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Artigos Publicados


O Ilimitável Oceano

de Eugénio Lisboa

In: “Jornal de Letras”, n.º 804, Julho-Agosto 2001

 

 

Neste livro, editado por Edições Quasi e apoiado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, Eugénio Lisboa lança um olhar sobre outros olhares, alguns dos que tornaram o mundo mais inteligível.

E esse olhar acompanha, de algum modo, a marcha da história ou, se se preferir, a marcha da descoberta científica, resumida e enquadrada, em grande parte, pela geometria, pela física e pela astronomia.

É, assim, que nós vamos passando pela antiguidade clássica em poemas, a propósito de “um astrónomo”, de Thales de Mileto, Anaxágoras, Pitágoras, Empédocles, Demócrito, Euclides, um certo Teodoro, Arquimedes e Ptolomeu e, depois, por um período, que vai do Renascimento ao século XVIII, com Bartolomeu Dias, Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes, Pascal e Newton para, finalmente, sermos confrontados, já na viragem do século XIX para o XX, com poemas sobre Van Gogh, Bohr e Einstein.

É um caminho dos argonautas feito da enorme vontade de conhecer. Como se diz no díptico dedicado a Demócrito: Prefiro entender o que sei/ a poder ser, na Pérsia, rei.

Caminho feito sob o rigor da geometria: Um percurso exacto/ Um discurso claro, como se diz, justamente, no poema dedicado a Euclides, o pai da geometria (p.29).

Mas este caminho do rigor, o caminho da descoberta, tem duas vertentes ou contém em si o seu contrário e isso é particularmente claro com o poema Bohr:

(Perscrutar certos segredos/ que a natureza escondera! é fundamento dos medos/ do frio que nos espera.) ou em Einstein: o que há-de vir depois/ é o frio ou ainda em Oppenheimer: “Sou morte que alisa mundos “.

É um caminho que tem como epílogo o Inverno (o nuclear e o outro). E, nesse Inverno, fulgor de vida não cabe ou, como se diz em O caminho da entropia

 

Arrefecido o homem, já da sua história
fica só nada, que o fluir do tempo pisa.
Do que fomos, nem de nos termos esquecido
traço fica. Inocente, o tempo, liso, flui,
nem sabendo que não sabe. O já ter sido
é nem ter chegado a ser: o passado alui.
Eterno, sem lembrança, o frio acontecido.

 

Se a primeira parte do livro (sensivelmente até à p. 50) nos parece esperançosa, já que glorifica as conquistas do homem, a sua inteligência, a segunda, que corresponde aos finais do século XIX e vai, a par e passo, com as descobertas no domínio da física atómica, é, manifestamente, um grito de alerta para um eventual mundo de horror, isto no caso do homem ousar passar aquele limite a partir do qual tudo é irreversível.

São algumas observações sobre um paraíso perdido. Não é por acaso que esta obra poética se inicia, com uma epígrafe de Milton (Paradise Lost), onde se fala de um escuro e ilimitável oceano, sem limites nem dimensão... Foi a partir desse oceano que se formou a vida e será para ele que a vida voltará e dela não ficará história. O passado alui, dirá Eugénio Lisboa num dos últimos poemas do livro, acima transcrito.

Não é, pois, de admirar que as conclusões sejam amargas e expressas ainda pela geometria: linha recta e circunferência. Diz o autor: O conjunto dos homens é, pois, uma circunferência cujo centro é um frio já que na perspectiva da duração do universo, todos os homens são equidistantes do frio final.

Livro amargurado, dorido, mas, simultaneamente, viril (no sentido de procurar pensar e aceitar a realidade, com uma distância que a objectividade científica ajuda) constitui, mais uma vez, um exercício intelectual, tão ao gosto do autor, que pensa o real até à exaustão sabendo, apesar de tudo, que a ciência não explica tudo. Daí este livro, que é o segundo livro de poemas do autor; recorde-se que o primeiro, A Matéria Intensa, teve uma 2ª edição em 1999.

Eugénio Lisboa é um conhecido ensaísta da literatura a quem a cultura portuguesa muito deve, sendo, particularmente, admirado como especialista da obra de José Régio. Os seus ensaios deixam transparecer, pelo rigor da linguagem, o homem de ciências que lhe subjaz. Por isso mesmo, não deixa de ser interessante verificar como, ele próprio, sente a necessidade de se exprimir, também, na linguagem poética, pois só esta lhe permitirá avaliar as polivalências que o conhecimento arrasta consigo. Dir-se-á, com alguma (im)pertinência, que nem só de objectividade vive o homem!

Luís Serrano, Jul.-Ago. 2001

 


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