Pela mão da Caminho (O Campo da Palavra) acabo de ler um dos livros
mais tristes que li nos últimos tempos. Estamos à entrada do
inferno e lá está em letras bem visíveis aquele verso de Dante: Lasciate
ogni speranza, voi ch’intrate (Divina Comédia, O Inferno,
III, 9) que na tradução de Fernanda Botelho dá: Ó vós que
entrais, abandonai a esp’rança. É curioso que ao abordar uma
outra obra de Ascêncio de Freitas (A Reconquista de Olivença) me
tenha socorrido deste mesmo verso de Dante. É que o autor, penso
eu, conhece bem o inferno por lá ter andado mesmo sem a companhia
de Virgílio.
A obra abarca os últimos dias da dominação portuguesa
cada vez mais fragilizada pela resistência dos movimentos de
guerrilha que pretendiam a independência. O 25 de Abril de 1974 vem
facilitar essa independência mas simultaneamente precipitar o
desencadeamento de novos problemas: os que decorrem da presença de
portugueses, muitos deles nascidos em Moçambique, e de gente autóctone,
de raça negra, pertencendo a várias etnias e por conseguinte com
culturas diversificadas e naturalmente impreparadas para o que seria
o desfrutar de uma democracia “à ocidental”. Acresce a estas
contradições os apoios exteriores por países que desconheciam a
realidade africana, apoios dados a uns ou a outros conforme as
conveniências políticas e/ou económicas de cada um.
O passo seguinte (já depois da independência reconhecida
pela maioria dos estados) é a guerra civil onde se mistura a corrupção
de todos os lados e a todos os níveis com a ferocidade dos
massacres que se operam aqui e ali. Que se saiba nunca se ventilou a
hipótese de recurso aos Tribunais Internacionais de Direitos
Humanos para julgamentos dos grandes responsáveis pelos milhares de
mortos e pelos milhares de estropiados.
Esta situação que aqui se resume e que o autor conheceu
bem por a ter vivido por dentro não podia deixar de ter consequências:
a um movimento de euforia segue-se o desencanto, a descrença. A
vida ainda terá sentido?
Retiro da página 355 esta curiosa conversa entre pai e
filho (um filho que se não via há muitos anos e que vivendo em
Portugal resolve visitar o pai): - Estraguei toda a minha vida
por causa da liberdade de Moçambique. Quis comandar o destino do
mundo, como se isso fosse possível... e fui derrotado sem ser por
nenhum inimigo visível. Acabei morto na minha alma sem saber quem
me matou.
-
Como assim?... O pai não está morto! A morte da Liliana foi apenas
um choque... mas isso acabará por passar!
-
Não passa, não. Já nada passará gratuitamente na minha vida.
Tudo terá um preço alto demais daqui em diante. Porque por detrás
de tudo está a minha grande desilusão... a minha decepção com o
rumo que todas as coisas tomaram.
E o pior é que isto que se passa em Moçambique tem para
mim o sabor de uma metáfora. Eu creio que o autor aponta mais
longe: o mundo em que vivemos (África, Ásia, América Latina, mas
também América do Norte e Europa) não serve a ninguém ou servirá
apenas a um punhado tão restrito de pessoas que dizer ninguém não
falseia a questão). E a situação é tão grave que já não se
pode dizer, linearmente, que de um lado estão os bons e do outro
estão os maus. É que os explorados (os bons???) estão a ser cada
vez mais corrompidos e a sua força moral está cada vez mais
seriamente afectada.
É uma leitura pessimista da realidade das nossas
sociedades? Sem dúvida que é mas não deixa de ser uma leitura
atenta e rigorosa a quem um dia sonhou com um mundo melhor.
Esta obra de Ascêncio de Freitas vem, mais uma vez
mostrar a grande qualidade da sua escrita, o seu profundo
conhecimento da interacção das várias línguas e das várias
populações que foi conhecendo ao longo de cerca de 30 anos.
Em que pode ainda um homem acreditar? Eu sei que para tudo
há desculpas mesmo para o crime com o pretexto de evitar um crime
maior. Por isso, não resisto à tentação de transcrever da página
361: - Isto, meu pai, pode parecer-lhe gratuita retórica, ou
talvez uma forma cínica de encarar as guerras todas e mais o diabo
que as carregue. Mas é também o testemunho do que penso acerca do
assunto, porque já cheguei à conclusão de que por detrás das
aparentes boas intenções reside sempre a ambição, a vaidade e o
interesse de quem comanda essas lutas. Ainda que inicialmente essas
pessoas não pensem nisso, a um determinado momento são fatalmente
tocadas pela ambição do poder. E aí o caldo das boas intenções
entorna-se. É esse o momento do fracasso de todas as doutrinas: do
capitalismo, do socialismo, do fascismo, do liberalismo, do
nacionalismo e de todas as muitas religiões – porque ninguém
poderá nunca ter o monopólio do fanatismo que há na fraqueza
humana. Infelizmente, ao longo dos tempos, tem sido este o projecto
de vida dos homens: a ambição do poder, seja ele qual for.
E o 2004 (o novo ano) aí está. Que bom seria que o Ascêncio
estivesse enganado e tudo não fosse mais que uma consequência
de (ele) estar mal disposto. Ainda assim esta não deixaria de ser uma obra muito importante, a
confirmar as qualidades demonstradas em O Canto da Sangardata.
Caro leitor, estou certo que o autor escreve a pensar em
todos nós e lhe deseja, como eu desejo, que tenha um ano feliz,
isto é, responsável, a pensar nos outros, nomeadamente, na geração
que nos sucederá.
Luís Serrano, Jan. 2004.
|