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Os poetas e a natureza

Luís Serrano

 

16 c) - FERNANDO PESSOA, ortónimo

 

Há um poema muito conhecido, Chuva Oblíqua, (Pessoa, 1987) de que apresentamos aqui apenas o poema I (p.27-28) que é um exemplo de interseccionismo (Intersecção de tudo, Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos - p.30) e onde a natureza se cruza com o homem e a memória do homem, isto é, as fronteiras dos vários reais tornam-se esfumadas e adquirem uma carga polissémica que é nova na poesia portuguesa:

 

                        Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

                        E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

                        Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

                        Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

 

                        O porto que sonho é sombrio e pálido

                        E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

                        Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

                        E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

 

                        Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

                        O vulto do cais é a estrada nítida e calma

                        Que se levanta e se ergue como um muro,

                        E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

                        Com uma horizontalidade vertical,

                        E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

 

                        Não sei quem me sonho...

                        Súbito toda a água do mar do porto é transparente

                        E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

                        Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto,

                        E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

                        Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

                        E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

                        E passa para o outro lado da minha alma...

 

16d)Álvaro de Campos - Não existe relação com a natureza em A.C. É um poeta urbano da era industrial virado para um futuro em que a natureza não tem lugar.

Poemas como Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra (Pessoa, s/d: 37-39), Grandes são os desertos, e tudo é deserto (p.43-45) e Ode Marítima (p.162-203) não constituem reflexões sobre a natureza embora haja alusões a ela.

No poema Na casa defronte de mim e dos meus sonhos... (p.56-57) há um verso que diz: O homem à natureza, porque a cidade é natureza. Trata-se de um sentido que entra em conflito com o sentido de natureza que temos admitido em toda esta exposição, o de que ela (a natureza) abrange o mundo mineral e o mundo dos seres vivos com total exclusão do mundo criado pelo homem.

No entanto, chamamos a atenção para o poema da p.102 em que se lê: Mas por mais rosas e lírios que me dês/ eu nunca acharei que a vida é bastante./ Faltar-me-à sempre qualquer coisa,/. Não há, propriamente, uma recusa formal da natureza mas a sua influência parece ser modesta para Álvaro de Campos.

 

17.CARLOS DE OLIVEIRA (1921 - 1981)

 

Em Carlos de Oliveira, a natureza penetra na sua poesia, fundamentalmente, através das areias da Gândara e também através dos calcários de Ançã, isto pelo que toca ao mundo mineral. Em relação aos seres vivos aparecem os pinheiros mas também os musgos e os líquenes, símbolos da degradação.

Eu diria que há um grande tema na obra deste escritor: a Gândara com uma abordagem a que eu chamaria a degradação das relações humanas.

Neste contexto, a rotura entre os grupos sociais, rotura sem qualquer apelo, vem enfatizada pelo próprio carácter efémero da paisagem: dunas que se deslocam sob a acção do vento, calcários que se dissolvem para dar origem a grutas e que reprecipitam mais além numa série de processos degradativos-agradativos.

Deste jogo de acções e reacções dá-nos conta de um modo paradigmático o poema Estalactite  (Oliveira, 1968). Um tal conjunto de conflitos ao nível da paisagem (visível de resto em Finisterra) constitui uma metáfora da sociedade gandaresa, ela própria um microcosmos de um universo mais geral.

Em Estalactite, Carlos de Oliveira trata o tema dos calcários de Ançã, tão cheios de ressonâncias culturais, quer em termos de metáfora da própria condição humana quer em termos de Arte Poética. Vejamos alguns excertos:

 

VII       O pulsar/ das palavras,/ atraídas/ ao chão/ desta colina/ por uma densidade/ que palpita/ entre/ a cal/ e a água,/ lembra/ o das estrelas/ antes de caírem./

VIII      Caem/ do céu calcário,/ acordam flores/ milénios depois,/ rolam/ de verso/ em verso/ fechadas/ como gotas,/ e ouve-se/ ao fim/ da página/ um murmúrio/ orvalhado./

IX            Imaginar/ o som do orvalho,/ transmiti-lo/ de flor para flor,/ guiá-lo/ através do espaço/ gradualmente espesso/ onde se move/ agora/ [água cal],/ e captá-lo como/ se nascesse/ apenas/ por ser escrito./

XI        O peso/ da água/ a tal distância/ é quase/ imperceptível,/ porém pesa,/ paira,/ poisa no papel/ um passado/ de pedra/ [cal colina]/ que queima/ quando/ cai./

XII            Registar/ nessa memória/ ao contrário/ de trás/ para diante/ as palavras/ que ficam/ assim/ misteriosas/ e depois/ soletrá-las/ do fim/ para/ o princípio,/

XIII      olhá-las/ como imagens/ no espelho/ que as reflecte/ de novo/ compreensíveis/ e tornar/ a juntá-las/ obsessivamente/ ao ritmo da pedra/ dissolvida/ quando poisa/ gota a gota/ nas flores antecipadas,/

XIV     perdê-las/ entre a cal e a água/ espaço/ de tensões obscuras/ que passa/ pelo cristal/ esquivo/ entre a água e a cal/ reavê-las/ num grau de pureza/

XV            extrema,/ insuportável,/ quando/ o poema/ atinge/ tal/ concentração/ que transforma/ a própria/ lucidez/ em energia/ e explode/ para sair/ de si:/

 

Podemos talvez dizer que o poema não é mais do que o instantâneo sobre a purificação do real (reconstrução), daquele exacto momento da superação dialéctica, ou seja da resolução das contradições erosão-reconstrução. onde são visíveis entre outras coisas a semelhança entre a construção do poema (purificação das palavras) e a construção-erosão da paisagem calcária. A polissemia é obtida aqui quer por analogia quer por um esforço de contenção e contensão que aproxima as palavras até quase à sobreposição levando à fusão de significados.

Também o poema Árvore  merece algumas palavras já que traduz a ligação à terra, à areia da própria família do poeta. Vejamos excertos:

 

I           As raízes da árvore/ rebentam/ nesta página/ inesperadamente,/[...]

III            [...]como podem/ crescer [as raízes]/ de tal modo

IV        no poema,/ se a árvore/ foi dispersa/ em pranchas de soalho,/ em móveis e baús/ que fecham/ para sempre/ coisas/ tão esquecidas,/como podem/ romper/ de súbito impetuosas/ na aridez/ do livro/

V         e perseguir-me/ assim,/ se a areia/ donde vêm/ já vitrificada/ pelo tempo/ oculta/ a árvore que morreu://procuram/ instalar-se/ no interior da linguagem/ ou substituí-la/ por uma/ infiltração/

VI        quase/ mortalizante:/ mas/ de repente/ como apareceram/ as raízes sossegam/ [que terão/ encontrado?]/ e retiram/ com o mesmo fluxo/ do mar que se retrai/ e deixa/ atrás de si/ silêncio:/

VII       é então que vejo/ no halo mais antigo/ a árvore desolada,/ os ramos em que poisam/ as aves/ doutros livros,/ e pressinto/ as raízes/ através da sílica/ onde a família dorme/ com os ossos dispostos/ nessa arquitectura/ duvidosa/ de símbolos/

VIII      que chegaram/ aqui/ de mão em mão/ para caberem todos/ na constelação/ exígua/ que fulgura/ ao canto do quarto:/ o baú ponteado/ como o céu/ por tachas amarelas,/ por estrelas/ pregadas na madeira/ da árvore.//

 

Neste poema como noutros as coisas transformam-se umas nas outras: a árvore com as suas raízes a transformar-se em móveis onde se guardam memórias, árvore cujas raízes mergulhavam na sílica onde hoje repousam os antepassados e o ciclo fecha-se. O homem e a natureza estão juntos ou é uma parte dela mesma.

 

 

18.LUÍS SERRANO (1938-)

 

A natureza já não é um prolongamento de Deus, não é tão pouco uma metáfora da vida humana e portanto não tem sentido antropomorfizá-la. A natureza existia muito antes de haver o homem e continuará, por certo a existir após o desaparecimento da espécie humana. Não vai ter de ser pensada para existir. Mas a possibilidade de uma catástrofe que arrastasse a morte do homem e de muitas outras espécies, animais e vegetais, vem pôr em evidência a necessidade cada vez maior de o homem tentar retomar o equíbrio perdido com a natureza, não para a explorar irracionalmente mas para se integrar nela, se porventura isso ainda for possível embora tudo aponte para a hipótese de ser já tarde de mais.

Isso não pode deixar de criar nos artistas uma grande angústia e o sentimento decadentista de que perdemos todas as batalhas e que para nós (ou para alguns de nós, pelo menos) não há mais esperança.

Este sentimento de paraíso perdido está bem patente em poemas de Entre Sono e Abandono

(1990) como por exemplo Respiro as Margens dum Tempo

 

                                    Respiro

                                    as margens dum tempo

                                    sem cuidado

 

                                    e o ar é frio

 

                                    atravessa os sulcos

                                    da memória

 

                                    como erva ou ave

                                    suspensa

                                    na manhã breve

 

                                    Há um rio

                                    parado

                                    nesse registo

 

                                    um pomar

                                    com seus aromas

 

                                    altos pinheiros

                                    minados de solidão

                                    e distância

 

                                    Aqui penso

                                    termina o texto ázimo

                                    da infância

 

                                    Reinvento

                                    o que dela resta

                                    noutro idioma

 

                                    e uma dor antiga

                                    me dói no vento

 

Num outro poema, Nenhuma chuva (p.39), é evidente a queixa sobre um mundo que caminha obstinadamente para a sua destruição:

                                    Nenhuma chuva

                                    poderá lavar

                                    o rosto

                                    desta terra

                                    antiga

                                    e solitária

 

                                    terra

                                    tocada agora

                                    pelo sopro frio

                                    do abismo

                                    pelas teclas

                                    duras

                                    do metal

 

                                    casa

                                    devorada

                                    pelo filho pródigo

 

                                    quem

                                    te rejuvenescerá

                                    o ventre

                                    se deus está morto?

 

Ao poeta não sobra muito espaço de manobra; talvez um pouco de natureza onde se possa acoitar. É o que se diz em Mais não quero (p.59):

 

                                    Mais

                                    não quero

                                    que árvores acesas

                                    por entre colinas

 

                                    a memória onde ardem

                                    os velhos ícones

 

                                    a sombra do sangue

                                    junto à erva

 

                                    não mais

                                    que a madeira macerada

                                    pelo tempo

 

                                    a velha infusa

                                    barro vivo

                                    onde a água respira

 

                                    cresce

                                    sobre um lado magoado

                                    e fresco

 

                                    mais

                                    não quero

                                    que um eco

                                    de extrema solidão

 

                                    lugar tranquilo

                                    entre bétulas

                                    e animais solícitos

 

CONCLUSÃO

 

            A natureza começou por ser no entendimento dos poetas e no sentimento dos povos, um prolongamento da divindade. A posição do homem era de um profundo respeito por qualquer coisa da qual dependia de uma forma evidente, qualquer coisa que assumia aspectos de generosidade mas também de capricho. Alguns rios foram divinizados (o Nilo), havia um deus que controlava os mares, outro que controlava o raio, etc.etc.

            Depois a natureza deixou de pertencer a deus e passou a ser propriedade do homem e o homem "ajeitou" a natureza às suas necessidades: desviou rios, secou pântanos, construiu portos, estabeleceu pontes e diques. Era um pequeno proprietário, não ainda um explorador e menos ainda uma multi-nacional.

            Depois com a Revolução Industrial, o homem explorou as riquezas minerais, algumas até próximo da exaustão, poluiu os rios e a atmosfera, esgotou os solos, fez desaparecer já um número significativo de espécies animais e vegetais e prepara a sua extinção (a sua dele, homem) com o sorriso irresponsável dos mentecaptos.

            É, talvez, por isso que só hoje aos 57 anos eu compreenda que um escritor sueco do fim do século passado e princípios deste século, Axel Munthe, tenha dedicado uma obra sua, O Livro de San Michele, essa obra maravilhosa que todos leram A Sua Magestade a Rainha da Suécia, protectora dos animais maltratados e Amiga de todos os cães (sic).

            É que, como dizia Eugénio Montale: Abbiamo / fatto del nostro meglio per peggiorare il mondo, o que traduzindo livremente, significa que demos o melhor do nosso esforço para... piorar o mundo.

 

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