Este é o quarto livro de poemas que
vejo publicado. Estou a omitir um pequeno conjunto de poemas chamado
A Taça e o Brinde que veio à luz do dia no único número da Revista
Êxodo (Coimbra, 1961), já lá vão 43 anos.
Êxodo era dirigida por João Vário,
Rui Mendes e por mim próprio e inseria no seu primeiro e único
número colaboração de Louzã Henriques (um artigo sobre estética) e
Herberto Hélder (um artigo sobre arte poética) para além de poemas
dos seus directores.
Aproveito para tornar público pela
primeira vez onde fui eu desencantar este título. Pois bem, por essa
altura apareceu em Portugal o filme Sorrisos de uma noite de verão
de Ingmar Bergman, que vi aqui em Coimbra no velho Teatro Avenida,
filme que vi várias vezes e onde existia uma cena muito bela em que
se fazia um brinde. A câmara dava imagens das diferentes personagens
erguendo a sua taça e em silêncio (em segredo, melhor direi)
formulavam um voto. A actriz principal chamava-se, se não erro Ulla
Jacobson.
A Taça e o Brinde, conjunto de
poemas que não está publicado em livro mas que eu nunca enjeitei
constituía, contudo, um caminho vanguardista mas a meu ver sem
saída. Uma linguagem esotérica servida por um manancial de
aliterações e de enjambements como frisou o Prof. Arnaldo
Saraiva em O Tempo e o Modo (nº 53 de Julho de 1961), levou-me à
conclusão de que me encontrava num beco sem saída.
Os tempos que se seguem são
complicados porque logo me dei conta que não era fácil conjugar a
vida profissional (no seu início) com a literatura. Surge o 25 de
Abril e o apelo foi tão forte que eu não resisti. O primeiro livro
vai agrupar poemas que foram escritos entre 1962 e 1983 (um
intervalo de 21 anos) e essa é uma das razões da sua
heterogeneidade, da sua falta de unidade e de coerência. Foi o
penúltimo livro editado pela Vértice de Coimbra (antes de ela passar
para a Caminho).
O seguinte é Entre Sono e Abandono
(1990) e é uma edição da Livraria Estante de Aveiro. Creio que é um
livro da maturidade e é, porventura, o primeiro livro de poemas que
em Portugal vem reflectir a problemática ambiental. Não é por acaso
que ele se encontra dividido nos 4 elementos da antiga Grécia (Do
fogo, da terra, da água e do ar) a que se junta uma 5ª parte chamada
Memória e contra-memória.
O terceiro livro As Casas
Pressentidas (1999) é, certamente, dos três o mais coerente e aquele
que foi saudado com mais interesse pela crítica, nomeadamente o
artigo de Eugénio Lisboa em Ler (nº 47, Outono, 1999) mas também as
muitas cartas que recebi de gente ligada à literatura.
Se exceptuarmos alguns poemas onde
era visível uma certa esperança para o futuro da humanidade (Poemas
do Tempo Incerto, 1983), o que se encontra na minha poesia é
certamente a consciência lúcida (?) de que Deus está morto porque a
humanidade o matou e essa mesma humanidade não foi capaz de
substituir Deus como veículo intermediário capaz de nos permitir
atingir o objectivo da nossa realização humana. O modelo colectivo
falhou e assim ficámos ainda mais pobres e aparentemente sem
alternativa viável. Aquelas opções que os políticos nos propõem não
são mais do que a expressão da sua ignorância, da sua falta de
sensibilidade, das suas vistas curtas que mais não pretendem do que
reduzir o mundo a um sistema fechado de deve – haver de uma
contabilidade triste e sem asas. Essas qualidades trazem-me à
memória aquelas palavras de Aquilino que dos fidalgos do tempo de
Camões dizia: eram ignaros como seus cavalos de raça e disso faziam
gala (cit. de O Aprendiz de Feiticeiro de Carlos de Oliveira). É
claro que como em tudo admito excepções mas a regra geral é esta:
irão todos ou quase todos parar ao caixote do lixo da história mas é
provável que daqui a 50 anos ainda se fale de Camões, de
Shakespeare, de Cervantes, de William Faulkner ou de Stendhal ou de
Balzac ou de Eugénio de Andrade para não me alongar na lista.
Que nos resta então? Porque o
problema é esse, é saber se nos podemos agarrar a qualquer coisa que
nos dignifique, que não nos transforme definitivamente em pequenos
poltrões sem grandeza nem verticalidade.
Eu só vejo uma saída e essa saída é
a arte que assim tenderá a transformar-se de estética em ética, ou
para ser menos radical, poderá aproximar estes dois conceitos um do
outro.
Como o dizia já René Char, «Nous
n’avons qu’une ressource avec la mort: faire de l’art avant elle (Quitter)»
ou seja, Nós só temos um recurso contra a morte: fazer arte antes
que ela (a morte) o faça.
Olhando para trás, para os poemas
que fui escrevendo, às vezes tão dolorosamente, verifico que fui
falando quase sempre do mesmo, da memória. Socorro-me de uma grande
senhora da literatura, a romancista Marguerite Yourcenar que em Les
Yeux Ouverts dizia:
“Quand on aime la vie, on
aime le passé parce que c’est le présent tel qu’il a survécu dans la
mémoire humaine” ou seja
Quando se ama a vida, ama-se o passado porque ele não é mais do que
o presente tal como sobreviveu na memória humana”.
Se pensarmos agora como Italo
Calvino que Memória e Esquecimento são duas entidades complementares
(Seis Propostas para o Próximo Milénio), então fica claro que ao
falar, neste livro, do esquecimento, eu não estou a fazer mais do
que dar continuidade a um discurso que já tem longos anos.
É claro que por esse discurso
passaram outros temas ou subtemas: lugares que visitei, homenagem a
pessoas que admirei e que a morte levou consigo (Poemas do Tempo
Incerto, 1983), os problemas decorrentes da má gestão do ambiente
(Entre Sono e Abandono, 1990), as casas como lugar privilegiado para
o relacionamento humano (As Casas Pressentidas, 1999) e como um
cimento a ligar tudo isto a mãe natureza pela qual eu nutro desde
sempre um carinho muito grande. Tenho perguntado a mim mesmo se não
foi esse amor que me levou à Faculdade de Ciências e ao curso de
Ciências Geológicas. Não sei. Não sei mas apetece-me dizer como
Ramos Rosa no seu célebre poema O Boi da Paciência de Viagem através
de uma Nebulosa (1960): Quereria gritar: Dêem-me árvores para um
novo recomeço! / Aproximem-me a natureza até que a cheire.
Porque escolhi, à margem da
actividade profissional, a literatura e não outra actividade? Também
não sei. Se calhar pela mesma razão que levou o mesmo Calvino a
dizer: “A minha confiança no futuro da literatura consiste em saber
que há coisas que só a literatura com os seus meios específicos pode
dar-nos”. Terá sido assim? Se o foi, foi-o de forma não consciente.
O Melo Neto dizia numa entrevista (cito de cor) que poderia ter sido
pintor mas acabou sendo poeta porque se integrou numa tertúlia de
poetas, o que significa que o acaso teria aí jogado o seu papel. Não
sei e nem me parece que tenha muito interesse esta discussão. Ele
que já morreu continua a ser um dos maiores poetas de língua
portuguesa do séc. XX e ponto final.
O esquecimento, tema de Nas Colinas
do Esquecimento é, naturalmente, o agente corrosivo da nossa
sociedade e do nosso tempo.
Por um lado, gostaríamos de
esquecer alguns grandes dramas de que diariamente nos dão
conhecimento: as guerras com o seu cortejo de ignomínia, de asco, de
impotência nossa para nos opormos ao sadismo, à violência gratuita
quantas vezes programada em instituições de países ditos
democráticos. Por outro lado não deveríamos esquecer aquele que
precisa de nós, às vezes apenas de uma palavra nossa, não deveríamos
esquecer aquilo que de melhor herdámos de nossos pais, de nossos
avós, dessa cadeia da qual somos o último anel ou o anel mais
recente.
É disso que fala, modestamente
embora, o meu livro. É por isso um livro ainda mais desencantado do
que os anteriores. Nem Deus nem a humanidade tomada no seu todo têm
nele lugar. Estão lá certamente umas tantas pessoas que ao longo da
vida me têm ajudado depositando em mim a confiança sem a qual não é
possível viver e às quais por isso mesmo estou gratíssimo.
O resto é trabalho de cinzel:
aparando daqui, ajeitando dali até que no poema não caiba mais
nenhuma palavra ou dele se não possa retirar nenhuma sem correr o
risco da estrutura se desmoronar... como um puzzle, diria eu.
Citando ainda Carlos de Oliveira (op.
cit.): Nós, escritores, trabalhamos com palavras. Não nos é lícito
ignorar que podem ser uma arma de força terrível ou terrivelmente
frágeis. Podem apoucar as verdades ou revelar-lhes os gumes mais
finos e luminosos. O nosso ofício consiste em escolher as palavras,
utilizá-las no momento exacto, atenuá-las, engrandecê-las,
dominá-las. E o que são as palavras? Língua, linguagem, povo,
oralidade, escrita, herança literária. A reestruturação da técnica
narrativa ou poética tem de conhecer até ao pormenor a matéria de
que se serve. Ou então a literatura é uma batata.
E o que é a poesia? Aí está outra
pergunta de resposta difícil ou impossível. Diz Paul Valéry: A
poesia é uma hesitação prolongada entre o sentido e o som (Cit. de
Eugénio Lisboa) ou então a música é a lógica do verso (Afonso
Duarte).
Afastámo-nos demasiado da natureza,
em muitos casos de modo irreversível e é essa irreversibilidade que
mais nos aproxima do fim, nos dá uma consciência clara da morte, não
como coisa natural, evento em continuidade mas antes em ruptura, em
desastre, em acidente.
Também a natureza está neste livro
como já estava nos outros, de resto, (como já atrás se disse),
natureza que não vejo com a perspectiva de Sá de Miranda ou de
Bernardim ou de Gil Vicente mas como alguém que até por razões
profissionais a conhece um pouco por dentro e não apenas por alguns
traços exteriores, significativos sem dúvida, mas não suficientes
para ajuizar da sua importância para a humanidade e até mesmo com a
consciência de que a natureza pôde existir até há cerca de 3 milhões
de anos atrás sem a presença do homem. A natureza não precisa dele.
É o homem que precisa da natureza. Diz-se frequentemente que estamos
a destruir a natureza. Obviamente que sim. Terá a natureza
capacidade de se regenerar? Penso que sim. Basta que a natureza “se
vingue” e mate o próprio homem, enquanto espécie. Adeus humanidade,
adeus a não sei quantos séculos de arte, de ciência, de cultura numa
palavra.
Por isso, se torna absolutamente
necessário encontrar o tal equilíbrio muito difícil para que a
natureza possa servir o homem sem ultrapassar os limites a partir
dos quais os mecanismos de evolução são irreversíveis; é o
equilíbrio do “fio da navalha” ou o de uma “faca só lâmina” para
citar mais uma vez João Cabral de Melo Neto.
Carlos de Oliveira mais uma vez:
Sartre diz algures que “o rigor científico reclama em cada um de nós
outro rigor mais difícil, que o equilibra: o rigor poético”
sublinhando que se trata de duas formas culturais “complementares”.
Foi a procura do rigor poético que
levou Carlos de Oliveira a falar de micro-rigor (Micropaisagem –
Estalactite) e Eugénio de Andrade a dar por título a um dos seus
livros Ostinato Rigore.
Entendo esse rigor ou tenho
pretendido levá-lo a cabo através de uma linguagem substantiva, sem
“rodriguinhos” como antigamente lhe chamávamos, sem concessões aos
processos fáceis que fazem por vezes as delícias dos não iniciados.
É uma linguagem de grande contenção, de grande austeridade.
Ornamentações, costumo dizer, só nas obras de Johann Sebastian Bach.
A poesia é uma coisa séria e exige muito trabalho: semanas à procura
de uma palavra, correcção de um poema seis meses depois de ter sido
escrito reduzindo-o a um terço, etc. etc. mas isso, isso são os
ossos do ofício.
O operador fundamental desta poesia
é a metáfora (ao nível do significado) mas sempre com conta, peso e
medida, isto é, sem transformar o poema num cacho de metáforas que
teria por consequência a sua diluição e o consequente
enfraquecimento do seu sentido.
Ao nível do significante, eu diria
que há uma vigilância muito aturada para que os mesmos sons se não
repitam de modo a comprometer o equilíbrio da música, da prosódia.
Se atentarem bem, verão que os grupos vocálicos variam continuamente
e o ritmo é escolhido de forma a servir uma ideia que se pretende
transmitir. Desse modo, julgo eu, ultrapasso aquela antinomia
forma-conteúdo que fez correr rios de tinta nas páginas literárias
dos anos 50 e 60 e que não tinha qualquer sentido.
Se há alguma coisa de
verdadeiramente extraordinário na arte, e na poesia em particular, é
o seu carácter unitário, aquela qualidade que faz dele um todo único
e harmonioso. (Tenho consciência de como posso ser mal entendido ao
falar de harmonia em arte, mas sei do que estou a falar).
Voltando à natureza porque essa é
uma das minhas obsessões (está-me nos olhos, nos ouvidos, no
olfacto, no gosto, no tacto e sobre isso há um poema neste livro, p.
34) direi que não é pois, por acaso, que dos últimos quatro poemas
três deles sejam dedicados aos três reinos da natureza na velha
classificação de Aristóteles: Por vezes uma ave (reino animal), Uma
árvore (reino vegetal) e O circo glaciar de Gavarnie (reino
mineral).
Quanto ao último poema deste livro,
ele é talvez a conclusão óbvia e eu vou lê-lo e nessa leitura, não
só agradeço a vossa presença que traduz a vossa amizade e que a mim
mais do que tudo me sensibiliza:
Movo-me agora
Movo-me agora
por entre as águas dúbias
do esquecimento
através de névoas
de opacas cortinas de metal
de ruídos desperdícios
coisas espúrias
da torpe acidez
de algumas palavras
e de outros sinais rarefeitos
sílabas viscosas
sobre a margem do pântano
em que habito
Sei assim que estou vivo
neste cemitério
onde os mortos crescem
desmesuradamente
Estão aqui os que esquecem
e os que não querem lembrar-se
Que diferença faz? |