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farol n.º 16 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 13 e 14.

Falando sobre...

O Drama da Anatomia

Alípio Baptista
(7.º ano)
 

EMBORA ainda hoje não se conheça a cura para certas doenças, o certo é que a medicina fez bastantes progressos nos últimos anos, para tanto contribuindo o perfeito conhecimento da anatomia do corpo humano. No entanto, para se atingir esse conhecimento, os anatomistas tiveram de lutar contra obstáculos materiais, leis e preconceitos religiosos, visto esta ciência necessitar de cadáveres humanos para as suas experiências. Mas muitas vezes as leis que dificultavam ou se opunham à obtenção do material necessário foram estímulos ao crime.

A anatomia teve o seu maior impulso no século XIX e as escolas de dissecação necessitavam de muitos corpos humanos o que levou a um estado de coisas depois designado por «Drama da Anatomia». Vigorava na Inglaterra uma lei pela qual apenas podiam se entregues às Escolas de Anatomia os cadáveres dos assassinos executados. Esta disposição suscitou uma grande resistência, que algumas vezes chegou ao motim, por o esquartejamento legalizado de um corpo causar repugnância, ainda que fosse o de um assassino. Os amigos dos criminosos executados chegavam a praticar violências contra os médicos que intervinham na dissecação do cadáveres e os próprios condenados atormentavam-se mais com a ideia de serem entregues aos cirurgiões do que com a forca.

Mas era necessário descobrir os segredos do corpo humano para benefício da humanidade e assim os professores ingleses continuaram a sua / 14 / heróica missão apesar da atmosfera de terror e ódio de que se encontravam rodeados. O número de alunos aumentava sem cessar; não havia material suficiente para todos com os enforcados por assassínio.

Surgiram então os ladrões de cadáveres que dedicavam a espiar os enterros, assinalar o lugar, voltar à noite a desenterrar o cadáver e vendê-lo à escola de Anatomia. A família dos recém-enterrados guardava os túmulos armada para qualquer eventualidade e utilizavam-se caixões de aço com fechaduras complicadas como as dos cofres dos bancos ou até verdadeiras caixas de segurança rodeando o túmulo de barras de ferro numa tentativa de evitar a sua violação. Mas estas preocupações não fizeram mais que aumentar o preço dos cadáveres. Os anatomistas sofreram também as consequências: nem sempre os corpos eram bastantes frescos e muitos professores faleceram vítimas de infecções provocadas pela putrefacção.

Mais horrorosos, no entanto, foram os crimes cometidos por dois assassinos que actuavam em conjunto, para fornecer cadáveres ao doutor Knox, sábio anatomista da Faculdade de Medicina de Edimburgo que lhos pagava, decrescendo a tarifa dos corpos jovens aos velhos, que interessavam muito menos. Para cometê-los tiveram de imaginar uma técnica, a fim de que o morto aparentasse ter morrido de morte natural; de outro modo o doutor Knox não o admitiria. O processo consistia em utilizar uma careta de pano cheia de pez que, colocada no rosto de um transeunte solitário, sufocava ao mesmo tempo os gritos e a respiração.

Deste modo mais de vinte pessoas pereceram entre as quais uma jovem de dezoito anos. Ante o seu cadáver, o doutor Knox ficou de tal modo extasiado pela beleza das suas formas que chamou um artista para que imortalizasse as linhas do seu rosto e do seu corpo, e, não se decidindo a entregar este aos bisturis dos praticantes, conservou-o durante vários meses em «whisky».

A sociedade dos dois assassinos acabou por desfazer-se, devido a desavenças entre os sócios que caíram sob a alçada da Justiça. Apesar de ambos declararem que o doutor Knox ignorava os seus crimes, a multidão enfurecida assaltou-lhe a casa, mas ele conseguiu sair disfarçado, gritando contra ele próprio. Teve, no entanto, de abandonar a Faculdade de Medicina, morrendo na miséria apesar de ter sido um dos grandes médicos e cientistas ingleses.

Não terminou, porém, o drama da Anatomia. Ainda se registaram mais condenações à morte por assassínios com o fim de vender cadáveres até 1832, ano em que o Parlamento aprovou uma lei que permitia as práticas anatómicas.

 

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08-06-2018