O
Fernando era um ano e tal mais velho do que eu. Conhecemo-nos, ainda
adolescentes, nas militâncias católicas à procura de um
enquadramento para as nossas vidas. A nossa procura manteve-se até
ao fim. Era de uma moral que tornasse as relações entre os homens
mais justas que andávamos à procura. E para ter essa moral não
precisávamos da religião como ambos concluímos mais ou menos
aquando da entrada na Universidade.
As
nossas preocupações passaram a ter um carácter mais cívico do
que outra coisa e traduzia-se entre outras coisas no desejo veemente
que o antigo regime ruísse.
Caído
Salazar (por doença) e Marcelo Caetano e o seu governo por acção
do 25 de Abril de 1974, a esperança de um mundo melhor e mais
humano foi para ambos motivo de grande contentamento mas não foi
necessário passar muito tempo para que ambos nos déssemos conta
que afinal a política e os políticos eram outra coisa: uma operação
de carreirismo que podia levar uns tantos ao poder mesmo atropelando
os mais lídimos interesses da população.
Por
isso não é de admirar que no seu último livro nos apareçam
poemas como este:
Este
ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!
bem-aventurados
os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p. f. o microfone
ou então tirem o país da ficha
Foi
escrito em 06.05.95, isto é, a menos de 6 meses da sua morte. De
resto, este livro, Respiração Assistida é um livro póstumo
e dá-nos bem a medida do seu talento mas dá-nos também a medida
do seu desencanto, as contínuas alusões à morte que ele sabia
estava próxima. Há neste livro alguns poemas eróticos ou
para ser mais rigoroso
e como diz Manuel Gusmão, autor de um inteligente posfácio, licenciosos.
É como se por essa via, ele nos quisesse dizer que ,apesar de tudo,
a vida vale a pena ser vivida. Mas a grande maioria, para além de
ser um conjunto muito belo, é tremendamente melancólico.
O
poema que dá o título ao livro corrigiu-o Fernando Assis Pacheco
três dias antes de morrer (Eu vi a morte / de noite – névoa
branca - / entre os frascos do soro / rondar a minha cama (...).
Outros
são poemas de inexcedível ternura como aquele cujo tema é o seu
próprio pai:
O
dia em que nasci meu pai cantava / versos que inventam os pastores
do monte / com palavras de lã fiada fina / cordeiro lírio neve
tojo fonte // esta é uma velha história de família / para
dizer como ele e eu chegámos / à raiz mais profunda do afecto / da
qual nunca jamais nos separámos // nem Deus feito menino teve um
pai / que o abraçasse e lhe cantasse assim / desde a primeira hora
até ao fim // fui vê-lo ao hospital quando morria / olhos parados
num sorriso leve / tojo cordeiro lírio
fonte neve
Meu
caro Fernando, há quantos anos deixámos de nos ver? A última vez
que estivemos na mesma sala foi numa homenagem ao Prof. Paulo
Quintela e não chegámos a conversar. Nem sequer te cheguei a ver.
Foi a mulher que me veio dizer: olha estive a conversar com um grupo
de pessoas entre as quais se encontrava o Fernando Assis Pacheco que
te manda um grande abraço. São partidas que a vida nos prega,
Fernando: éramos amigos e tão poucas vezes nos encontrámos depois
que foste para Lisboa e eu para o Porto e depois para Aveiro. E eu não
arranjei tempo para te retribuir o abraço e só eu sei quanto
apreciei sempre a tua poesia, quanto apreciei sempre a tua
generosidade, a tua disponibilidade para os outros.
Olha
Fernando, partiste vai para nove anos e o mundo não está melhor.
Pelo contrário, são os medíocres que triunfam , os oportunistas,
aqueles que são capazes de vender o pai e a mãe por um lugar ao
sol. Por isso, deixa-me fazer minhas aquelas tuas palavras do poema
das p. 43-44: (...) qualquer um do teu
tempo / está bastante melhor do que tu /deputado administrador de
empresa / ministro da maioria / puta (alguns chegaram a isso) // só
tu meu inocente brincas com a neta / açulas o cão pedindo / à família
que te ature / o tipo um dia destes morde-te / que é para
aprenderes // mas aqui entre amigos / vou-te dizer também / uma
coisa importante não cedas / à tentação de mudar / fica nesta
pele que é tua // como é que tu escrevias / merdalhem-se uns aos
outros // o país mete dó // guarda o último tesão / para
mandares / meia dúzia de canalhas à tábua.
Da
tua vida fica-me uma saudade imensa e este conselho (tu que não
gostavas de dar conselhos a ninguém): não
cedas à tentação de mudar fica nesta pele que é tua.
Obrigado, Fernando.
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