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farol n.º 9 - mil novecentos e sessenta e três ♦ sessenta e quatro, págs. 19 a 21.

Uma estranha história

Maria Alexandrina Pinto
(6.º ano)


ESTE é um conto que o leitor não esquecerá com facilidade.

Eu... jamais!

Quando ouvi pela primeira vez a história estranha dos dois homens isolados pela dura tempestade na montanha agreste algo vibrou na minha alma, algo que não mais deixará de vibrar.

A montanha envolvida assim na melodia fantástica, da noite era a realização do belo, dum terrível belo!...

O silêncio penetrava as almas sozinhas, a solidão seguia-as como uma sombra...

A tempestade havia começado sinistra, medonha, e o nevão invadira de repente a montanha imensa.

Estellow, jovem robusto e Carney velho de corpo e de espírito continuaram na noite acossados pela neve e pelo frio, arrebatados por um desespero atroz de sobrevivência.

Os seus passos tornavam-se cada vez mais penosos e os corpos encharcados e doridos eram farrapos levados sem rumo pela força indomável da natureza.

– «Estellow», disse o velho tossindo e curvando as pernas dolorosamente, «paremos. Eu quero dormir. Vou fazer um abrigo e esperar...».

Estellow voltou-se admirado para o companheiro.

– «Esperar? A morte!?
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Mas o seu olhar toldou-se-lhe ao ver o pobre Carney... Ia dizer algo contra o céu, contra Deus que os entregava tão duramente à morte quando de repente, e como um louco, soltou um grito de esperança.

Recortada contra o remoinho negro do temporal estendia-se uma linha coberta de neve.

– « Carney! Carney, o fio, o fio do Telégrafo!»

Carney encolheu os ombros e fez uma careta. – «Para onde? E a que distância?» E começou de novo a tossir e a dormitar.

– «Vamos», comandou Estellow «esta deve ser a linha que estenderam na Primavera e que liga a cabana do cume ao caminho de ferro da vila. É só trepar um bocado.»

E arrastou o companheiro enfraquecido, durante meia hora, meia hora de luta contra a morte.

Na cabana havia lenha, e numa prateleira algumas maçarocas de milho seco. Um porco espinho guinchava nos ramos de uma árvore e Estellow abateu-o com o revolver. A ameaça da fome já não o preocupava. Mas Carney ardia em febre e depois de o aquecer meteu-o na cama dum quarto interior. O telégrafo era uma esperança; Carney sabia transmitir.

De manhã o velho cambaleou até à mesa e deu a volta ao interruptor. Com uma voz hesitante conseguiu comunicar com o telegrafista, que se julgou doido ao perceber o código quase inteligível: «dois homens isolados no cume e um deles com pneumonia.»

Esta foi a primeira e a última comunicação. A linha ficara interrompida pela neve e pela ventania.

Carney piorava e passava o dia na cama a tossir.

Na terceira tarde Estellow saiu da cabana à procura de lenha e deixou o amigo deitado como de costume. Quando chegou Carney estava sentado, tranquilo em frente do aparelho.

– «Estellow», disse ele calmamente, «acho que estou a morrer, mas ouve», pediu o velho com o olhar brilhante, «não me enterres sem teres a certeza de que morri. Pode ser apenas um estado de coma. Não Estellow, peço-te, não me enterres vivo E a voz fraca sumiu-se-lhe num fio.

A voz e os olhos de Estellow, um Estellow abatido pela dor fizeram uma promessa solene.

E foi nessa noite. Quando o rapaz cozinhava o resto do porco-espinho, Carney saiu do quarto, arrastou-se para o seu lugar à mesa e ali morreu.
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Queria ver e não via, queria falar, mas a voz estrangulava-se-lhe na garganta, queria reagir, mas os seus membros pareciam pedras.

Pobre e desgraçado Estellow... Dirigiu-se enfim para a porta fez uma cova na neve e, quando se certificou da morte de Carney, enterrou o cadáver gelado e tapou a sepultura...

Depois voltou à grande cozinha e, sem saber porquê, parou a tremer, atento e desconfiado.

Sentia-se observado, cravado, penetrado por olhos sem fim, olhos que pareciam despidos de vida, olhos que brilhavam na noite sem sombras, sem luz e sem cor...

Deitou-se a tremer, cerrando as pálpebras com violência, tentando apagar do espírito aquela presença assustadoramente vivida da solidão, tentando fugir aos olhares gélidos da morte.

Passou horas terríveis de pesadelos constantes e, quando acordou, suores frios cobriam-lhe o corpo.

O vento gemia lá fora; e a chuva caía mais forte e mais fria; e o tempo parecia desnudo de amor, na agreste montanha.

Quando Estellow saiu da cama de manhã e ia deitar lenha no lume, Carney estava sentado à mesa, imóvel, silencioso, de olhar parado...

A vida quedou, a luz prateada da manhã apagou-se lentamente e o homem pensou por um instante ter perdido os sentidos. Oh! Mas não. Lá estava ele... e ao seu lado e atrás de si e em qualquer parte para onde se voltasse, ela, a outra... a solidão.

O rosto pálido de Estellow tremendamente desfigurado, era bem uma imagem da luta fantástica que se começava a travar no seu espírito alucinado. Ficou o dia todo olhando um ponto fixo no nada, num desespero fatigante de fuga, numa sede delirante da vida.

Ao cair da noite, num último rasgo da sua consciência aniquilada e tentando não perder o sentido da realidade Estellow levou de novo o cadáver para a sua sepultura.

A noite passou-a ele em permanente agonia. Pela manhã, coração a palpitar furiosamente e o corpo em horríveis convulsões, estendeu a mão para a porta que dava para a sala grande.

Carney lá estava direito, sereno, no seu lugar à mesa...

O medo que se apossara do jovem era de tal modo apavorante que numa última tentativa de libertação quis fugir àquele mundo tenebroso e estranho que o transtornava e o / 20 / prendia... Com as mãos furiosamente crispadas no rosto tentou atravessar a sala sem despregar os olhos da porta; mas como num terrível pesadelo, as pernas negavam-se-lhe à fuga, o corpo forte e entroncado imobilizava-se-lhe num torpor doentio e nervoso. Finalmente Estellow conseguiu respirar a liberdade.

Vagueou como louco pelo monte e quando o dia começou a declinar e se viu à porta da cabana, apercebeu-se, pelo menos subconscientemente, de que não era, de que não podia ser livre...

Ao abrir devagar a porta uma luzinha frouxa de esperança veio aquecer-lhe a alma... Mas o cadáver continuava direito imóvel, junto ao aparelho. A mesa era quadrada e pequena; Estellow sentou-se em frente do amigo morto, os punhos cerrados, o sangue a gelar-se-lhe nas veias de pavor. Então pela terceira vez e num esforço subconsciente pegou no cadáver e arrastou-o para a neve e ainda com esse agonizante esforço agora quase sobrenaturalizado, sentou-se de novo à mesa.

Os olhos esbugalhados, a atenção concentrada na porta Estellow preparou-se para vigiar toda a noite.

«Porquê, para quê?». Não se perguntava já. Agia e pensava como um autómato, mas reagia ainda como um ser humano sensível.

E foi como um ser sensível que a meio da noite adormeceu vencido pela fadiga do corpo e do espírito.

Ao abrir os olhos a custo viu por entre as pestanas estranhamente pesadas, o vulto negro do cadáver de Carney.

Um frio trespassou-lhe o corpo e dentro de si sentiu que algo se quebrava. – «Valha-me Deus», foi a derradeira frase de Estellow.

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E o leitor perguntará e com razão: Acabou o mistério? Acabou a história?

Não, caro leitor, falta algo, algo importante que tornará, tenho a certeza, este conto inolvidável.

Não é com certeza a minha imaginação ou mesmo o meu talento. Ah! Pobre de mim, reconheço-me bem pouco para me tornar sequer lembrada, quanto mais inolvidável...

É sim, e eu sinto bem o valor destas palavras a «veracidade» desta história.

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Alguns dias após, um médico, dois lenhadores e Clark o telegrafista de North Greek avistaram a cabana sozinha no cimo da montanha imensa. Da chaminé não saía fumo.
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Um rego profundo cavado na neve entre a porta e um montão de neve misteriosamente cavado e vazio despertou-lhes a atenção.

O médico empurrou a porta. Dois cadáveres inertes sentados frente a frente ocupavam o vazio gélido e arrepiante da cabana.

Ambos tinham a cabeça atravessada pelo tiro dum revólver.

O mais jovem estava caído de bruços sobre uma poça de sangue coagulado na mesa, os braços pendentes e no chão sob a sua mão direita um revólver, assassino.

O velho tranquilamente sentado olhava sereno o vácuo.

– «Não, não matou», disse o médico pensativo, «o corpo de Carney já estava morto e até gelado quando levou o tiro».

O grupo entreolhou-se alarmado.

Então um lenhador encontrou o diário de Estellow e entregou-o ao médico. Este leu-o comovido, sentindo vibrar de algo estranho dentro de si. Examinou a neve e voltou à sala gelada.

– «Ouvi. O meu veredicto oficial é que os homens morreram de fome, de frio e de privações.

No entanto sabemos que isso não aconteceu...»

– «Dormiria mais descansado se soubesse o que realmente se passou.» Atreveu-se a dizer Clark.

– Não o saberás, pois nem eu o consigo saber.

O que podemos é calcular.

Alvitrando o seu sonambulismo de infância a explicação é simples,

«Estellow tinha horror nervosa à solidão e nas tremendas noites de insónia buscava o amigo numa sede irreprimível de companhia, A promessa, que Estellow escreveu no seu diário, tão solene, tão convicta explica o tiro que atravessava a testa de Carney,

O rapaz agindo com o subconsciente, convencido de que Carney continuava vivo, tentou num derradeiro delírio pôr fim à vida do companheiro.

No entanto a exumação repetiu-se várias vezes. Algum instinto subtil tentou talvez prevenir Estellow de que não deveria perder o domínio consciente. Mas a natureza foi mais forte e ele voltou a adormecer, expondo-se assim ao demónio do sonambulismo.

O diário de Estellow foi destruído e os cadáveres foram lançados na profundidade de um lago da montanha.

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Esta é uma das histórias estranhas que  vive a HUMANIDADE.

 

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08-06-2018