O poema Casa (quarto da colectânea) é talvez paradigmático da metáfora globalizante legível em As Casas Pressentidas , isto é, a da viagem como conhecimento do sujeito da enunciação poética e de um espaço
(mundo) de partilha desejável, balizada por obstáculos de vária proveniência:
os muitos "se" repartidos pelo corpo textual, como se tudo fosse
condicional — espaço, sistema literário — por silêncios, vazios, pelas complexas
relações entre o real e a sua representação. Daí que o espaço se
revele simultaneamente ambíguo / e perfeito porque é a instabilidade a grande
isotopia que se reflecte e se inscreve nos interstícios do texto. Neste sentido,
não é por acaso que o poema exordial — magnífica revisitação
iconográfica do universo bruegheliano — alude aos camponeses, visto que é
neles que e na precariedade das suas expectativas que se revê o sujeito na
tentativa de explicar a génese e a fecunda metamorfose do acto poético:
o poeta / coloca aí as sementes / e o estrume // espera o milagre das primeiras.
No desfibrar espácio-temporal
em que se instaura o veio desta escrita calibrada, com a sua
perfeita geometria rítmica, o olhar apreende ruínas, sombras, imagens que
delimitam a casa e a condicionam, transfigurando-a. De facto, não raro se
visualizam aves e casa devorados por uma paisagem de pesadelo,
ávidos de água e luz, assinalados pela contraposição do tempo segundo
uma dialéctica das percepções: odores e sons familiares que se projectam na contemporâne(a)idade. Deste modo os signos da poesia não
podem ser lidos como meros ectoplasmas errantes num espaço literário semelhante ao limbo desvinculado da História. Como signos culturais
específicos, estabelecem uma relação compósita com a temporalidade social, indicando os referentes
denotados — tempos, lugares, por exemplo — com uma intrínseca (metaforizada, já se vê) componente histórico-cultural.
Aqui se insinua, por isso, a procura da harmonia, da identidade, da solidariedade entre as coisas e os seres, entre as casas (habitantes) e os
animais. E então o discurso invoca e convoca as casas pre(s)sentidas,
antes que a lembrança delas / se perca na voragem dos sons desamados que não consentem sequer aperceber-se do rumor da água; elabora estratégias que evidenciam o signo numa poética que sanciona estilemas de marca tão profunda que se apresentam ao mesmo tempo como sinais éticos e estéticos; e revela com suficiente clareza a projecção metafórica de uma realidade em decomposição, sujeita a um processo degenerativo, da fragmentação de um mundo do qual nos fica a memória através da palavra
(no texto / que perpetua / a casa), das vozes tocadas pela emoção que, porém, não ofuscam
o acto de conhecer. Ao fim e ao cabo, a casa é o elemento que
acompanha o crescimento do homem e, mediante a inter-relação de
eventos sobrepostos, é também o reflexo da sua lenta mas perceptível
transformação.
Veneza, Março de 1996
Manuel Simões
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