado,
e eu ben vos digo que é viv' e sano;
      Ay Deus, e hu é?

Esta possibilidade imaginária de as plantas falarem (e não só as plantas como também os animais e os seres inanimados) é uma humanização da Natureza. Este artifício é muito utilizado, porque dá um maior interesse à composição, uma maior leveza, que torna a sua leitura mais agradável.

O reino animal tem também vasta intervenção na Poesia Trovadoresca. São os cervos do monte, os estorninhos do avelanado, etc., que a donzela utiliza, ou como confidentes ou então para poder encobrir a sua entrevista com o amigo.

Esta última hipótese ocorre, por exemplo, na seguinte composição da autoria de Pero Meogo:

      – Digades, filha, mha filha velida,
por que tardastes na fontana fria?
      – Os amores ey.

      – Digades, filha, mha filha louçana,
por que tardastes na fria fontana?
      – Os amores ey.

      – Tardei, mha madre, na fõtana fria,
cervos do monte a augua volviã,
      – Os amores ey.

Assim a donzela tenta escapar à reprimenda da mãe pelo atraso provocado pela entrevista com o amigo na fonte.

No entanto a mãe nota que ela tenta iludi-la e ralha-lhe.

Além do reino vegetal e do reino animal o mar tem também o seu papel na Poesia Trovadoresca.

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A donzela, que tem o amigo embarcado no alto mar, dirige-se às ondas a pedir notícias dele.

Martin Codax transmite-nos a ansiedade da jovem enamorada, por exemplo através da composição:

           Ondas do mar de Uigo
se vistes meu amigo!
           E ay Deus, se uerra cedo!

           Ondas do mar levado
se vistes o meu amado!
           E ay Deus, se uerra çedo!


A composição continua ainda neste mesmo ritmo e repetindo sempre a mesma ideia.

Até a própria repetição nos dá ideia do que se passa com a jovem enamorada –ansiedade e receio.

Estas composições, que têm como figura central o mar, têm o nome de barcarolas ou marinhas.

O segundo aspecto, sob o qual a Natureza se nos apresenta, é como cenário, no qual se desenrola o drama amoroso da donzela.

A alvorada no rio, a romaria e a praia são os panos de fundo sobre os quais nos é apresentada a cena.

Mais uma vez D. Dinis nos ajuda a ilustrar estas afirmações com a composição:

Leuantou-ss' a uelida,
leuantou-ss' [a] alua;
e uay lauar Camysas
eno alto.
Uay-las lauar [a] alua.


Leuantou-ss' a louçana,
leuantouss' [a] alua;
e uay lauar delgadas
eno alto.
Uay-las lauar [a] alua.


Não fica por aqui a composição que nos conta depois como se levantou o vento e as camisas fogem à donzela que tem de correr atrás delas.

Nesta composição, cheia de colorido, a graça da donzela é realçada por comparação com a alvura da roupa e com a luminosidade de manhã que desponta.

Ainda dentro do capítulo da Natureza como cenário, podemos apontar mais dois outros aspectos, sob os quais ela se nos apresenta.

O primeiro é a romaria:

Poys nossas madres uam a San Simon
de Ual de Prados candeas queymar,
nos, as meninhas, punhemos d'andar
com nossas madres, e eles enton
               queymen candeas por nos e por sy,
               e nos, meninhas, baylaremos hy.


Esta Cantiga de Amigo, mais particularmente Cantiga de Romaria, da autoria de Pero Viviães, aponta-nos precisamente como centro de todos os acontecimentos a romaria.

Conta-nos como as donzelas vão às romarias, não tanto por devoção como para dançar e para verem os amigos.

O refrão é a parte de composição que melhor nos elucida acerca das intenções das jovens.

O outro aspecto é-nos dado pelo cenário formado pela praia da qual partem as naus dentro das quais naturalmente vai o «amigo» da donzela:

As ffroles do meu amigo
briosas uan no nauyo!

E uã-ss [e] as frores
d'aqui ben cõ meus amores!
Idas som as frores
d'aqui bê con meus amores!

Esta Barcarola de Paay Gómez Charinho mostra-nos precisamente este aspecto da Natureza como cenário. Embora se não faça referência directa à praia, fazem-se no entanto variadas alusões ao barco no qual partirá para o fossado o amigo.

É talvez esta partida para o fossado a razão do misto saudade – orgulho que a donzela nos apresenta na composição.

O amigo ia combater os mouros no seu próprio terreno e isso era evidentemente motivo de orgulho. A saudade claro que existia, devido à separação, que poderia ser prolongada e quem sabe se para sempre.

O terceiro e último aspecto – a Natureza como directo interveniente no drama sentimental – é talvez a faceta na qual a Natureza tem o seu papel mais importante.

Creio mesmo que podemos considerar como principal «figura» do drama que se desenrola, a Natureza.

Sedia-m' eu na ermida de Sã Simhõ
e cercaran-mh as ondas, que grandes son!
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!

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Esta(ua eu) na ermida, ant' o altar,
[e] cercarõ-mh as ondas grandes do mar!
eu atendend' o meu amigo,
eu atendend' o meu amigo!

 

A composição continua com um crescendo de emoção como que a anunciar o fim trágico.

Realmente assim acontece e o factor que condiciona esse crescendo de emoção é a Natureza, representada pelas ondas.

À medida que avançamos na leitura da composição vemos o mar que avança inexoravelmente para a donzela que obcecada com a ideia do regresso do amigo só se dá conta da situação tarde demais.

Por fim, na última estrofe, assistimos à morte da jovem que quase insensivelmente se deixa arrebatar pelas vagas que a rodeiam.

A obcecação que faz a donzela abstrair-se de tudo o que a rodeia é-nos traduzida pelo refrão ao longo da poesia.

Tivemos, pois, oportunidade, de verificar como a Natureza influenciou por vezes os nossos poetas na composição das suas obras líricas, desde o Primeiro Período Medieval.

Não há dúvida que estas intervenções da Natureza fazem das poesias formosas aguarelas cheias de leveza, nas quais ressaltam profusamente a cor, o som e o movimento.

 

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08-06-2018