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BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 


A FONTE DOS meus AMORES - III
 


 
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Ponte de Carcavelos sobre o Canal de S. Roque, na década de 1950.

 

A fonte dos meus amores não é mesmo só a FONTE DOS AMORES que eu recordei na minha primeira crónica desta série. É Aveiro toda, esta minha terra feita de água, este meu espaço que vai pelo Atlântico fora e que não me cria barreiras aos ventos que ora sabem à maresia dos cagaréus, ora cheiram a fragrâncias de campos dos ceboleiros estirados até às serranias já lá por lonjuras de levante. É Aveiro toda, na saudade que corrói quando evoco tempos da minha meninice e da minha juventude, na saudade que amarfanha, quando me afasto mais do que vê-la me consente. É a Aveiro, que D. João Evangelista de Lima Vidal agarrou na sua prosa tão cheia de poesia e converteu em orações que me habituei a murmurar, em fim de dia, principalmente quando dela me ausento; é a Aveiro que Almada Negreiros tão bem soube pintar com a sua palavra de pincelada fluida e a quem me arrimo sempre que sinto desejos de relembrar as marinhas de sal que já quase não temos, ou as tricanas donairosas, cujo traje se transformou em peça de museu; é a Aveiro de Ramalho Ortigão sem ter que importar dunas da Holanda; é a Aveiro de Rocha e Cunha que encontrou tempo na sua faina de capitão de porto para justificar a viabilidade económica da nossa barra; é a Aveiro de Raul Brandão, onde redescubro os pescadores da minha família; é a Aveiro de Monsenhor João Gaspar a fazer de Joana cada vez mais princesa, cada vez mais santa; é a Aveiro de Alberto Souto com o seu bairrismo de fronteira aberta e larga; é a Aveiro de Pedro Zargo, de João Sarabando, de Mário Sacramento, de José Pereira Tavares, de Álvaro Sampaio, de Ferreira Neves, de Cecília Sacramento, de Rocha e Cunha (filho), de André Ala dos Reis, de Vale Guimarães, de Frederico de Moura, de David Cristo, de Vasco Branco; é a Aveiro de Manuel Tavares, de Guerra de Abreu, de Cândido Teles, de Euclides Vaz, de Lauro Corado; é a Aveiro de todos com quem me cruzo nas nossas ruas e a quem digo bom dia. Enfim: a fonte dos meus amores é esta Aveiro que me deu o ser e me foi moldando até aos dias de hoje.

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É por tudo isto que cada vez mais me sabe bem lembrar o que já lá vai: as pessoas como foram, os sítios que mudaram, as casas que desapareceram, as ruas que ganharam novas formas, novos contornos. E, por conta disso mesmo, dei comigo, no outro dia, sentado à mesa de um pequeno café do meu bairro, a falar com o meu primo Aguinaldo Melo, neto do saudoso marnoto Roque de Melo Albino. Aguinaldo Melo foi distinto oficial náutico, distinto funcionário bancário quando decidiu abandonar as lides do mar e, na sua juventude, jogador de futebol no Beira-Mar, no Belenenses e na Académica. Ainda hoje é lembrado por ter sido o maior marcador de golos na história do nosso Beira-Mar!

Sem darmos por ela, lá começou o desfiar de recordações. É que o Aguinaldo viveu mesmo no “centro cívico” do canal de São Roque: na loja da “Rosa do Polícia”, esta senhora Rosa mãe do Aguinaldo, casada com Carlos de Melo Albino, mais conhecido por Carlos Polícia, o qual gozava de grande fama como excepcional apanhador de enguias à mão ou à “unha”, como se dizia na Beira-Mar. “Unheiro” como ele não havia. A sua loja era o ponto de encontro dos marnotos e de quem vivia da pesca do “rio”. “Rio”, para a gente da Beira-Mar, era a ria. E o canal de São Roque era a “praia”. A loja da ”Rosa do Polícia” era o supermercado de então, onde a maior parte do povo ia comprar “fiado”, para “assentar no livro”. No tempo da segunda guerra mundial, quase tudo o que era de comer estava racionado. As famílias recebiam dos organismos do Estado “senhas” com as quais tinham acesso aos produtos essenciais. Mesmo com “senhas”, a carência era tão grande que se formavam “bichas” à porta das lojas, pois depressa as mercadorias se esgotavam. E, quando isso acontecia, lá se tinha de comprar na “candonga”, sonegadamente e por preços exorbitantes. Lembro-me de que o meu pai, marítimo, por essas alturas, foi mobilizado para a Marinha de Guerra e, já casado, prestou “serviço” em Lisboa. Quando raramente vinha a Aveiro, trazia sempre artigos de mercearia, cuja compra, cá, era difícil, mas que ele adquiria na messe da Marinha.

Mesmo ao lado da loja da “Rosa do Polícia” ficava a loja da “Lurdes de Pardilhó, mãe do Amadeu, mais taberna do que mercearia e que também vendia tecidos.

Na rua do Norte havia ainda a loja da “Glória do Russo”, da mãe do Manuel Neto. Era uma taberna que servia refeições ligeiras. E na rua de D. Jorge de Lencastre, na “Ferreirinha”, vendia-se vinho ao copo e artigos de retrosaria. Todas elas sem esquecer a do “João Baunites”, o Sarrazola, pai dos meus bons amigos Liliana e Zacarias; e a pequenina taberna da “Maria da Venda”, na rua do Vento.

Ainda nesta rua do Vento houve também a loja do “Joaquim Frio” (que foi de Ramiro Rodrigues Terrível) e a loja do “Vareiro” (do Libânio, que veio de Ovar), esta que se situava próximo da Capela de São Bartolomeu.

Eram estes os pontos de encontro das gentes da Beira-Mar, onde se bebia um copo, onde se jogava às cartas, onde se discutia a cidade, onde se celebravam os negócios do sal e do peixe.

Para o pão, havia a “Padaria do Zé”, na esquina da rua do Vento, e a “Padaria do Jaime do Forno”, numa paralela à rua de D. Jorge de Lencastre. Mas quem vendia mais pão em toda a Beira-Mar era a “Maria de Aradas”, casada com o Zé Padeiro, irmão do João Sacristão que, para além de o ser, era quem fazia a maior parte das matanças dos porcos que quase todas as famílias criavam em currais do lado norte do canal de São Roque. Os clientes deixavam as sacas na porta e a “Maria de Aradas” já sabia, pelo uso, quanto pão cada um queria. Segundo me disse o meu primo Aguinaldo, ainda hoje o seu pão é distribuído, porta a porta, lá no Bairro.

O chefe Vidal, o da Polícia de Segurança Pública de então, sabia muito bem que não valia a pena mandar guardas para a Beira-Mar. Nem eles eram bem vistos, com farda de serviço, quando, por engano, se atreviam a percorrer as ruas do Bairro. As portas ficavam sempre no trinco, com as chaves do lado de fora, só para o que desse e viesse. Não porque houvesse medo de roubos. Isso não, pois que na Beira-Mar todos se conheciam; não havia gente má no seio dos cagaréus, proclamavam eles aos quatro ventos. Este era, verdadeiramente, o conceito em que todos se tinham. Bastava que alguém deixasse de passar à hora habitual pelos lugares do seu costume para que os vizinhos se apressurassem a saber o que se passava de anormal e se era precisa ajuda. Alguém doente e, certo e sabido, logo aparecia um caldo de galinha ou um chazinho a preceito.

GASPAR ALBINO 4-04-2005

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4 - A Fonte dos meus Amores    5 - As raízes da Arte Abstracta - 1910 a 1920      6 - Angústia para um Natal
7 - A Torre de Anto na vertigem poética de Mário de Sá-Carneiro     8 - Notícias breves da Escola
9 - Evolução da vida - História por acabar     10 - Escrita da Casa - Poesia     11 - Hora do Recreio


 

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