Nesta monótona, mas sempre emocionante
passagem das horas e dos dias, há momentos que a acção do tempo não
consegue apagar. São esses momentos que constituem a alegria ou a tristeza do passado e mesmo
do presente. Assim, num esforço de memória, trouxe à zona clara da
consciência uma passagem da minha vida ainda bastante recente: a
minha visita a Moçambique.
Ainda não convencido daquela realidade, que para mim parecia um
sonho, encontrei-me numa das parcelas da África Portuguesa, mundo
que para alguns portugueses se resume a uma tela mais ou menos
colorida com uma cubata, uma palmeira, alguns indígenas e pouco
mais. Não! A África Portuguesa, e neste caso especial Moçambique, é
formada por regiões em pleno progresso e por uma população animada
do desejo de fazer mais e melhor. Este desejo, comum aos brancos e
negros, é fruto da confraternização social, onde a cor é um factor
secundário; todos, acima de tudo, são homens.
Desde a cosmopolita Lourenço Marques até à ilha de Moçambique ou
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nós, constituíam a revelação dum mundo que nunca sonháramos.
Habituados à estreiteza territorial em que vivíamos, sentimo-nos
amarfanhados pela grandeza do território Português. Nós só vemos a
grandeza do nosso Ultramar, estando nele e olhando para a Metrópole.
Então, meditando um pouco, não compreendemos como um
«naco» de território situado no Ocidente da Península consegue
sustentar o nosso portentoso Ultramar. Talvez o consigamos
compreender, se virmos a fé, a força e a determinação dos
Portugueses que, embora com muito sacrifício, conseguem manter
arvorada nestes territórios a Bandeira Nacional.
Em Moçambique vi muita coisa. Podia ter visto mais, mas aquilo que
observei bastou-me para avaliar o grau de progresso em que se
encontra a Província. Rasgam-se estradas, erguem-se fábricas,
cultivam-se campos, missiona-se, educa-se, enfim, luta-se para
construir um Portugal maior. Só quem
vê é que pode avaliar bem o estado actual de Moçambique. No entanto
não me julguem demasiado optimista, pois lá, além desse belo quadro
pintado com as tintas da marcha irresistível do progresso, existe
aquele constituído pelas aldeias e Povos indígenas mais atrasados e
pelo mundo maravilhoso dos seus feitiços.
Destacar factos ou passagens que me impressionaram mais é-me
difícil. No entanto, com um pouco de esforço, consegue-se destrinçar
alguns factos no meio da sua grande quantidade e complexidade.
Há um que, embora pareça insignificante
aos leitores, constituiu,
assim como para os meus colegas, um profundo mergulho no mundo nostálgico
das noites africanas. Era noite. Chegáramos ao rio Limpopo. Embora
já exista uma moderna ponte para a sua travessia, ela ainda não está
aberta ao trânsito. Atravessámos, então, num batelão. Só quem
ouviu aquele puxar rítmico do cabo e o cantar dolente dos três
autóctones que disso estavam encarregados, pôde apreciar a sua
tristeza. Analisando a letra daquela melodia simples, mas
penetrante, vemos nela o espelho da dor por algo que o progresso
lhes roubava.
Aproveito a ocasião para falar de mais duas passagens da minha
visita: a presença numa missa celebrada na Igreja duma missão e a
ida à ilha de Moçambique.
A presença naquela missa revelou-nos a existência dum espírito
cristão naqueles indígenas que lá estavam. Esse espírito não
transluzia como muitas vezes cá acontece, um qualquer sentimento de
vaidade ou de simples formalismo. Isto constituiu para nós uma
«prédica» muda que nos fez sair «descontentes com nós próprios». É esta uma parte da vasta
obra que devemos às missões.
A ilha de Moçambique constituiu, por outro lado, o cruzamento do real
e do fantástico. Calcar as pedras da sua fortaleza foi o reviver de
belas páginas patrióticas, escritas com o sangue daqueles que lá
lutaram e morreram. E o resto da ilha? É um contraste do
continente. Aqui precisamente, ao
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contrário do resto da província, a mulher «escraviza» o homem; Elas não
trabalham e andam geralmente com a cara pintada com uma pasta
branca.
Nesta breve autópsia a Moçambique não procurei fazer um largo relato
de todas as suas realidades materiais, que são já do conhecimento de
todos, mas sim penetrar nas entranhas dos seus habitantes, cuja
maneira de ser e hábitos constituem uma incógnita ainda não
totalmente revelada.
Carlos Manuel Reis
Mendonça
(7.º ano – Letras) |