DA POSSIBILIDADE DA EDUCAÇÃO: A EDUCAÇÃO MORAL EM KANT |
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Parte I: Autonomia, Disciplina e Liberdade
A metafísica intervém directamente no projecto pedagógico kantiano, não tanto para nos conduzir à elaboração de abstracções, mas para nos enviar para a essência da realidade educacional, dada na sua concretude. Para o autor da «Crítica da Razão Prática» e «Das Reflexões sobre a Educação», o pensamento e a experiência esclarecem-se e guiam-se mutuamente. Um lema indiscutível que perpassa o pensar do filósofo, em qualquer dos domínios a que este se aplique. A pedagogia fornece ao filósofo quadros de pensamento específicos já anunciados em outras obras que, só em aparência, ultrapassam o domínio estritamente educacional. Existe uma disciplina da “Razão Pura”, que é entendida num sentido eminentemente pedagógico – tal como nos é anunciado na parte final da «Crítica da Razão Pura», sendo a “Metodologia da Razão Prática”, que conclui a «Crítica da Razão Prática» – não mais do que a ideia de uma pedagogia moral. Encontramos, também, na «Crítica da Faculdade de Julgar», reflexões essenciais sobre as noções pedagógicas de “disciplina” e de “cultura”. Kant mostra-se profundamente interessado pelos problemas pedagógicos. Defende os conceitos de “bom senso” e de “equilíbrio” – que propõe como fundamento de todo o processo de ensino-aprendizagem – tão adversos aos programas educacionais da época, onde a escola se manifestava como o meio menos apropriado para a promoção da educação da humanidade. O projecto pedagógico kantiano é o revés do estado deplorável do ensino na Alemanha do século XVIII, cuja programação, para além de desequilibrada, incoerente e desclassificada (1), mantinha-se insistentemente desadequada à ordem natural do educando que, em matéria de educação, deve ser tomada como absolutamente prioritária. Na Informação acerca da «Orientação dos seus Cursos nos Semestres de Inverno de 1765/1766», Kant mostra-se deveras preocupado com o problema da discordância entre os conteúdos dos ensinamentos leccionados e as potencialidades intelectuais do educando propondo, por isso, que este dispense os conhecimentos que não sejam susceptíveis de serem assimilados convenientemente. Pretende-se estabelecer de uma adequação entre as capacidades intelectuais do aluno e os ensinamentos ministrados, de molde a evitar o obscurecimento da ordem natural da criança, cuja estrutura intelectual deve ser devida e dignamente considerada. Em vez de opormos ensino e natureza, devemos esforçarmo-nos por realizar uma coligação harmoniosa entre estas duas instâncias. Opondo-as, estamos a contribuir para a formação de falsos sábios, nos quais a ciência não penetrou de modo a tornar-se conhecimento, mas tão-só uma amálgama confusa de teses que poderão, apenas, proporcionar a verbosidade (cega e incurável sendo, por isso, preferível a ignorância) “precocemente sábia do jovem pensador” (2). Uma vez estabelecida, para o processo de ensino-aprendizagem, a necessidade rigorosa do requerimento da ordem natural do educando, toda a instrução, em particular, e a educação, em geral, deve pressupor, como fios condutores, a maturidade do entendimento, a razão experimentada e exercitada, assim como a pré-disposição conceptual do aluno para a aprendizagem. A postulação de tais critérios deixa antever uma concepção orgânica e arquitectónica do aparelho intelectual do sujeito cognoscitivo, a qual supõe, por sua vez, uma estruturação rígida que não admite passagens vertiginosas ou o descuramento de algumas das etapas constitutivas dessa mesma estrutura. Seguindo este critério, o pedagogo deve formar, em primeiro lugar, o homem que entende, em segundo, o que raciocina e, em terceiro, o sábio. Esta hierarquização qualitativamente processual da estrutura intelectual do sujeito, faz desabrochar uma noção progressiva da educação: o saber é algo que se vai construindo ou perfazendo ao longo da vida de cada indivíduo, e jamais um patamar fundado numa rigidez absoluta, apriorística e definitivamente sedimentada para todo o sempre, cuja natureza pertença à esfera da perenidade. Kant não nos induz à consideração de uma concepção estática da educação, mas, pelo contrário, ao seu visionamento numa perspectiva que implica, necessariamente, a dinamicidade, o contínuo e o progressivo. O filósofo defende, tal como Rousseau, que o aluno não pode aprender pensamentos, mas aprender a pensar; que não se deve levá-lo, mas guiá-lo, se se pretende que no futuro seja capaz de caminhar por si mesmo (3). A educação torna-se um processo de auto-construção guiada, reservando-se para o pedagogo o papel de orientador, de formador ou modelador de uma matéria que, não obstante todos os germens potenciais que intrinsecamente a compõem, se encontra, de certo modo, desenformada. Daqui surge precisamente a diferença conceptual entre o preceptor, que é o professor, e o pedagogo, que é o guia (“Führer”). O primeiro, educa em vista da escola, o segundo, em vista da Vida. A primeira época é, para o aluno, aquela em que ele deve fazer prova da sua submissão e obediência passiva; a segunda, corresponde ao momento em que o deixamos, mas sobre leis, fazer uso da sua reflexão e da sua liberdade. A coacção é mecânica, na primeira época. Moral, na segunda (4). O discípulo, o aluno, não deve ser escravo do mestre, dessa pressuposta figura ideal a seguir. Deve sentir, sempre, a sua própria liberdade, de tal modo que ela jamais se oponha à liberdade do outro. Educar é formar o homem, conduzi-lo pelo caminho que a sua própria natureza exige, em permanente consonância com a dimensão da alteridade. A educação não pressupõe, propriamente falando, a introdução de algo novo, mas o fazer desabrochar do já existente. Aproxima-nos, em grande medida, do método socrático, relativamente ao qual Kant manifesta a sua preferência, por oposição ao método catequético, que introduz a mecanização na alma. Trata-se de desenvolver, não a razão especulativa, mas a razão reflexionante. A razão prática, na sua economia e direcção. É imperativo ter absoluta consciência de que cada indivíduo só apreende e detém, solidamente, o “manancial teórico” que extrai de si mesmo, a partir de si mesmo. Urge, portanto, proceder socraticamente na educação da razão. Sócrates que se auto-nomeia “parteiro” dos conhecimentos dos seus auditores, dá-nos nos seus diálogos – que Platão nos conservou de certa maneira – exemplos do modo como podemos, mesmo se se tratar de pessoas idosas, conduzir o aluno a extrair muitas coisas da sua própria razão. “Não é necessário exercitar, em muitos casos, a razão das crianças (...)”, confirma Kant. Não é preciso inculcar-lhes conhecimentos, mas fazer com que elas os extraiam de si mesmas. O método socrático deve servir de regra ao método catequético” (5). Confrontamo-nos com a defesa de um método investigativo, progressivo e não dogmático. Não há modelos a seguir. Apenas pistas indicadoras que se destinam a promover uma busca contínua, sobre as quais é susceptível exercerem-se juízos pessoais que não obedecem a cânones estabelecidos pela exterioridade. Devemos entender a educação como um processo interior progressivamente realizado, mediante as potencialidades que comandam a ordem natural do sujeito. A concepção kantiana de educação encontra na natureza humana a sua justificação e razão de ser. Na medida em que é visionada como o cumprimento supremo e o aperfeiçoamento último da natureza, a educação consuma aquilo que esta doou ao homem como gérmen e possibilidade. É neste sentido que devemos interpretar a tese kantiana, segundo a qual o homem só se pode tornar Homem pela educação. “Ele não é senão o que a educação faz por ele” (6). É necessário trabalhar no plano de uma educação conforme aos princípios humanos, legar à posteridade as instituições que permitirão a sua realização plena. Mesmo os mais pessimistas não devem encarar esta ideia como quimérica, ou simplesmente rejeitá-la por a considerarem como um belo sonho minado pela utopicidade de um ideal inalcançável, não obstante encontrarem obstáculos à sua consumação plena. Uma ideia, salienta o filósofo, não é senão o conceito de uma perfeição que não está ainda concretizada na experiência. A ideia da existência de uma educação que desenvolva absolutamente todas as disposições naturais do homem é, certamente, verídica. A humanidade, presente e futura, deve canalizar todos os seus esforços para levar a cabo a concretização deste supremo e necessário ideal. O Conceito exacto de uma estrutura educacional só pôde ser estabelecido porque uma geração legou as suas experiências e os seus conhecimentos à seguinte. Esta, por sua vez, juntando o património recebido à sua vivência, transmitiu-o à geração que lhe sucedeu. A educação é, sem dúvida, uma arte, cuja prática deve ser perfeccionada por muitas gerações. Assim frisa Kant, em «Reflexões sobre a Educação» (7). O termo “arte” (8) não assume, neste preciso contexto, uma significação estética, mas antropológica, sustentada pelas noções de “per-feição” e de “modelação”, concebidas num sentido eminentemente teleológico, que entra no domínio da necessidade. A arte da educação é necessária, na medida em que as disposições naturais do homem não se desenvolvem espontaneamente. Cada indivíduo não consegue traçar, por si mesmo e somente através de si mesmo, as regras que deverão orientar a sua conduta. Torna-se indispensável a existência de alguma aprendizagem que, embora suponha a autonomia e a liberdade, requer, de uma forma inevitável, a orientação de outrem. Esta tese contraria o já referido autodidactismo (que hoje tanto se apregoa) como se, em matéria de aprendizagem, o homem fosse, desde o início, auto-suficiente, plenamente independente dessa orientação de um outro que, por seu turno, também já foi educado, orientado, guiado, por um terceiro que é igualmente homem. O esquecimento da ciclicidade deste processo é gritante, se atentarmos na natureza específica de todo e qualquer acto educativo com o qual nos confrontamos. Compreendida como uma arte, forjada através do imenso conjunto de gerações, cujo palco é a história da humanidade, a educação extravasa os limites estreitos que normalmente lhe são impostos, ligando-se directamente à Filosofia da História. Kant associa, numa mesma reflexão, educação e política, quando determina que “existem duas descobertas humanas que temos o direito de considerar como as mais difíceis: a arte de governar os homens e aquela de os educar” (9). O problema fundamental da História – a realização de uma associação política fundada unicamente sobre o terreno da liberdade, cuja resolução supõe o progresso geral da humanidade, considerada sob a perspectiva da “habilidade”, da “prudência” e da “moralidade” – jamais se poderá dissociar do problema da Educação, a saber: a formação global do homem, enquanto Homem. Ligando-se à Filosofia da História, a arte da educação descobre as questões mais prementes, nomeadamente: a formação da criança deverá consistir simplesmente numa pura imitação do caminho percorrido pelas sucessivas gerações, ou terá a seu cargo desenvolver os ensinamentos da humanidade? Retomando, por um lado, a experiência passada e meditando sobre ela, a educação deixará de ser pura “mimésis”, uma arte meramente mecânica, para se tornar racional. Como reflexão concreta e actual sobre a experiência da humanidade, garantirá, por outro lado, o seu progresso, ao desviar as tendências nulas e vãs que a contaminam. Assim perspectivada, a Educação torna-se, para Kant, o fundamento primacial da política. Não obstante a complexidade do processo educativo (10), Kant pretende concretizar o ideal da “Aufklärung”, a partir de quatro pontos fundamentais:
1. Realizar a educação do género humano; 2. Extirpar o homem da menoridade de que é culpado, dessa lamentável incapacidade de se servir do Entendimento sem a orientação de outrem; 3. Despertá-lo para a maioridade, para a conquista da sua própria autonomia e liberdade; 4. Estimulá-lo para a emancipação da Razão, que se pretende que seja devidamente esclarecida ou iluminada (11).
A concepção kantiana de educação, na medida em que apresenta como fundamento primacial a experiência da totalidade da Humanidade, exclui a possibilidade de uma formação perfeita do indivíduo. O sujeito isolado é, somente, um ponto infinitamente pequeno no seio de um conjunto de gerações que se sucedem, quiçá de um modo interminável, e cuja missão consiste em transmitir, às seguintes, as suas próprias luzes. Inserido nesta contextualização universal, jamais o homem, tomado na sua singularidade, poderá alcançar a destinação total de todas as suas disposições naturais. Somente a espécie as consumará plenamente. Apesar de corrermos o risco de mutilar a noção kantiana de educação, se a quisermos restringir unicamente a uma perspectiva individualista, não podemos, porém, deixar de ter presente que educar uma criança significa adaptá-la ao mundo presente e futuro. A educação deve compreender o indivíduo no seio do progresso geral da humanidade, no intuito de o tornar um homem do futuro, um elemento intrinsecamente pertencente ao conjunto de gerações que ocuparão o palco da história vindoura. É em vista do futuro, em prol do progresso parcial que ela pode representar para a humanidade, que a criança deve ser educada. Não devemos proporcionar às jovens mentes em formação uma educação exclusivamente enraizada no estado presente de desenvolvimento da humanidade, mas segundo o seu estado possível, em conformidade com a destinação total da espécie humana. O futuro, a formação para o futuro, deverá ser o critério eminente de todas as nossas aspirações educacionais. A educação não é um estado. Muito menos um estado acabado. Trata-se de um processo altamente complexo. Os respectivos resultados não são visíveis a curto ou a médio prazo. Mas, apenas, a longo prazo, num futuro que é mais longínquo do que aquele que se encontra adstrito aos planos que fogem à raiz das normas educativas. Em termos estritamente cronológicos, o presente é um instante tão frágil, tão efémero, comparativamente com a necessidade temporal intrínseca ao desenvolvimento e formação de ser humano, que terá de ser considerado, tão-só, como um parco ponto de referência de uma planificação que nele encontra apenas o seu começo, que se perfará num tempo outro, previsível, mas necessariamente indeterminável. Eis a razão fundamental pela qual a Educação e a Filosofia da História se encontram ligadas por laços umbilicais. A História do Homem coincide, em perfeita harmonia, com a história da sua formação e desenvolvimento, ao longo do tempo, quer dizer, com a história da sua Educação. Tal como a Filosofia da História, a Educação manifesta-se num outro tempo, numa outra temporalidade. Não é mais em função do passado que se constrói o presente, mas em função do futuro. Kant sublinha, veementemente, que a educação deve fundar-se sobre a Ideia de Humanidade e da sua destinação total, concretizada pela visão de um estado futuro possível e melhor. O tempo da educação não é o tempo de Ser, mas o do dever-ser. O seu fundamento originário é a fé no futuro, como princípio e norma orientadora do presente. A definição da educação como arte, cuja prática deve ser perfeccionada por muitas gerações, deixa antever a importância da experiência na pedagogia kantiana. E é no seio do seu sistema crítico, onde a predominância dos princípios metafísicos é a base fundante do seu pensamento, que Kant descobre a razão pela qual a experiência é a única via que deve ser seguida em Pedagogia. O filósofo encaminha-se para a apologia de um “empirismo pedagógico”, circunscrito ao conceito de liberdade humana. Afirmar que o homem é livre significa dizer que ele não pode nem deve ser – à semelhança de todas as outras criaturas que habitam este Universo – objecto de estudo da ciência, equiparado a tantos os outros, ou, mais exactamente, objecto de conhecimento. O fundamento objectivo da tese kantiana é simples: o Homem, contrariamente a todos os outros entes, é um ser cuja essência não determina necessariamente a existência. Só há Conhecimento, no sentido kantiano do termo, se este for determinado pelo entendimento específico da essência do objecto, o qual – ou se preferirmos, as condições da sua possibilidade – é determinado “a priori”, naturalmente independente de toda e qualquer experiência sensível, seguramente delimitado pelos conceitos de “necessidade” e de “universalidade”. A realidade física, inversamente à realidade humana, pode ser conhecida, neste preciso sentido, uma vez que possui uma essência que o Entendimento pode apreender aprioristicamente. Como mostra a “Revolução Copernicana”, operada por Kant nos domínios gnoseológico e epistemológico, a essência das coisas funda-se na subjectividade transcendental. Por conseguinte, a essencialidade de toda a realidade física coincide com os princípios do Entendimento Puro. Tendo em consideração o conceito de Conhecimento, assim apresentado, será que poderemos considerar a educação como uma Ciência, sendo explícito, para Kant, que o Homem não é propriamente objecto de conhecimento? Para que a educação pudesse ser uma ciência, isto é, um conhecimento independente da experiência – o que implicaria que tal arte tivesse como fundamento um saber da essência do seu objecto – era necessário que o Homem não fosse livre, que se tornasse semelhante aos objectos, cuja essência determina “a priori” a sua existência, ou que a Razão pudesse elevar-se ao saber absoluto, extravasar os limites do finitamente humano. Só a Deus pertence esse Conhecimento. Um Ser absoluto. O único capaz de aceder à real capacidade de conhecer os seres livres. A liberdade que impede que a educação se torne ciência é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade que permite que se coloque o problema da educação. Porque é livre, o homem é a única criatura que se situa num espaço de mudança contínuo, o único ente que existe de modo temporal e espacialmente determinado. Ao contrário de animal que, pelo seu instinto, é desde que nasce tudo o que pode vir a ser, o Homem, originariamente, não é nada, conquanto tenha a possibilidade de vir a ser múltiplas coisas. Detentor exclusivo da sua liberdade, permanece aberto, por inerência própria, a uma multiplicidade infinita de caminhos. A liberdade destinou-lhe uma certa nadificação, da qual deverá libertar-se para ser si-mesmo, através do devir próprio do seu ser. É este o argumento fundamental, apresentado pelo filósofo, para justificar a razão pela qual a educação é um problema exclusivo da espécie humana, para legitimar a tese que afirma ser o homem a única criatura que deve ser educada (12). O maior problema da acção educativa consiste na orientação de um ser que, “a priori”, não conhecemos, que em si mesmo não é nada, mas que, em virtude da sua liberdade, pode tornar-se infinitas coisas. Porém, para aceder à possibilidade de rentabilizar, em conformidade com a sua ordem natural, as infindas potencialidades ao seu dispor, é necessário que saiba educar-se. Como a liberdade escapa ao conhecimento da Razão Pura, facilmente podemos constatar que o indivíduo jamais poderá ser mestre de si mesmo. Deverá recorrer a outro que o eduque. Todavia, só pode educar, ser mestre de alguém, quem, por sua vez, já tenha sido convenientemente educado. Esta sequência ocorre de geração em geração, num decurso cíclico que não nos permite determinar, nem o seu princípio, nem o seu fim. Uma certa paradoxalidade se instala no seio do processo educacional kantiano: como aquele que educa também é um homem, igualmente afectado pela mesma rudeza inicial concernente ao “ estado selvagem” da natureza humana e que, por esta razão, também teve de ser educado, só poderá reproduzir no educando essa característica que lhe é intrínseca. Mesmo sem levarmos este posicionamento aos seus limites mais extremos, não podemos deixar de reconhecer que a educação, tal como Kant a concebe, se torna um problema irresolúvel, e que a liberdade humana assume uma dimensão essencialmente dramática. A liberdade, tomada enquanto elemento impulsionador do processo educativo, não assume uma significação prática ou moral. Apresenta-se como uma disposição natural não determinada pela racionalidade, como uma característica primária que encerra uma certa rudeza (“Rohdigkeit”) primacial, comum ao homem não disciplinado: «o homem, pela sua natureza, tem tão grande propensão para a liberdade que, se começa por se habituar a ela em qualquer altura, tudo lhe sacrifica. É por isso que é preciso recorrer à disciplina, pois se não for assim é, por conseguinte, muito difícil transformar (ändern) o homem», esclarece Kant, nas suas «Reflexões sobre a Educação» (13). A “disciplina” assume, na filosofia kantiana, um acepção muito diferente daquele que trivialmente lhe é atribuída. Uma amplitude que extravasa os limites que geralmente lhe são impostos. O conceito de “disciplina” não tem em consideração a especificidade particular do educando. Extrapola, em larga medida, a dimensão da pura individualidade. Tende a ser universal e universalmente aceite, sendo, em propriedade, destinada à humanidade tomada no seu conjunto. Porque transforma a animalidade em humanidade, a “disciplina” é o único meio que impede o homem de se desviar da sua destinação radical, aquietando a anarquia correspondente ao estado primário da natureza humana. Porque impõe limites à propensão desorientada para a liberdade e habitua o indivíduo a submeter-se às prescrições da razão, impossibilita que ele se lance vertiginosamente no abismo e na irreflexão. A “disciplina” é, antes de mais, um meio e não um fim. Um meio, frisemo-lo, que se destina a emancipar a liberdade. É a sua aliada mais fiel, ao combater as tendências inferiores do ser humano. É neste sentido que devemos compreender que na cultura, a parte positiva da educação, Kant encontre um momento negativo que denomina por “disciplina” (14). Na operação da “disciplina” é a totalidade da educação que está em jogo, pelo que a cultura não tem valor, senão na condição de se apoiar sobre a “disciplina”, que produz a obediência, ao subordinar a espécie humana à racionalidade da sua natureza inteligível. Assim compreendida na sua duplicidade fundamental, como cultura e como disciplina, a educação defronta-se com uma das suas maiores dificuldades: «como unir a submissão sob uma coacção legal com a faculdade de se servir da sua própria liberdade?» (15). Kant mostra-nos em que medida esta dificuldade se enraíza na condição metafísica do homem: bom, segundo a sua natureza inteligível; mau, segundo o seu carácter sensível. O homem é mau e rude à nascença (contrariamente ao que defende a teoria do “bom selvagem”, perfilhada por Rousseau), manifestando uma certa inclinação para viver no estado selvagem (“Wildheit”) ou, se preferirmos, no estado de natureza, caracterizado por ser independente das Leis. Contudo, pode tornar-se bom, a partir do momento em que se eleve à consciência do Dever e à Liberdade Racional, que define o estado de Cultura.
Isabel
Rosete |
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Notas: (1) – Pelo menos cinco razões podem ser apresentadas para explicar o deplorável estado da educação na Alemanha do século XVII: 1 - a deficiente qualificação dos mestres; 2- a frequência irregular na escola; 3 - a raridade dos estabelecimentos de ensino; 4. a educação subordinada aos fins políticos e religiosos; 5 - a ausência do conceito de criança (cf. Kant, «Reflexões Sobre a Educação», Introdução, pp. 14-17). (2) – Kant, “Informação acerca da orientação dos seus cursos nos semestres de Inverno de 1765/1766”, in «Filosofia», Vol. II, p.173. (3) – Kant, op. cit., p. 174. (4) – Kant, «Reflexões Sobre a Educação», p. 85. (5) – Kant, op. cit., pp. 119/120. (6) – Kant, op. cit., p.73. (7) – Kant, op. cit., p.77. (8) – A arte, afirma Kant, distingue-se da natureza tal como o “fazer” se distingue do “agir” ou do “causar” em geral, e o produto ou consequência da arte se distingue, enquanto obra, do produto da natureza, enquanto efeito. De direito não devemos chamar arte senão à produção pela liberdade, ou seja, por um livre arbítrio que dispõe a razão no fundamento das acções. A arte supõe uma reflexão racional, uma finalidade: a causa produtora da arte é pensada relativamente a um fim, à qual o objecto deve a sua forma, tendo como característica ser distinta de um simples efeito natural, por que é sempre uma obra do homem (cf. Kant, Crítica da Faculdade de Julgar, pp. 134/135). (9) – Kant, «Reflexões sobre a Educação», p. 78. (10) – A educação é o maior e o mais difícil problema que pode ser colocado ao homem. Com efeito, as luzes (Einsicht) dependem da educação e, por sua vez, a educação depende das luzes (Kant, op. cit., p. 78). (11) – Cf. Kant, “Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo?”, in «A paz Perpétua e Outros Opúsculos», pp. 11/19. (12) – Kant, «Reflexões Sobre a Educação», p. 69. (13) – Kant, op. cit., pp. 71/72. (14) – Na «Crítica da Razão Pura», Kant exprime uma ideia muito semelhante: uma legislação completamente especial, mas negativa, que sob o nome de disciplina estabelece como que um sistema de precaução e de auto-exame, perante o qual nenhuma aparência falsa e sofística possa subsistir (kant, Crítica da Razão Pura, Doutrina Transcendental do Método, p. 579). (15) – Kant, «Reflexões Sobre a Educação», p. 87. |
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