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                  Responsáveis do Governo queriam 
                  fogo-de-artifício. E propaganda. Assim se comemoraram os 
                  Descobrimentos. E se gastaram milhões. 
                  
                  PAULO PENA 
                  
                  
                  _________________________________ 
                  
                    
                      
                      
                        | 
                      
                       
                      
                      ESTA ENTREVISTA DEVIA ostentar uma bolinha 
                      vermelha, no canto superior direito da página. É 
                      desaconselhada a contribuintes sensíveis ao despesismo. 
                      Aqui se conta como, por más decisões, escolhas políticas 
                      questionáveis ou programas propagandísticos, se gastaram 
                      milhões de contos. E como o resultado desses gastos se 
                      esvaiu. Uma ópera, que tanto podia servir para comemorar 
                      Vasco da Gama ou «o Gengis Khan», uma fragata que foi 
                      reconstruída para ficar, para sempre, ancorada e a 
                      apodrecer, arte ao abandono, livros desaparecidos, cd-roms 
                      pagos e não editados.    | 
                     
                   
                  
                  O ex-comissário para as 
                  Comemorações dos Descobrimentos Portugueses de 1995 a Janeiro 
                  de 1999, António Hespanha, que sucedeu a Vasco Graça Moura, a 
                  quem não poupa, implicitamente, críticas, resolve reabrir a 
                  ferida. Este professor de História do Direito começa por falar 
                  de desencanto. Indigna-se, naturalmente. Mas acaba por lançar 
                  ideias e sugestões. À atenção de futuros comissários de 
                  futuras comemorações. 
                  
                  VISÃO: 
                  Fez, na revista História, um balanço desencantado da sua 
                  participação na Comissão dos Descobrimentos. «Sempre que pude 
                  disse que não. Só me arrependo de quando disse sim.» Era 
                  difícil dizer não? 
                  ANTÓNIO HESPANHA: Não faço um balanço desencantado da 
                  minha participação na Comissão. A lista do que se fez lá é 
                  impressionante. O meu desencanto tem a ver com o 
                  reconhecimento público das coisas que eu considerava 
                  importantes. E o desencontro entre aquilo que, implícita ou 
                  expressamente, me era pedido, e aquilo que eu achava que devia 
                  ser feito. 
                  
                  E eram-lhe pedidas muitas 
                  coisas contrárias à sua estratégia? 
                  Eram. Demorei algum tempo a perceber que, mais importante do 
                  que fazer, era saber que se estava a fazer, ainda que não se 
                  fizesse. Era criar uma imagem exterior, virtual, se possível 
                  grandiosa, embora pudesse nunca chegar a ser feito. 
                  
                  Era, como lhe chama, um 
                  «programa de fátuas vaidades»? 
                  É. Normalmente, as vaidades são fátuas. Mas o que são, 
                  sobretudo, é caras! 
                  
                  Pode dar um exemplo? 
                  Olhe, uma noite de fogo-de-artifício, no Tejo, que foi uma 
                  coisa a que resisti, custava, na altura, 120 mil contos (600 
                  mil euros). Eu, com esse dinheiro, faria 40 livros... 
                  
                  E quem lhe pedia o 
                  fogo-de-artifício? 
                  Toda a gente. Eu dependia do gabinete do primeiro-ministro. 
                  Quero fazer-lhe essa justiça, não me recordo de, alguma vez, 
                  António Guterres me ter pedido uma noitada de 
                  fogo-de-artifício. Mas houve pessoas que me disseram «homem, 
                  que diabo, é preciso dar visibilidade a isto, faça lá o 
                  fogo-de-artifício!» E eram pessoas de responsabilidade 
                  governativa. 
                  
                  Não quer nomeá-Ias? 
                  Não, já lá vão alguns anos. Tenho ideia de que o trabalho da 
                  Comissão não era muito bem visto no seio do Governo e de 
                  alguma imprensa oficiosa porque não dava satisfação àquilo que 
                  se entendia ser uma apetência popular por umas comemorações 
                  deste género. A que se juntava um outro sentimento, mais 
                  político. Já então se dizia que vivíamos num período de crise 
                  e «o povo português» precisava de um grande impulso para 
                  vencer o desafio europeu, e esse impulso far-se-ia através da 
                  criação de um ambiente psicológico favorável. Esse ambiente 
                  faz-se pelo cultivo do ego nacional. Recordo que, em meios 
                  políticos muito importantes, havia esta ideia: o País precisa 
                  de um impulso de psicologia colectiva. Que é uma ideia que os 
                  nossos intelectuais defendiam, no século XIX. Está teorizado, 
                  é através dos exemplos dos heróis que se cria uma vontade 
                  colectiva para vencer esta mediocridade. 
                  
                  Essa é uma tentação inscrita 
                  nos genes do poder? 
                  Não. Não acredito em inscrições genéticas. Mas há sempre 
                  intelectuais que acham que, em épocas de crise, o povo precisa 
                  de ser animado para fazer coisas grandes, isso há. E eu 
                  assisti. 
                  
                  Herdou, do mandato anterior, a 
                  ópera Corvo Branco, de Phillip Glass. Devia ter-se dito que 
                  não? 
                  Claro que teria dito que não. E isto não tem nada a ver com os 
                  meus gostos, musicais ou artísticos. Quando lá cheguei, o 
                  contrato já estava assinado, e tinha entrado numa fase 
                  contenciosa, porque o Glass tinha posto o assunto em 
                  tribunal!... 
                  
                  O Estado já lhe devia 
                  dinheiro? 
                  Nunca se tinha pago nada! Portanto, eu, por uma questão de 
                  pundonor nacional, porque um tipo, a certa altura, tem 
                  vergonha na cara... Isto está contratado com o Estado 
                  português e eu, naquelas funções, sou mais do que eu. Paguei. 
                  Mas era uma coisa que não teria subscrito. Em primeiro lugar, 
                  porque era uma verba enorme e o resultado foi pequeno... A 
                  ópera, se tinha alguma coisa a ver com o Vasco da Gama, também 
                  poderia ter a ver com o Gengis Khan. Ou seja, nada... 
                  
                  Essa ópera teve apenas três 
                  representações em Portugal, custou cerca de 1,5 milhões de 
                  euros, e nem sequer houve a Possibilidade, contratual, de a 
                  gravar em áudio ou vídeo... 
                  Exactamente. A única coisa que tenho é uma fotocópia da 
                  partitura escrita. Foi tudo o que ficou da ópera. 
                  
                  Quando foi representada 
                  noutros países (Espanha ou EUA), não havia qualquer 
                  contextualização nem uma referência a quem a encomendou, ou 
                  seja, Portugal... 
                  O que seria interessante é saber porquê. Porquê uma ópera do 
                  Phillip Glass? Ele escreveu-a mesmo para estas comemorações ou 
                  era uma coisa que ele já lá tinha para estas ou para outras? 
                  Confesso que, na altura, pensei que era para estas ou para 
                  outras. 
                  
                  Os figurinos foram 
                  «emprestado» ao Teatro Real de Madrid, porque não havia, em 
                  Portugal, sítio para os guardar... 
                  Aí, entramos noutro assunto, que é o destino do património da 
                  Comissão. O Estado está a vender, a preço de saldo, a três 
                  contos, a obra completa do Gil Vicente, em cd-rom que é um 
                  Estado rico. Na Biblioteca Nacional há lá uns quantos. 
                  
                  Outro caso que herdou, e de 
                  que se arrepende, foi a reconstrução da
                  fragata D. Fernando e 
                  Glória. O Estado tinha o compromisso de pagar um quarto de uma 
                  verba indeterminada. Como é possível? 
                  Não sei... É um contrato mal feito, por um jurista, insensato. 
                  Quem é a outra parte? Uma série de oficiais da Marinha que 
                  sabem o que estão a fazer. Dei-me logo conta, quando entrei, 
                  de muitas coisas estranhas: as pessoas não sabiam orçamentar 
                  nem temporizar a obra. Já me abstraio de saber se era uma 
                  reconstrução ou não... 
                  
                  Essa recuperação nunca 
                  contemplou a hipótese de a nau poder vir a navegar. É normal 
                  que se gaste cerca de 10 milhões de euros, num barco 
                  encalhado? 
                  Aquilo teria interesse se pudesse viajar, como a Sagres ou o 
                  Crioula, Mas havia a ideia de que não podia ter motor, porque 
                  a da altura também não tinha. Como, segundo as regras do mar, 
                  ela só pode viajar com um barco a motor ao lado, a fragata não 
                  podia sair dali. Esteve na Expo, depois foi arrumada, logo 
                  mal, em Alcântara, onde perdeu a visibilidade, e agora está a 
                  apodrecer no Alfeite. Triste destino. Também devo dizer que 
                  fui eu quem começou a pagar. Isto estava tudo contratualizado, 
                  mas de dinheiro... nicles. Nada. Os almirantes vieram ter 
                  comigo muito preocupados. Era a táctica de assinar os 
                  contratos e não os pagar. 
                  
                  No seu consulado foi paga a 
                  edição em cd de obras completas como a do Padre António 
                  Vieira. Oito anos depois, onde pára essa edição? 
                  Não faço ideia nenhuma. Alguns foram publicados. Um Estado que 
                  até vende as casas dos cantoneiros tem património que não 
                  valoriza. Um cd daqueles, para um investigador, tem um valor 
                  muito alto. Estão a vender um cd desses mais barato que um 
                  disco do Quim Barreiros, sem ofensa para ele. 
                  
                  Quem são as entidades 
                  envolvidas nesse negócio? 
                  É património do Estado português. Quando a Comissão acabou, o 
                  espólio foi recolhido pelo Ministério da Cultura. E é gerido, 
                  penso eu, dentro do ministério. Algumas coisas tê-las-á dado. 
                  Mas não se sabe bem... 
                  
                  Há muita opacidade? 
                  Total! Há cds terminados e não feitos. Alguns podem já não ter 
                  matrizes. Quando vou ao Brasil, perguntam-me sempre pela obra 
                  completa do Vieira. Os brasileiros deitam as mãos à cabeça. 
                  Ando a perseguir isso, e a tentar, de uma maneira qualquer, 
                  que não seja completamente ilegal [risos], que sejam editados 
                  por outra entidade qualquer. Por exemplo, a Biblioteca 
                  Nacional, já sugeri isso ao director, ou uma universidade. 
                  
                  Há mais exemplos? 
                  Fizeram-se três grandes exposições, no Porto. Cada uma custou 
                  cerca de 200 mil contos. A segunda tinha maquetas enormes de 
                  fortalezas da Índia. Onde estão? Não faço ideia. Também não 
                  tenho de saber... Para a terceira exposição, sobre o 
                  Orientalismo, foram restaurados veículos indianos. Estava tudo 
                  a cair de podre. Restaurou-se. Onde está isso? Deve estar 
                  outra vez podre. Onde estão os livros, milhares, que valem 
                  dinheiro? 
                  
                  Tudo o que estava em armazém 
                  «desapareceu», após o fim da Comissão? 
                   
                  Houve uma comissão liquidatária. É preciso defender o 
                  património do Estado.  
                  
                  Comemorar é criar uma fachada 
                  efémera? 
                  É. É isso. Os brasileiros perceberam bem que comemorar é criar 
                  instrumentos para a produção de saber. Aqui, fizemos a mesma 
                  opção, com amargos de boca. Porque fazer um livro, ou um cd, 
                  não é nada! O que fica é a infra-estrutura. O que é que ficou 
                  das comemorações do Infante D. Henrique, de 1960? Ficou os 
                  Portugaliae Monumenta Cartographica. É evidente que pode 
                  ser mais do que isso. 
                  
                  Então, o que deve ser? 
                  Pode ser, também, o tal fogacho. A tal coisa de «interessar o 
                  grande público pela história». Mas há uma questão ética. Não 
                  se pode levar as pessoas atrás de falsas ideias, porque senão 
                  é propaganda. As pessoas distraem-se com a Cultura. A História 
                  é uma zona sempre esquecida. Nós temos arquivos que, talvez 
                  com a excepção do Reino Unido, digo talvez, são os arquivos 
                  mais importantes para a História do Mundo! A Torre do Tombo, o 
                  arquivo Histórico Ultramarino, o arquivo da Sociedade 
                  Portuguesa de Geografia, que vive numa pobreza envergonhada, e 
                  qualquer dia arde, e o arquivo da Ajuda. Cobrem desde a 
                  América até ao Japão. E desde o início da Expansão, coisa que 
                  os ingleses não têm. Do ponto de vista económico, desde que 
                  rentabilizados, estes arquivos davam muito dinheiro. Os 
                  historiadores e investigadores estrangeiros tinham de cá vir. 
                  E isso quer dizer hotel, restaurante, promoção do País, quer 
                  dizer relançamento da História da Expansão Portuguesa, que é 
                  uma matéria investigada, praticamente, só por portugueses. A 
                  atracção da Espanha é muito forte. Nos EUA, as cátedras de 
                  História da Expansão são dominadas por especialistas na 
                  Expansão Espanhola. A História podia ter mais atenção. Agora, 
                  houve o acordo com o MIT. Porque não se pensa fazer algo de 
                  semelhante para a História? Com muito menos dinheiro. Este 
                  esquecimento da História é paradoxal.  |