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farol n.º 10 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, págs. 15 a 17.

Conto de Natal

Laura Paula Dias
(7.º ano)


ANTES de começar a escrever, pensei e meditei durante longo tempo sobre o que poderia escrever e como me deveria expressar. Antes de me decidir por este pequenino conto perguntei a mim mesma o que seria mais oportuno. Como verificareis, achei que, saindo o «Farol» em Dezembro, nada mais a propósito seria do que falar do Natal. E mais do que as festas – conquanto sagradas – da família, e mais do que os bailes e diversões, achei por bom falar do Natal em si mesmo, que é mais do que tudo isso e de que tão pouca gente apreende o significado.

Há quase 2.000 anos que Ele, o Deus imortal, veio ao Mundo, em Missão divina de Paz e de Amor. Desceu do seu pedestal e misturou-Se entre nós, e fez-Se um de nós. Há quase 20 séculos que Ele, Deus, Se humilhou fazendo-Se Homem, por amor dos homens. No seu tempo não foi conhecido, nem compreendido. Como poderia ter sido amado? Passados que são 20 séculos – de luta, de investidas, de conquistas – os homens continuam surdos aos seus apelos, cegos à sua vinda, mudos aos seus pedidos!...

Nasceu Ele, outrora, em um humilde presépio, tendo por leito umas palhas e por vestido uns paninhos. Ah! Que se Ele nascera hoje não seria melhor recebido! Os homens continuam egoístas, apesar d' Ele – o grande Generoso – se ter sacrificado.

Os homens persistem na sua maldade – e Ele, o todo amor, foi crucificado. Não! Os homens não O compreendem ainda, e o Natal permanece assim em suas memórias como um dia divertido – ou aborrecido; agradável – ou desagradável; enfim uma bela recordação ou um dia igual a muitos outros, se não pior ainda.

E nada mais, nada mais!...

Que o teu Natal não seja assim!

Que o teu coração não fique frio, nem surdo, nem mudo em frente d' Ele, do Menino.

Coragem, pois! E sobretudo, sê generoso com Ele. O Menino, que conhece o teu e o meu coração, sabê-los-á recompensar.
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Era na véspera de Natal!...

No seu quartinho de damasco cor-de-pérola, a rapariguinha ficara sentada na poltrona de veludo vermelho, absorta em estranhas meditações. Um sorriso de infantil alegria animava-lhe por vezes as bochechinhas rosadas e o cabelo, de um negro azulado, caindo-lhe em caprichosas ondas encobria-lhe parte do pescoço alvo e delicado. Naquela véspera de Natal a menina estava contente! Percebia-se isso, já pelo jeito dos lábios de desenho fino e leve colorido, já por um certo brilho dos profundos olhos azuis, que se afundavam agora na contemplação de qualquer coisa longínqua e misteriosa...

Lá fora, a luz ia rareando mais e mais, até que cessou por completo. Veio então a noite – noite calma e fria – e com ela as trevas e o silêncio. Por toda a parte se estendeu um manto negro e logo o vento parou de abanar docemente as folhas mortas das árvores, e o ribeirito calou a voz fortalecido por longos períodos de chuva, e o surdo murmúrio dos seres que respiram parou, de súbito. Não foi mais que um segundo de repouso, de calma absoluta. Depois tudo voltou à normalidade: zumbiu o vento, cantou o ribeiro, sussurrou a terra...

A menina continuava sentada (ou melhor, recostada!, alheia a tudo e como que esquecida do mundo e das gentes. Tinham-lhe dito um dia – cerca de um mês antes – que nascera outrora um Menino, rosado e lindo como o são todas as crianças do mundo, e que Ele fora predestinado por seu Pai para ser o salvador dos homens. Fora Elisa, a sua jovem professora que lho contara, numa tarde em que a chuva rufava infatigavelmente nos vidros das janelas. O Menino – contara-lhe ela – transformara-se num homem – o melhor e mais justo dos homens. Mas outros, que eram maus, haviam-no feito crucificar só porque Ele amava a Humanidade.

Mas Ele recompensava quem O seguia dando-lhes como prémio o Paraíso...

E a menina, que tinha alma de poeta, chorou nesse dia a morte do Homem bom. As lágrimas corriam-lhe pelas faces um pouco pálidas de comoção e a voz, essa voz meiga e carinhosa que era o enlevo de todos os que a conheciam, tremia ao perguntar: «E Ele perdoou?» A resposta fora afirmativa. E ela sentira que o coração se dilatava sob uma onda de suave calor. Era (soube-o mais tarde) o reviver da Esperança. Fora nesse dia memorável que prometera a si própria ir à igrejinha da aldeia na noite de Natal. Nunca lá tinha ido por essa altura. A casa estava tão quentinha! Havia um bom lume, uma ceia magnífica, presentes e pessoas amáveis e lindas que a mimavam e lhe davam beijos. Nesse ano, porém, iria ver o Menino! Iria com Elisa, a sua nova amiga, e ninguém daria por nada. Escusar-se-ia à mesa com uma constipação ou gripe.
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Era nisto que pensava sentada em frente da janela. Umas pancadinhas discretas vieram lembrar-lhes as horas. Sem barulho nem demoras, calçou as botas de calfe vermelho, alisou os cabelos e vestiu o casaco de pele branca e fofa. Cá fora o frio obrigou-a a pôr o capucho e a agarrar-se ao casaco da amiga. Passos apressados e leves soaram atrás delas... Gente que como elas ia à Missa do Galo. Mais cem metros e chegariam. De um tufo de abetos emergia a igreja pequena e esguia, com o telhado pontiagudo e vermelho. As paredes brancas sobressaíam estranhamente da escuridão da noite. Chegaram, enfim. No interior do templo respirava-se uma destas atmosferas sacras e puras que dão paz aos inquietos e fazem corar de pejo aos medíocres. A menina – Isabel se chamava ele – ajoelhou e deixou-se penetrar por aquela paz que era Amor. Ajoelhada ficou e no seu olhar uma luz divina se acendeu. Na igreja nua e fria um cântico de Natal vibrou alegremente. Os sinos repicavam! Pareciam dizer. «É Natal! É Natal! Nasceu o Salvador!...» E continuavam a repicar, sempre e sempre, cada vez com mais força. A Santa Missa foi também uma revelação para ela. Sentiu-se de súbito arrebatada por uma força desconhecida, e orou então com verdadeira fé, prostrada no banco de madeira, o rosto escondido nas mãos e uma alegria doce e triste a um tempo no coração. Acabara a Missa!

Tinha acabado a Missa, mas o ar estava ainda impregnado do cheiro do incenso e o cântico suave não se calara de todo. A melodia grave do órgão enchia o Templo e as pessoas iam-se levantando sucessivamente e encaminhavam-se para o presépio, montado num dos ângulos superiores da igreja. A Isabel foi também, agarrada ao braço da amiga. Na manjedoura estava deitado o Menino, um menino de pedra, é certo, mas que a olhava docemente. Sentiu-se estremecer e ficou-se a olhar a pobreza do presépio. Ao lado dela uma vozita elevou-se: «Ai que lindo Menino!» Voltando a cabeça deparou com a dona da voz, uma miúda de rosto pálido de fome com grandes olhos espantados. Ela juntava as mãos e olhava agora para Isabel toda rosada no seu casaco de pele. Ela olhava também e olhou o Menino deitado nas palhas. Pareceu-lhe que os olhos deste pediam e que as mãozinhas se erguiam numa súplica. Ela compreendeu esse olhar todo Amor. A neve caía quando saíram as três rumo ao castelo da igreja. A noite estava agora branca, de neve e de luar, e no silêncio santo da noite Santo os sinos continuavam a lançar a sua mensagem: É Natal!

É o tempo do AMOR!...

 

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08-06-2018