Benjamim Adelino Costa de Pinho
(7.º Ano)
QUE frágil atleta era Mário para suportar a dureza de uma guerra
pesada, essa guerra horrível que não poupa fortes nem fracos, ricos
nem pobres, arrojados nem tímidos.
Era de noite, em Janeiro; e a Ana do Cabeço, lá ia triste,
cabisbaixa, tremendo ao som de uma chuva gelada, pressentindo além,
muito além, por entre as oliveiras esguias e despidas, o abismo
terrível de um fim.
Mas o Mário, sangue frio, todo a expressão da vitalidade e do génio
de uma raça, não inspirava qualquer sopro de descrença. Mergulhado
em sonhos de glória, consentia uma serenidade aparente, plena de
relances turvos pela dúvida.
– Anita, não chores; não temas um bem que esconde, mas
se esconde
com o teu coração. Parto com Pátria, envolvido por ela e nela
sentindo o despertar da aurora que há-de ser o orgulho do nosso
filho, o espelho brilhante da tua lealdade.
– Sim...; não, não choro... não quero chorar... mas eu,
sem ti... um sopro mais leve que vento do beco!
– Ora... ora! Afasta de ti tal pensamento. Supõe-me um
ausente transbordando de vitória talhando o dia de regresso.
E, como que cedendo a
amplidão incerta que corrompe a
esperança:
– Não nos rodeemos de estéreis tristezas, já que nelas andamos abraçados.
– Que Deus te veja através de minha fé que minha alma
há-de
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– dizia Ana,
olhos roxos e pisados, afogados em lágrimas, transportada para
horizontes ocultos.
– ... aquecido por manto heróico, sentir-me-ás adormecido
no alvor íntimo do nosso amor conjugal. Ver-nos-ão dois jovens
enamorados, escravos de um mesmo ideal. O pequeno..., o nosso filho,
há-de sentir o aroma desse jardim e desabrochar para a vida, um
vigor fértil de homem erecto.
Naufragado nas trevas, pálpebras entreabertas, deixando escapar um
raio indeciso, entranhava-se já no ruído do mar. À sua volta, tudo
era confuso, tudo era uma espessa nuvem de poeira. É que ele sabia
que os sonhos do mundo são tão ténues, tão frágeis, que a menor
brisa os esboroa para sempre.
De repente..., desperta da funesta solidão que o atraiçoa, passeia a
mão pela testa, respira fundo, e fecha os olhos para prolongar a
ilusão.
O tempo corre vertiginosamente, a lua esconde-se por
detrás da escuridão, e o vento, rude e frio, beija-o bruscamente.
Mário, por instinto, pára. Sente todos os movimentos
paralisados. Acorda para a crua realidade da vida, e descortina, ainda
que, a olhares sequiosos, os umbrais de uma prisão. Recua... 11
horas!... A noite vai alta e triste. Uma casa sombria, alvo da mais
pertinaz algazarra.
Pela porta entreaberta, sai um ai aflito, tão misto de tristeza e de
dor, uma dor amarga que se intensifica. Aproximava-se a hora cruel
da despedida. No ar, o apito, estridente do comboio.
O terrível aspecto de uma estação, testemunha de tantas lágrimas
traiçoeiras, de tantos abraços doridos, onde esmorece uma imensidão
de desejos e propósitos, de tantos beijos, para quantos o último,
que alanceiam e separam corações há muito unidos, e para sempre!...
Uma massa compacta de mães, irmãs, parentes, namorados e amigos,
desfalecida, é dominada pela longa cegueira de um
adeus. Lá estava a Claudina, a «a mulher da malta» como o vulgo lhe
chamava, a animar com o seu conforto, e a ver desaparecer na linha
da estação, o rasto traiçoeiro de alguém que parte, a alma vazia de
uma dor que fica.
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À esquina da rua, uma multidão impaciente espera. Manhã de 11 de
Fevereiro. No horizonte coava-se o Sol por entre os salgueirais. Era
o edifício dos correios e com ele a ânsia de boas novas. Notícias de
entes queridos, perdidos na nostalgia da Pátria distante, sentido
talvez, as névoas da saudade dum alguém
ausente.
A um canto, debruçada em pedra tosca, uma figura seca,
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faces congeladas, cabelo desgrenhado, olhos brilhantes e colados à mão, onde num dos dedos brilhava uma pedra esverdeada, como um
emblema de esperança...
Era a Ana do Cabeça, trémula, prevendo forte desilusão.
É que há muito se lhe negavam notícias de quem saíra...
com promessa de voltar.
Expressão dura, gelada, começava já a acreditar no desenlace.
Cobria-a o véu de saudade, que a morte perpetua, e atrofia
o espírito dos menos prevenidos, não sem hesitações e incertezas,
que o tempo vai esclarecendo, abrindo as janelas nuas da triste
realidade.
O tempo passava, os dias sucediam-se, e essa remota esperança ia
jazendo em campo infinito. Aí se sepultava lentamente, o exemplo do
desinteresse mais puro, do sacrifício da vida mais completo, da mais
alta noção de servir.
– Mãe..., se Deus nos dá tudo, porque deu aos outros pai e a mim
não? Porque andas de preto e as outras mulheres não?
A Ana, apagando com o lenço uma lágrima rebelde, vê desvendar-se,
aos poucos, o mistério que a sua boa fé tentara ocultar. Com a
máscara do luto estampada no corpo, que de claro só a pele macia e
alvacenta do seu rosto, deixava-se arrebatar por um mar de
recordações. Pintava-se-lhe vivamente na imaginação o amor heróico
do marido.
– O teu pai, filho; implora para que tu sejas alguém por
que ele suspira.. porque ele suspirava!
– Eu sei. Julgas que não sei. Eu sei por onde vagueia o
meu pai.
Caía a tarde, e o Sol sumia-se por detrás da terra, grande e
vermelho no ocaso.
Na ponte do arco-íris da esperança, a Ana quedou-se por momentos num
silêncio impassível... É que estava perante a eminência do
irreparável, com os olhos perdidos no longe da paisagem, que se
escondia num tom saudoso de encanto.
– Mas que sabes tu, filho? Sabes que teu pai foi defender a terra
que pisamos, a casa que habitamos, este ar desanuviado, que
respiramos, e defender-nos a nós mesmos, defendendo a nossa querida
Pátria? E talvez um dia... venha abençoar o teu coração grande.
E essa mocidade, toda crepitante; deixa-se assim voar na ilusão, mal
acordada da dolorosa certeza.
Seis anos eram volvidos! O António crescera, era agora um rapaz
vivo, bem nascido em sabedoria, manha e robustez e era alvo das mais
variadas atenções, não só pela sua nobreza de carácter, mas também
porque punha de prevenção os seus
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vizinhos, à hora que usualmente regressava da escola. É que a sua
fácil agilidade era atraída pela fruta dos pomares.
Esse hábito acarretara-lhe amargos dissabores, e não se
podia ocultar à fama de rapinador, que correra célere por toda
a região. Entrara mesmo na própria escola, onde desaparecera algum
dinheiro que distraidamente havia sido colocado na secretária.
Fatigado de investigações, o professor não ficara incólume da ferida
que o rapaz alastrara. Intima-o então, a apresentar a quantia
desaparecida.
– Rapaz, onde escondeste o dinheiro?
– perguntou o professor Neves, já fora dos domínios da razão.
– Eu, eu não escondi
nada!
– Então que lhe fizeste?
A insistência do professor teve agora resposta seca.
-- Nada!...
– Não tiraste nada, meu patife? Ainda ousas enganar o teu professor,
o mestre amigo de tantas horas, que com tanto carinho e abnegação te
tem arrancado da inocência passiva em
que jazias, te tem procurado iluminar a inteligência, dar-te o
conforto espiritual de que tanto carecias, meter-te dentro da
unidade consciente e forte da nossa escola, encaminhar-te num puro
ideal, resiste a todas as paixões, a que tão infantilmente andavas
ligado?
– Diz-me, António, é assim que agradeces o trabalho do teu
professor? É assim, procurando enganá-lo? É assim António?
Ainda tentas negar o teu roubo?
O rapaz mantém um silêncio mudo e frio.
– Porque não abres a tua consciência, meu malandro? E
dizendo isto, arremessa-lhe à cara as mãos ásperas e fortes de
cólera.
Nem uma lágrima lhe aflorou aos olhos, mais esgazeados agora que até
aí; nem um grito de revolta lhe subiu da garganta seca; nem um
ruído lhe vibrava nos ouvidos que não fosse o eco já disperso das
palavras para ele disparadas:
– Anda, confessa, que fizeste ao dinheiro roubado?
– Não, não, não roubei
nada!...
No auge do desespero, o professor esquece-se da
orfandade do rapaz que, com a cabeça aturada nas mãos e o cotovelo apoiado
nos joelhos, perecia esconder a vergonha da sua triste condição.
– António, tu não tens pai? Que faz o teu pai?
E aqueles olhos vivos, erguem-se com o olhar pesado e o cabelo
desgrenhado, e fazendo do polegar indicador, deixam-se cair.
– O meu pai... o meu pai
está aqui... aqui dentro do meu peito. |