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O artista visto pelos outros

 

Prof. Joaquim Matos Chaves

 

Depois de ignorada ou secundarizada, a figuração recuperou, no domínio da arte, uma importância que foi, tradicionalmente, sua. Isto é, voltou a estar entre os interesses principais dos artistas, sobretudo dos pintores. E, voltou a interessar os apreciadores, mesmo os mais esclarecidos. Certamente que as figurações recentes não são o regresso aos modelos dos períodos anteriores. Certamente que não são modos desatentos do entretanto acontecido no âmbito das formulações plásticas nem aparecem informados de nenhum propósito revivalista.

Mesmo quando estas figurações cultivam a paisagem, verifica-se que lhes está ima­nente uma razão outra. As homogeneidade e unidade espaciais são postas em causa, subtrai-se à organização lumínica focal, recusa o tonalismo cromático e advoga uma prá­tica tímbrica da cor. Entre outros aspectos cuja menção se evita mas de que a impor­tância não é menor. E com mais ou menos radicalidade. E global ou sectorialmente.

Joaquim Filipe é um artista cujo estar na arte ocorre através do aproveitamento de motivos paisagísticos, motivos contudo sempre entendidos, e penso que acertadamente, como pretexto para os seus enunciados inequivocamente plásticos. Plasticidade que é, no seu caso, sinónimo de, eminentemente, desenho. Desenho onde se combinam alguns teores próximos da tradição e outros de carácter inovador. Ressalta imediatamente que os motivos aproveitados são de ordem arquitectónica, ou urbana, e também motivos naturais. Enfatizados num caso estes, enfatizados naquele os outros. Ou surgindo combi­nados em fusões bem resolvidas.

Mas as exigências que se evidenciam em qualquer situação são sempre exigências técnicas ou formais, artísticas e estéticas. Isto é de enunciação e de enunciado.

O que se nota no extremo cuidado posto no traçar e no colorir. Um cuidado que denota o acusado sentido do prazer de fazer e de que é consequência uma textualização imagética onde o acabamento é um valor nuclear. Valor outro, também essencial, é o que vem proporcionado pela organização do espaço. Organização plena de uma suges­tiva ambiguidade e que se resolve quer em estritas observâncias da planimetria do suporte quer em estritas observâncias da planimetria do suporte quer em perspectivações muito subtis que dão origem a um espaço virtual rico, como aliás acontece na outra solução, de impressões poéticas. Poéticas porque imbuídas de um grande lirismo e onde perpassa um sentimento de serena nostalgia. Nostalgia reafirmada pelos dispositivos de teor decorativo em que são bem nítidas algumas redundâncias que vêm confirmar o que antes se referiu como sendo uma razão plástica, formal, a que alicerça esta obra.

Cumpre ainda chamar a atenção para um recente enriquecimento que a obra de Joaquim Filipe manifesta no domínio da organização do espaço. Refiro-me agora aos hiatos que estabelece na unidade desse mesmo espaço através de fracturas irregulares mas com grande força visual, mesmo se a sua energia é uma energia comedida, dada a sua capacidade de vibração indiscutível. Aliás este mecanismo traz consigo um outro, de índole técnica, que não pode ser silenciado. É o recurso à colagem de que a discri­ção é, contudo, enorme.

Não pode, igualmente, deixar de mencionar-se uma discrição próxima na forma de colorir. Quer pelo carácter ténue que vem dado pelas matérias cromáticas quer porque a sua gama é uma gama restrita que se aproxima até, com frequência, de um laconismo monocromático.

Destas observações suscitadas pela obra de Joaquim Filipe não se infira um pro­pósito de constituir-se como juízo classificatório e menos, ainda, de intenção absoluta ou suficiente. Procura consistir, isso sim, no sinal decorrente de uma aproximação que é também uma apreciação. E um apreço. Repare-se pois nela com a atenção que justi­fica, atenção que se aconselha possua uma certa demora, e procurem-se as estesias que ela não deixará de favorecer.

Joaquim Matos Chaves – 1987
Crítico e professor da Escola Superior de Belas Artes do Porto 

 

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