Maria Eugénia M. Oliveira
2.° prémio (3.° ciclo)
ENQUANTO na rústica igreja da aldeia se entoavam os
cânticos tradicionais daquela «noite de paz, noite de
amor», e se esperava com ansiedade a vinda do Menino, a sr.ª Felisberta, tendo nos braços a filha
doente, pedia ao Jesus que não quisesse descer do Céu sem trazer as melhoras à sua menina, e uma contradição ao desejo
de seu marido partir para além-mar.
Havia vinte anos que o seu abençoado lar fora fundado.
A riqueza fora sempre pouca, mas muita a saúde, a
felicidade e a paz. E só agora, passados esses vinte anos vividos na mais pura harmonia, ele se lembrara lançar pelo mar
fora, à procura da fortuna, vagueando como um barco sem
rumo, ao sabor das ondas do destino.
E a sr.ª Felisberta misturava quase sem dar por isso a
prece confiante ao Deus Menino, com a lembrança triste de
ver realizado o desejo de seu marido.
Todos os sonhos da sua juventude foram
compartilhados, alimentados e tornados realidade em união com ele.
Dedicou-lhe toda a sua mocidade feliz, foi a sua
companheira fiel em todos os momentos alegres e tristes, fáceis e
difíceis da sua vida de casado, também agora, sentindo as
forças diminuírem para ganhar o pão de cada dia, pensava
merecer o amparo e a companhia do marido.
E só hoje, passado o vigor da juventude de ambos,
quando a sua presença era mais solicitada para a educação das
filhas resolvera ir abanar a árvore das patacas e encher o
saco de oiro para trazer ao lar.
Absorta nestes pensamentos, a
sr.ª Felisberta quase esqueceu a filha doente que tinha no regaço.
– Não te sentes melhor, pois não, meu amor?
Perguntou à menina, com voz vacilante, com voz de quem encontrasse de repente a realidade do momento. Porém a criança
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como que não soubesse o que responder, mexeu-se no seu regaço abriu
os olhitos e lançou um olhar meigo ao rosto da mãe perguntando:
– O paizinho?
– Foi à Igreja, ver nascer o Jesus, e pedir-lhe que te
melhore. E olha, Nandinha, queres também pedir comigo ao Menino, que
faça com que o paizinho não vá para o Brasil? Queres? Então vamos
pedir-lhe.
E puxou cautelosamente o lenço do bolso, para limpar duas lágrimas
que queriam mostrar à filha a tempestade que abanava aquele pobre
coração de mãe. E depois ambas rezaram.
Por fim mais duas lágrimas que queriam ser traidoras. Talvez fossem
as primeiras vertidas por ela numa noite de Natal. Outrora, nesta
Santa noite, sempre um facho aceso e refulgente a alimentar
esperanças, sempre esperanças. Hoje apenas um apagado e negro, a
assinalar angústia, a lançar uma ponte à desilusão.
De repente estremeceu. Um foguete estala, outro, outro e mais outro.
Era meia noite. O menino acabara de nascer.
Chegou o momento próprio de perguntar a Jesus pelo seu presente de
Natal. Pousou vagarosamente a filha na cama e correu a pôr ao lado
dos sapatos da Nandinha e da Teresa também os seus com um
bilhetinho:
«Querido António: Consagrei-te toda a minha juventude feliz, parte
ainda da minha infância despreocupada, como sabes, e hoje peço-te
um presente de Natal: Aceita a minha velhice».
Daí a pouco a sr.ª Felisberta deitada ao lado da Nandinha, ouviu
passos na escada e o ranger da porta. O marido chegava. O marido ia
pôr ao lado dos presentes das meninas, o sim ou o não ao maior
pedido que a esposa até hoje lhe apresentara.
O galo cantara a anunciar a manhã daquele dia de Natal. Ao som
desta melodia a Teresa acordou e lembra-se do Menino, dos presentes
do Menino.
Escutou durante uns momentos o tic-tac do relógio no quarto da mãe,
espreguiçou-se, tornou-se a espreguiçar, esfregou os olhos e por
fim saltou da cama. Em bico de pés para que ninguém desse por isso,
empurrou a porta da casinha e entrou.
Mas corno? E parou de repente esfregando outra vez os olhos. Que
viria a ser aquilo? Uma carta num seu sapato, muitas guloseimas nos
da irmã, um bilhete num sapato
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da mãe... Estaria a sonhar? Não, não estava. Mas afinal o que seria
aquilo? E pegando na sua carta começou a ler:
«Querida Teresa: Eu quis que fosse apenas este o teu
presente de Natal. Eu quis que fosse ele só qualquer coisa
que te fizesse pensar mais no cumprimento dos teus deveres, acordar-te desse sono infantil em que ainda teimas
dormir e alertar-te para a vida dura que te espera agora.
Já tens quinze anos. Penso que chegou a hora de
enfrentares a vida de arma em punho, pronta a saíres triunfante dela.
É que sabes, querida filha, na vida há vencidos
e vencedores. Só é vencido quem quer, mas só será vencedor quem lutar. A vida não é só esse mar calmo e
brilhante, esse céu claro de azul suave, esse horizonte avermelhado, esse cantar alegre dos pássaros na primavera que tu
sempre vislumbras. Não, minha filha. Talvez que até hoje
a vida para ti fosse só isso. Mas eu quero acordar-te desse
sono, eu quero que penetres na realidade.
A vida vai ser por vezes para ti um mar rebelde e
agitado, um céu de nuvens escuras, um horizonte apagado, um
grito medonho duma coruja no Inverno. Mas também não quero que
entres nela de fronte baixa, olhos no chão com
medo da derrota. Sairás tão triunfante quanto da tua timidez. Subirás tão alto, serás tão grande quão fortes forem as
tuas asas para alcançar o cume da montanha. Segue pelo
caminho do Bem, da Verdade e da Justiça, certa de que em
breve alcançarás a palma da vitória.»
Assim acabava a carta. A Teresa quase
inconscientemente pronunciou um «sim» em voz alta, ao mesmo tempo
que lançava a mão ao bilhete da mãe e lia:
«Felisberta: Já que assim o queres, estaremos juntos
até que um dia a morte nos separe.»
Gumerânia |