Cármen Rosa
(6.º - B)
A Natureza, como
expressão estético-literária (voluntária ou ocasional), surge na nossa literatura
desde os seus alvores. Na verdade, logo na poesia lírica do primeiro período
medieval, ela está presente.
Mas forçoso é dizer que é sobretudo nas Cantigas de Amigo que
a
poderemos encontrar, o que, aliás, se explica pelo seu carácter
essencialmente popular e rústico. O
tema mais tratado era o amor, mas o amor no campo. Por isso os elementos
a utilizar não podiam estar longe do âmbito dos conhecimentos
campesinos. E quem melhor que a Natureza
para falar bem fundo na alma da gente que passa a vida a observá-la,
a admirá-la, a amá-la?
Interessa-nos, assim,
analisar os diferentes aspectos sob que se nos apresenta a Natureza
nas Cantigas de Amigo,
o que bastará olhar para a vida sentimental da enamorada nesses tempos
recuados. Essencialmente são
três esses aspectos: como confidente da donzela, como cenário no
qual se desenrola o drama amoroso e até como interveniente nesse
mesmo drama.
No primeiro caso, a Natureza
aparece representada pelo reino
vegetal, pelo reino animal ou ainda pelo mar. A donzela faz deles
seus confidentes, confidentes fiéis, que a escutam atentamente.
Ay flores, ay flores do verde pyno,
Se sabedes novos do meu amigo I
Ay Deus e hu é?
Ay flores, Ay flores do verde ramo,
Se sabedes novas do meu amado!
Ay Deus, e hu é?
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Esta composição, sobejamente conhecida e apreciada, da autoria do
Rei D. Dinis, demonstra-nos a predilecção dos trovadores pelas pequenas maravilhas do reino vegetal. São
as flores do pinheiro os ouvintes fiéis e atentos ao queixume da jovem enamorada que nada sabe
do «amigo» que anda por longes terras.
E as próprias florinhas lhe respondem e
a consolam:
Vós me perguntades polo voss' amigo,
e eu bem vos digo que é san'e vivo;
Ay Deus, e hu é?
Vos me perguntades polo voss' amado,
e eu ben vos digo que é viv' e sano;
Ay Deus, e hu é?
Esta possibilidade imaginária de
as plantas falarem (e não só as plantas como também os animais e os seres inanimados) é
uma
humanização da Natureza. Este artifício é muito utilizado, porque dá
um
maior interesse à composição, uma maior leveza, que torna a sua leitura mais
agradável.
O reino animal tem também vasta
intervenção na Poesia Trovadoresca. São os cervos do monte, os estorninhos do avelanado,
etc., que a donzela utiliza, ou como confidentes ou então
para poder encobrir a sua entrevista com
o amigo.
Esta última hipótese ocorre, por exemplo, na seguinte composição da
autoria de Pero Meogo:
– Digades, filha, mha filha velida,
por que tardastes na fontana fria?
– Os amores ey.
– Digades, filha, mha filha louçana,
por que tardastes na fria fontana?
– Os amores ey.
– Tardei, mha madre, na fõtana fria,
cervos do monte a augua volviã,
– Os amores ey.
Assim a donzela tenta escapar à
reprimenda da mãe pelo atraso
provocado pela entrevista com o amigo na fonte.
No entanto a mãe nota
que ela tenta iludi-la e ralha-lhe.
Além do reino vegetal e do reino
animal o mar tem também o seu papel na Poesia Trovadoresca.
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A donzela, que tem o amigo embarcado no alto mar, dirige-se às
ondas a pedir notícias dele.
Martin Codax transmite-nos
a ansiedade da jovem enamorada, por
exemplo através da composição:
Ondas do mar de Uigo
se vistes meu amigo!
E ay Deus, se uerra cedo!
Ondas do mar levado
se vistes o meu amado!
E ay Deus, se uerra çedo!
A composição continua ainda neste mesmo ritmo e repetindo sempre
a mesma ideia.
Até a própria repetição nos dá ideia do que se passa com
a jovem
enamorada –ansiedade e receio.
Estas composições, que
têm como figura central o mar, têm o nome de
barcarolas ou marinhas.
O segundo aspecto, sob o
qual a Natureza se nos apresenta, é como cenário, no qual se
desenrola o drama amoroso da donzela.
A alvorada no rio, a romaria
e a praia são os panos de fundo
sobre os quais nos é apresentada a cena.
Mais uma vez D. Dinis nos
ajuda a ilustrar estas afirmações com a
composição:
Leuantou-ss' a uelida,
leuantou-ss' [a] alua;
e uay lauar Camysas
eno alto.
Uay-las lauar [a] alua.
Leuantou-ss' a louçana,
leuantouss' [a] alua;
e uay lauar delgadas
eno alto.
Uay-las lauar [a] alua.
Não fica por aqui a composição que nos conta depois como se levantou o vento e
as camisas
fogem à donzela que tem de correr atrás delas.
Nesta composição, cheia de colorido,
a graça da donzela é realçada
por comparação com a alvura da roupa e com a luminosidade de manhã que desponta.
Ainda dentro do capítulo da Natureza como cenário, podemos
apontar
mais dois outros aspectos, sob os quais ela se nos apresenta.
O primeiro é a romaria:
Poys nossas madres uam a San Simon
de Ual de Prados candeas queymar,
nos, as meninhas, punhemos d'andar
com nossas madres, e eles enton
queymen candeas por nos e por sy,
e nos, meninhas, baylaremos hy.
Esta Cantiga de Amigo, mais particularmente Cantiga de Romaria, da
autoria de Pero Viviães, aponta-nos precisamente como centro de
todos os acontecimentos a romaria.
Conta-nos como as donzelas vão às romarias, não tanto por devoção
como para dançar e para verem os amigos.
O refrão é a parte de composição que melhor nos elucida
acerca
das intenções das jovens.
O outro aspecto é-nos dado pelo cenário formado pela praia da qual
partem as naus dentro das quais naturalmente vai o «amigo» da donzela:
As ffroles do meu amigo
briosas uan no nauyo!
E uã-ss [e] as frores
d'aqui ben cõ meus amores!
Idas som as frores
d'aqui bê con meus amores!
Esta Barcarola de Paay Gómez Charinho mostra-nos precisamente
este aspecto da Natureza como cenário. Embora
se não faça referência directa à praia, fazem-se no entanto variadas
alusões ao barco no qual partirá para o fossado o amigo.
É talvez esta partida
para
o fossado a razão do misto
saudade – orgulho que a donzela nos apresenta na composição.
O amigo ia combater os
mouros no seu próprio terreno e isso era evidentemente motivo de orgulho. A saudade
claro que existia, devido à separação, que poderia ser prolongada e
quem sabe se para sempre.
O terceiro e último
aspecto – a Natureza como directo interveniente no drama sentimental
– é talvez a faceta na qual a Natureza tem o seu papel mais importante.
Creio mesmo que podemos considerar como principal «figura» do drama que se desenrola, a Natureza.
Sedia-m' eu na ermida de Sã Simhõ
e cercaran-mh as ondas, que grandes son!
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!
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Esta(ua eu) na ermida,
ant' o altar,
[e] cercarõ-mh as ondas grandes do mar!
eu atendend' o meu amigo,
eu atendend' o meu amigo!
A composição continua
com um crescendo de emoção como que a anunciar o fim trágico.
Realmente assim acontece e o factor que condiciona
esse crescendo de emoção é a Natureza, representada pelas ondas.
À medida que avançamos
na leitura da composição vemos o mar que
avança inexoravelmente para a donzela que obcecada com a ideia do
regresso do amigo só se dá conta da situação tarde demais.
Por fim, na última estrofe,
assistimos à morte da jovem que quase insensivelmente se deixa
arrebatar pelas vagas que a rodeiam.
A obcecação que faz a
donzela abstrair-se de tudo o que a rodeia
é-nos traduzida pelo refrão ao longo da poesia.
Tivemos, pois, oportunidade, de verificar
como a Natureza
influenciou por vezes os
nossos poetas na composição das suas obras líricas, desde o Primeiro
Período Medieval.
Não há dúvida que estas
intervenções da Natureza fazem das poesias
formosas aguarelas cheias de leveza, nas quais ressaltam
profusamente a cor, o som e o movimento. |