A
desesperada procura de uma forma última pelos escritores, os de ontem como
os de hoje, revelou-se sempre como um modo de forçar as fronteiras do
dizível: se o texto significa a conquista de novas realidades, fala-se de
sonho, se o texto se assume como uma fala própria, remete para o silêncio.
Mas que silêncio se tudo, afinal, é uma questão de linguagem, e não só
desta língua portuguesa, que como outras foi criada em Babel para lançar a
confusão no mundo? Será o silêncio a última expressão de um conflito com a
língua? Teremos que proceder a uma discussão sobre o problema da resistência
que oferecem as fronteiras da língua?
Os
escritores, os poetas, os filósofos, são levados às últimas consequências
deste desafio. E por esta via se renova a tentativa de ir de encontro ao
apelo da metáfora, que vale agora, já não pela sua capacidade integradora,
mas por querer apelar directamente ao Ser das coisas, apesar das sombras que
sempre assomam. O escritor, Vergílio Ferreira, quer falar para além
fronteiras, atravessar as fronteiras por cada palavra. E mesmo que uma
saudade a apague, a palavra sintoniza-nos com cada lugar. O momento desta
fractura é ele mesmo o mergulho no silêncio que gera a
metáfora como fórmula a recordar. Digamos que quem escreve dispõe de
fórmulas numa memória, de maravilhosas “palavras antigas”, das
palavras originais para uma pedra ou uma folha, por exemplo, ligando-se ou
explodindo em novas palavras, novos sinais para a realidade, perante a
decadência de todos os valores e a degeneração da própria linguagem. E quem
cria estas fórmulas mergulha também nelas com a sua respiração, que vale
como prova não exigida para a veracidade dessas fórmulas.
Mas
que imagens nos trazem essas fórmulas para o entendimento da Vida?
Quando começa a sua liberdade? Ou quando começa o seu despotismo? Onde
podemos encontrar a sua capacidade de nos fazer comungar vivências?
Vergílio Ferreira instala, de certo modo, o seu
radical programa de silêncio e de mal-estar, em virtude dessa
insuficiência da linguagem para dizer o mundo, os sentimentos e a Vida,
sempre marcado pelo desassossego, pela inquietude, perante
a crise axiológica do seu/nosso tempo, a queda dos mitos,
a crise de identidade da sua/nossa geração. E para que nos servem as
fórmulas? Para que nos servem as palavras no seio desta realidade sem
identificação? Esta realidade que é sempre um outro de si mesmo?
Tudo
se desfaz em pedaços, os pedaços novamente em pedaços e nada se deixa
abranger por um conceito. As palavras abstractas de que a língua se serve
naturalmente para qualquer juízo, despedaçam-se como cogumelos podres. De um
lado temos a fugacidade das vivências e, por outro, a estagnação passiva das
“fórmulas feitas”, que não cabem nessa escrita de vivência, nessa
escrita da Vida que é a escrita de Vergílio Ferreira.
Sabemos com o autor que o mundo é composto por factos completamente
independentes uns dos outros, que as frases universais são impossíveis, que
as frases da lógica não passam de "puras tautologias". As únicas
frases que fazem sentido são as frases da experiência, as frases que emergem
da Vida, da nossa Vida concretamente vivida, as
frases que correspondem aos factos do mundo.
Como refere a este propósito o poeta Ingeborg
Bachmann, em O Tempo Aprazado, «deste lado das “fronteiras”
estamos, pensamos, falamos nós. A sensação do mundo como um todo delimitado
é-nos sugerida porque só, enquanto sujeitos metafísicos, não somos já parte
do mundo, mas sua “fronteira”. O caminho através da fronteira, porém,
foi-nos vedado. É-nos impossível situarmo-nos fora do mundo e proferir
frases sobre as frases do mundo (...) Por isso (...) não há frases éticas,
porque uma frase nunca pode exprimir nada de superior. (...) Nada do que a
língua é capaz de exprimir – os factos do mundo, portanto – é alterável pela
vontade. Alteráveis, só as fronteiras do mundo, e sobre elas temos de nos
calar».
Submeter-se ao silêncio talvez seja a alternativa mais adequada para
o homem de bom senso, ou ainda dispomos da possibilidade de encontrar uma “nova
linguagem” para o romance, para o ensaio ou para a ficção, uma
linguagem aquém das “fórmulas” e pela qual possamos dizer o Mundo? E
que “nova linguagem” será esta? Quiçá uma linguagem que resulte menos
da procura de originalidade (sem prescindir do originário) do que da
necessidade de se formular constantes?
Digamos que esta tomada de direcção, este ser-se atirado para uma via na
qual se cresce e se morre, na qual já não há lugar para o acaso de palavras
e de coisas. Vergílio Ferreira desenvolve uma consciência “oblíqua”
do Mundo que atravessa momentâneos estados de iluminação pela palavra. Em
cada acto de escrita, há como que uma imitação daquela linguagem por nós
pressentida, mas da qual não podemos apossar-nos totalmente. Possuímo-la
como fragmento, na escrita, concretizada numa linha ou numa cena, e
compreendemo-nos nela, respirando fundo como se estivéssemos chegado à
linguagem originária que podemos escutar aquém das «vozes do silêncio»,
de que falava Malraux, advertindo-nos para a necessidade de considerarmos a
palavra antes que ela seja pronunciada, o fundo do silêncio que não cessa de
a envolver, o silêncio sem o qual a palavra nada diz.
A obra Para Sempre (1983) constitui-se
como a grande apologia do silêncio, essa outra fala que nos resta
para além das palavras já gastas, para além da vacuidade da linguagem
escrita ou falada. Vergílio Ferreira anuncia e comprova essa denúncia, cada
vez mais evidente nestes tempos hodiernos onde a “arte da palavra” se
constitui no próprio vazio, no corte da lógica e da significação. Por isso
escreve nessa magnifica obra: «Sento-me à varanda – aqui estou. Vida
finda. Mas não perguntes. Sonhos, lutas, e a obsessão do enigma – não
perguntes. E do que o ordenasse ao universo – não penses. A palavra ainda,
se ao menos. A palavra final. A oculta e breve por sobre o ruído e a fadiga.
A última, a primeira».
E o silêncio assoma. O silêncio que estala
no ar branco e perante o qual os pássaros se calam na sombra das
ramadas. «Só de vez em quando, vem de longe, dá a volta pelos montes, uma
voz canta pelo ermo das quintas. Ouço-a na minha alegria morta, na revoada
da memória longínqua, escuta-a. E é como se mais forte que o cansaço e a
ruína, do lado de lá da amargura, é a voz da terra, da divindade do homem».
O presente está só, desamparado. Sabemo-lo bem. Mas a
memória erige o tempo. Sucessão e engano, correspondem, apenas, à rotina do
relógio. Por isso é que esse rosto que vemos nos desgastados e escuros
espelhos não é o mesmo. O hoje fugaz é ténue e é eterno. Não vale a pena
procurar um outro Céu ou um outro Inferno. «Para sempre. Aqui estou»,
escreve Vergílio Ferreira, quando (..) «uma voz canta não sei onde»,
uma voz que se ergue «sobre o silêncio da terra».
Vergílio Ferreira permanece aí, no «jardim imóvel do silêncio»,
onde nada o olha nem lhe fala, embora procure ouvir a voz que canta no
silêncio em redor. Sempre «na aprendizagem serena do silêncio»,
num «silêncio súbito», o «silêncio da terra». Só
ouve as «vozes ermas dos campos», no «calor parado da tarde».
Tudo o resto é supérfluo. Só encontramos a «palavra seca reduzida, ao
essencial da agressividade».
E
ouvimos o mesmo imperativo de sempre, o imperativo do silêncio,
sobe várias formas ou expressões linguísticas, dessa denúncia do puro
linguajar, da tagarelice, da vacuidade das palavras sistemática e
aleatoriamente ditas, das palavras e dos discursos despidos da sua
significação originária, ou se preferirmos, do seu enraizamento ontológico,
quer dizer, ausentes da palavra originária que diz Ser, que remete para o
Ser: «Ah, e se te calasses? tu falas tanto»; «Estai
calados, estupores!»; «Estai calados, desgraçados!», profere o
autor respectivamente a Xana, aos políticos e aos filósofos. Ou , ainda, «Ide
todos à merda!», quando se refere aos moralistas. «Para a puta que
vos pariu!», é a sentença que o autor profere, em nome do silêncio, aos
pregadores da religião.
E o que diremos dos artistas? « ‑ Espera. Faltavam
agora ainda estes, os artistas. Que é que vós quereis, meus bardamerdas?».
Esses querem apenas dizer coisas. Desvairam aos gritos. Os pretensos homens
da cultura não se entendem, tal como os políticos ou os arautos da religião.
E no final de contas, defendem tão-só o regresso às formas poéticas de base
que um jocoso qualquer crismou de parolice e, não obstante, discutem todas
as correntes contemporâneas – “cubismo”, “faubismo”, “neoplasticismo”
... – mas em nada dignificam a arte, essa actividade mais nobre do homem.
Cerrar os ouvidos a tamanhas confusões ideológicas, discursos vazios e a
indecorosas posturas artísticas, regressar, de novo, ao silêncio é,
seguramente, a atitude mais sensata. E o que lhes resta é ir «berrar para
as profundezas do Inferno».
No
entanto, e seguido pelas «vozes do silêncio», o que Vergílio
Ferreira pretendeu, em toda a sua vida de literato pensador, traduz-se nesse
desejo inquietante de transmitir, pela linguagem, uma ideia de mundo,
conjuntamente com as próprias inquietações que o mundo suscita através do
romance. O romance é isso mesmo: a imagem de uma época ou a sua
representação literária, uma certa visão do mundo e da vida que o artista
põe em obra e torna publicamente acessível.
Ora,
os escritos de Vergílio Ferreira foram perpassados, à semelhança da
generalidade das obras suas contemporâneas, pelo “neo‑realismo”,
um acontecimento fundamental para o meio artístico‑cultural, tão fundamental
como a Guerra, segundo as próprias palavras do autor, que se integra nesse
movimento, que não é senão aquilo a que poderíamos chamar «arte social».
Trata-se de uma forma de ser da arte, de um movimento ou corrente artística
plenamente comprometida com as questões socio-económicas, comprometimento
que faz esquecer aos seus adeptos a natureza específica da própria arte.
Aliás, a arte de compromisso traduz-se nisso mesmo: no esquecimento de que
uma obra de arte é antes de mais uma obra de arte e, portanto, só pode estar
comprometida com o seu tempo e não com qualquer tema aleatoriamente
apresentado, ou imposto pela ordem culturalmente instituída. Aliás, «um
romance só existe pelo que lhe é específico e lhe confere eficácia. Assim o
que o determina como obra de arte se há-de esclarecer desde o tema».
Mas,
de onde partiu, afinal, a postura “neo-realista”? Do princípio
segundo o qual a literatura, o romance, que na época eram conceitos
sinónimos, poderiam colaborar num projecto mais vasto, cujo lema fosse a
transformação da sociedade e do mundo. Esta ideia ou necessidade imperiosa
de mudança, tornou-se uma crença absoluta, também ela sujeita à
transformação ou metamorfose pela queda, ou em virtude da queda do grande “mito
do século”, da destruição daquilo que é para o nosso autor o grande
acontecimento do nosso tempo: o “mito comunista”.
Sucedâneo de mitos anteriores, o “mito comunista”, o comunismo
universalizante, que não se preocupava apenas com determinados sectores da
vida, mas com todos, instituiu-se como uma espécie de religião privada, uma
axiologia determinada que abalou certos modos de estar e colocou em suspenso
grande parte das consciências.
E que
mitos assomam, hoje, nesta sociedade absolutamente tecnicizada? Ainda
acreditamos em mitos pelos quais pautamos as nossas condutas e forjamos as
nossas ideias? Que valores veiculamos hodiernamente? Afinal que mudança se
opera ou se operou? Que mudança esperamos nós, ansiosos pelos tempos
vindouros, talvez na esperança de uma vida e de um mundo mais moldado aos
nossos anseios? Esperamos a verdade nunca revelada? Ou perdemos a memória e
todo o passado das construções dos homens? Ou seguiremos esse exemplo
magistral de Vergílio Ferreira que rompeu com o mito imposto pela sua
época, com a mundivisão que veiculava? Vergílio Ferreira, agnóstico, a quem
a verdade se revelou, tanto quanto ele mesmo, a pode aceitar e conceber.
A obra que Vergílio Ferreira nos deixou é, a um tempo,
o testemunho de uma vida singular e universal: «Toda a obra que eu
escreve, refere o autor, tem a ver com a minha vida, suponho
eu».
(...) «Tudo tem a ver com a minha vida. Um livro, ao fim de contas, é um
resumo da minha vida, das minhas obsessões, das
minhas preocupações»
Mas a
que obsessões se refere o autor que fala sempre na primeira pessoa, como se
fosse em cada romance ou cada ensaio todas as personagens e o narrador ao
mesmo tempo, o autor que parece escrever porque é vital, porque é
absolutamente fundamental dar a conhecer aos Homens o que na sua alma
encerra, essa alma do tamanho do mundo onde cabem todas as almas dos Homens?
Que preocupações são essas que assomam em cada obra, no seu rosto e em todos
os rostos que são o seu, esse rosto já enrugado e marcado pela vida que se
reflecte especularmente em cada acto de escrita?
Para
que possamos alvitrar uma resposta adequada a estas questões, é necessário
atentar, pelo menos, numa das suas obsessões fundamentais e, quiçá, mais
constante: a via da permanente indagação que perpassa este espírito sempre
em estado de estranheza, de espanto, de inquietude e de dúvida. Toda a
existência do escritor não foi senão um acto prolongado, durante a qual não
cessou de se interrogar sobre o Destino (o seu destino), com uma
consciência, por vezes penosa, da máxima lucidez, sobre tudo que lhe ocorre
na Vida e sobre o modo como o mundo é para si próprio.
A
vida que encerra a significação máxima em si própria e jamais em nada do que
eventualmente a possa exceder. Digamos que perante a recusa da
transcendência, que é o que está em causa na afirmação do valor absoluto da
vida, a vida emerge como o único valor, como o valor supremo a que toda a
escala axiológica deve estar subordinada. Esta é precisamente a principal
obsessão do autor em Alegria Breve (1965).
Nesta obra, Vergílio Ferreira
cita Sófocles. Cita-o, mesmo antes de começar o livro, os mesmo versos do
famoso segundo coro de Antígona, a partir dos quais Heidegger
tentou determinar «Quem é o Homem?», interrogação que destrona
aquela que nos habituámos a pronunciar, incessantemente, desde Aristóteles –
«O que é o homem?» ‑, e para a qual obtivemos sempre a mesma
resposta: «O homem é um animal racional» (“etiqueta”
que transportamos há séculos na nossa fronte), constituindo a Razão, o
Intelecto, a sua diferença específica.
Vergílio Ferreira sabe tão bem como Sófocles, Hölderlin ou Heidegger que:
«polla
ta deina kouden anqrvpon deinoteron pelei».
Os termos a destacar aqui, são
deina
e
deinoteron,
em virtude das respectivas traduções alterarem não apenas o conteúdo
semântico dos versos, mas todo o desenvolvimento da tragédia sofocleana e,
em particular, a concepção de homem que possamos adoptar ou desenvolver.
De facto, as traduções destes versos são várias e
nunca unívocas.
Vergílio Ferreira translitera-os do seguinte modo: «Há muitas coisas
espantosas (deina),
mas nada há mais espantoso (deinoteron)
do que o homem».
Estes versos são o ponto de partida, quiçá o fio condutor, de Alegria
Breve, onde o escritor sente o silêncio que cresce à sua volta ,
desde a montanha que fica a olhar até lhe doerem os olhos. Apresenta-se como
um homem só, horrorosamente só e evoca, mais uma vez, Deus, o único que pode
compreender essa solidão e ao mesmo tempo o sofrimento que dela decorre.
Toda a solidão do mundo entrou dentro de si. Apesar, do seu «orgulho
triste, inchado», é o Homem, que do desastre universal se ergueu, no
seio do silêncio, enorme e tremendo.
E quando ouve o silêncio, sente-se,
«aí, disperso irisado em espaço, íntegro e puro. E nu.».
Todavia, atira uma «patada violenta» para tomar posse do mundo, e sabe,
então que é ele próprio, o Vergílio Ferreira, que sente e escreve tudo isto:
«Atiro a minha patada violenta, respiro até aos ossos o universo»,
apesar do trémulo olhar de lágrimas, a solidão ancestral, o frio da noite, «adstringente
e nulo».
Sempre restrito em si nota, tão-só, a sua pequenez
perante o universo, que é tão grande, face à sua insuficiente divindade. Mas
está aí, pequeno e medroso, pensando às vezes: «sentar-se aqui (com
os pés a doer por causa do frio), morrer aqui».
Outras vezes grita e julga endoidecer, ao mesmo tempo que quer alcançar a «paz
da terra» que sempre procura: «Quando fico só na aula, com
todas as janelas abertas, às vezes cerro os olhos, respiro fundo, e a paz da
terra é tão funda que encontro a cabeça à secretária e choro. Depois
reparo que não chorei. Tenho uma alegria excessiva como quem vai
suicidar-se».
Porém, um aroma intenso, imóvel e de eternidade move-o
a percorrer esse caminho de indagação de que nunca se separa, procurando
também o homem, o ente mais espantoso entre as múltiplas coisas espantosas.
E como todos os outros homens, sabe que a paz é sua porque a percepciona,
porque resiste à agonia e está vivo. A confiança emerge: «sem dúvida o
resultado era imprevisível, porque muitos caminhos partiam daí e eu podia
rir com um riso canino, ou andar aos gritos pela vida, ou chorar à
espera de resignar-me, ou olhar apenas de olhos enxutos e esperar as flores
novas sob o túmulo dos mortos, ou. Estou vivo. A terra existe. Eu sei-o.».
Por isso, pode entrar e sair por todas as portas da vida, mesmo que
permaneça só, mesmo que lhe seja impossível gritar, mesmo que o grito se lhe
entale na garganta e o mundo recue para uma estranheza absurda.
É preciso abrir os olhos e ver totalmente para
aguentar o impacte da Vida e vencê-la, mesmo que seja necessário recuperar a
vida desde as raízes mais profundas, obscuras ou verdadeiras. E se por mero
acaso a vida for uma invenção, esqueçamos tudo, e reinventemo-la desde o
início. É o único caminho que nos afasta do envenenamento para sempre.
Há, por vezes, uma música ignorada que vem de longe e que cresce no âmago da
alma, à semelhança de um aceno humilde, mas que, no entanto, faz tremer os
olhos. É uma música suave que sobe pelo corpo todo, mesmo sendo tão ilícita,
mesmo apertando o pescoço como a uma criança.
No seio da ternura que emerge de vez em quando, não
obstante os olhos trémulos e o pescoço apertado, esse sentimento tão difícil
de se atingir na sua plenitude, o que comove o autor é a constatação de que
o homem pode subir tão alto, embora as suas raízes nunca subam, tal como as
das árvores, porque «estão na terra, para sempre, junto da infância e dos
mortos».
Mas o
homem é, no entanto, o mais espantoso (deinoz)
das
criaturas. O mais maravilhoso (deinoz),
ou ao invés (ou quiçá simultaneamente) o mais terrível (deinoz)
e o
mais inquietante (deinoz),
o mais estranho (deinoz),
o mais violento (deinoz)e
o mais monstruoso (deinoz).
O homem é concebido assim mesmo: na sua inquietante estranheza inicial,
estranheza de si próprio, do mundo e da Terra que desbrava com a ajuda dos
arados, mas que não salvaguarda mais, segundo a visão original de Sófocles
que aqui confrontamos.
Isabel Rosete
Outubro de 2006
A este propósito, declara Vergílio Ferreira ao Jornal Expresso,
de 17 de Outubro de 1992: (...) «nós não podemos impor o mito; ele é que
tem de nascer de dentro de nós e impor-se depois por si próprio. Vivemos
numa época cuja nota dominante é a crise dos mitos: não temos mitos
nenhuns. Há os sub-mitos: o Benfica, ou o partido político que ganhou as
eleições, ou perdeu ...».
Vergílio Ferreira, Para Sempre, p. 13.
Vergílio Ferreira, Para Sempre, p. 13.
Vergílio Ferreira, in Revista Ler Nº2, Primavera de 1988.
Sófocles, Antígona, vv. 332 – 333.
A tradução apresentada por Heidegger concernente aos versos supra
citados é a seguinte: «Múltiplo o inquietante (deina),
nada contudo para além do homem, mais inquietante (deinoteron)».
Comparando outras traduções com
aquela que nos é sugerida pelo filósofo de Sein und Zeit,
podemos verificar que a imagem que nos transmitem da natureza humana é
bem distinta, senão mesmo contraditória àquele que Heidegger viu brotar
nos versos supra citados e igualmente distinta da que nos é proposta por
Vergílio Ferreira, pelo que igualmente dissonantes a concepção de homem
perfilhada por estes dois pensadores. A divergência provém, tão-só, como
já anunciamos no texto, das dissemelhantes interpretações do termo
deinoteron,
que nas traduções abaixo indicadas, bem como na apresentada por Vergílio
Ferreira, é tomado, unanimemente, como sinónimo «maravilhoso»,
«prodigioso» ou «extraordinário», termos que
podemos considerar conceptualmente correspondentes e, por conseguinte,
as respectivas concepções de homem adoptadas por estes autores, uma vez
que, como já tivemos oportunidade de chamar a atenção, a concepção ou
visão do homem está directamente dependente da interpretação/tradução do
termo em análise: a) «Il est bien merveilles (deinoteron)en
ce monde, il n’en est pas plus grand que l’homme» (texto traduzido por
Paul Mazon, Paris, Les Belles-Letres, 1962, p. 86);
b)
«Many Wonders there be, but naught more Wondrous (deinoteron)
than man» (texto traduzido por F. Storr, Havard University Press, 1981,
p. 341);
c)
«Hi há moltes meravelles (deinoteron),
i no n’há de mès gran que l’homme» (texto traduzido por Carles Riba,
Barcelona, Fundació Bernat Metge, 1951, p.136.
Vergílio Ferreira, Alegria Breve, p. 6.
Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp. 7 – 8.
Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp. 28 – 29.
Cf. George Steiner, Antígonas, pp. 191 – 192.
Cf. R. Otto, O Sagrado, pp. 69 – 70.
Cf. Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp. 7- 8.
Até ao Fim, lê-se na Revista Ler, Nº3, Verão, de 1988, é um «romance
que, de certo modo, continua a temática de Para Sempre, representa o
olhar de um escritor sobre a sua própria carreira literária, sobre uma
civilização em desaparecimento, sobre as relações entre homem e mulher,
entre pai e filho. O personagem principal conversa com o filho (questão
a que já aludimos no nosso texto) morto durante uma tentativa da assalto
terrorista a uma embaixada estrangeira,
ao mesmo tempo que a memória da
antiga mulher o acompanha permanentemente. Sentado à beira-mar, o
narrador confunde-se com o próprio autor, Vergílio Ferreira, e com as
inquietações mais prementes que a sua carreira de escritor tem colocado
até agora»
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