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A paz enfurecida

de Ascêncio de Freitas

"Região Bairradina", n.º 788, Janeiro 2004

 

Pela mão da Caminho (O Campo da Palavra) acabo de ler um dos livros mais tristes que li nos últimos tempos. Estamos à entrada do inferno e lá está em letras bem visíveis aquele verso de Dante: Lasciate ogni speranza, voi ch’intrate (Divina Comédia, O Inferno, III, 9) que na tradução de Fernanda Botelho dá: Ó vós que entrais, abandonai a esp’rança. É curioso que ao abordar uma outra obra de Ascêncio de Freitas (A Reconquista de Olivença) me tenha socorrido deste mesmo verso de Dante. É que o autor, penso eu, conhece bem o inferno por lá ter andado mesmo sem a companhia de Virgílio.

A obra abarca os últimos dias da dominação portuguesa cada vez mais fragilizada pela resistência dos movimentos de guerrilha que pretendiam a independência. O 25 de Abril de 1974 vem facilitar essa independência mas simultaneamente precipitar o desencadeamento de novos problemas: os que decorrem da presença de portugueses, muitos deles nascidos em Moçambique, e de gente autóctone, de raça negra, pertencendo a várias etnias e por conseguinte com culturas diversificadas e naturalmente impreparadas para o que seria o desfrutar de uma democracia “à ocidental”. Acresce a estas contradições os apoios exteriores por países que desconheciam a realidade africana, apoios dados a uns ou a outros conforme as conveniências políticas e/ou económicas de cada um.

O passo seguinte (já depois da independência reconhecida pela maioria dos estados) é a guerra civil onde se mistura a corrupção de todos os lados e a todos os níveis com a ferocidade dos massacres que se operam aqui e ali. Que se saiba nunca se ventilou a hipótese de recurso aos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos para julgamentos dos grandes responsáveis pelos milhares de mortos e pelos milhares de estropiados.

Esta situação que aqui se resume e que o autor conheceu bem por a ter vivido por dentro não podia deixar de ter consequências: a um movimento de euforia segue-se o desencanto, a descrença. A vida ainda terá sentido?

Retiro da página 355 esta curiosa conversa entre pai e filho (um filho que se não via há muitos anos e que vivendo em Portugal resolve visitar o pai): - Estraguei toda a minha vida por causa da liberdade de Moçambique. Quis comandar o destino do mundo, como se isso fosse possível... e fui derrotado sem ser por nenhum inimigo visível. Acabei morto na minha alma sem saber quem me matou.

- Como assim?... O pai não está morto! A morte da Liliana foi apenas um choque... mas isso acabará por passar!

- Não passa, não. Já nada passará gratuitamente na minha vida. Tudo terá um preço alto demais daqui em diante. Porque por detrás de tudo está a minha grande desilusão... a minha decepção com o rumo que todas as coisas tomaram.

E o pior é que isto que se passa em Moçambique tem para mim o sabor de uma metáfora. Eu creio que o autor aponta mais longe: o mundo em que vivemos (África, Ásia, América Latina, mas também América do Norte e Europa) não serve a ninguém ou servirá apenas a um punhado tão restrito de pessoas que dizer ninguém não falseia a questão). E a situação é tão grave que já não se pode dizer, linearmente, que de um lado estão os bons e do outro estão os maus. É que os explorados (os bons???) estão a ser cada vez mais corrompidos e a sua força moral está cada vez mais seriamente afectada.

É uma leitura pessimista da realidade das nossas sociedades? Sem dúvida que é mas não deixa de ser uma leitura atenta e rigorosa a quem um dia sonhou com um mundo melhor.

Esta obra de Ascêncio de Freitas vem, mais uma vez mostrar a grande qualidade da sua escrita, o seu profundo conhecimento da interacção das várias línguas e das várias populações que foi conhecendo ao longo de cerca de 30 anos.

Em que pode ainda um homem acreditar? Eu sei que para tudo há desculpas mesmo para o crime com o pretexto de evitar um crime maior. Por isso, não resisto à tentação de transcrever da página 361: - Isto, meu pai, pode parecer-lhe gratuita retórica, ou talvez uma forma cínica de encarar as guerras todas e mais o diabo que as carregue. Mas é também o testemunho do que penso acerca do assunto, porque já cheguei à conclusão de que por detrás das aparentes boas intenções reside sempre a ambição, a vaidade e o interesse de quem comanda essas lutas. Ainda que inicialmente essas pessoas não pensem nisso, a um determinado momento são fatalmente tocadas pela ambição do poder. E aí o caldo das boas intenções entorna-se. É esse o momento do fracasso de todas as doutrinas: do capitalismo, do socialismo, do fascismo, do liberalismo, do nacionalismo e de todas as muitas religiões – porque ninguém poderá nunca ter o monopólio do fanatismo que há na fraqueza humana. Infelizmente, ao longo dos tempos, tem sido este o projecto de vida dos homens: a ambição do poder, seja ele qual for.

E o 2004 (o novo ano) aí está. Que bom seria que o Ascêncio estivesse enganado e tudo não fosse mais que uma consequência de (ele) estar mal disposto. Ainda assim esta não deixaria de ser uma obra muito importante, a confirmar as qualidades demonstradas em O Canto da Sangardata.

Caro leitor, estou certo que o autor escreve a pensar em todos nós e lhe deseja, como eu desejo, que tenha um ano feliz, isto é, responsável, a pensar nos outros, nomeadamente, na geração que nos sucederá.  

Luís Serrano, Jan. 2004. 

 


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