Alípio Baptista
(7.º ano)
EMBORA ainda
hoje não se conheça a cura para certas doenças,
o certo é que a medicina fez bastantes progressos nos últimos anos, para tanto contribuindo o perfeito conhecimento da
anatomia do corpo humano. No entanto, para se atingir esse conhecimento, os anatomistas tiveram de lutar contra obstáculos
materiais, leis e preconceitos religiosos, visto esta ciência necessitar
de cadáveres humanos para as suas experiências. Mas muitas vezes as
leis que dificultavam ou se opunham à obtenção do material
necessário foram estímulos ao crime.
A anatomia teve o seu maior impulso no século XIX e as escolas de
dissecação necessitavam de muitos corpos humanos o que levou a um
estado de coisas depois designado por «Drama da Anatomia». Vigorava na Inglaterra uma lei pela qual apenas podiam se entregues às
Escolas de Anatomia os cadáveres dos assassinos executados. Esta disposição
suscitou uma grande resistência, que algumas vezes chegou ao motim, por
o esquartejamento legalizado de um corpo causar repugnância, ainda que
fosse o de um assassino. Os amigos dos criminosos executados
chegavam a praticar violências contra os médicos que intervinham na
dissecação do
cadáveres e os próprios condenados atormentavam-se mais com a ideia
de serem entregues aos cirurgiões do que com a forca.
Mas era necessário descobrir os segredos do corpo humano para
benefício da humanidade e assim os professores ingleses continuaram a
sua
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heróica missão apesar da atmosfera de terror e ódio de que se
encontravam
rodeados. O número de alunos aumentava sem cessar; não havia
material
suficiente para todos com os enforcados por assassínio.
Surgiram então os ladrões de cadáveres que dedicavam a espiar os
enterros, assinalar o lugar, voltar à noite a desenterrar o cadáver
e vendê-lo à escola de Anatomia. A família dos recém-enterrados guardava
os
túmulos armada para qualquer eventualidade e utilizavam-se caixões
de aço
com fechaduras complicadas como as dos cofres dos bancos ou até
verdadeiras caixas de segurança rodeando o túmulo de barras de
ferro
numa tentativa de evitar a sua violação. Mas estas preocupações não
fizeram mais que aumentar o preço dos cadáveres. Os anatomistas sofreram
também as consequências: nem sempre os corpos eram bastantes frescos
e muitos professores faleceram vítimas de infecções provocadas pela
putrefacção.
Mais horrorosos, no entanto, foram os crimes cometidos por dois
assassinos que actuavam em conjunto, para fornecer cadáveres ao
doutor
Knox, sábio anatomista da Faculdade de Medicina de Edimburgo que
lhos
pagava, decrescendo a tarifa dos corpos jovens aos velhos, que
interessavam muito menos. Para cometê-los tiveram de imaginar uma técnica, a
fim
de que o morto aparentasse ter morrido de morte natural; de outro
modo o doutor Knox não o admitiria. O processo consistia em utilizar
uma careta
de pano cheia de pez que, colocada no rosto de um transeunte
solitário,
sufocava ao mesmo tempo os gritos e a respiração.
Deste modo mais de vinte pessoas pereceram entre as quais uma
jovem de dezoito anos. Ante o seu cadáver, o doutor Knox ficou de
tal
modo extasiado pela beleza das suas formas que chamou um artista
para
que imortalizasse as linhas do seu rosto e do seu corpo, e, não se
decidindo a entregar este aos bisturis dos praticantes, conservou-o
durante
vários meses em «whisky».
A sociedade dos dois
assassinos acabou por desfazer-se, devido a
desavenças entre os sócios que caíram sob a alçada da Justiça.
Apesar
de ambos declararem que o doutor Knox ignorava os seus crimes, a
multidão enfurecida assaltou-lhe a casa, mas ele conseguiu sair
disfarçado,
gritando contra ele próprio. Teve, no entanto, de abandonar a
Faculdade
de Medicina, morrendo na miséria apesar de ter sido um dos grandes
médicos e cientistas ingleses.
Não terminou, porém, o drama da Anatomia. Ainda se registaram
mais condenações à morte por assassínios com o fim de vender
cadáveres
até 1832, ano em que o Parlamento aprovou uma lei que permitia as
práticas anatómicas. |