DESVIOS E SIMBOLISMOS EM RAINER MARIA RILKE |
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1 - Desvios |
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«Como Orfeu, toco a morte nas cordas da vida e à beleza do mundo e dos teus olhos que regem o céu só sei dizer trevas.
(...) Mas, como Orfeu, sei a vida ao lado da morte, e revejo-me no azul dos teus olhos fechados para sempre»» Ingeborg Bachmann
«Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas, a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão de folhagem, antes tão leve nos arbustos, segue-nos agora de perto.
Onde quer que se apague o incêndio das rosas, a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante! Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas segue-nos até à foz.» Ingeborg Bachmann
Nascido em Praga, em 1875, Rainer Maria Rilke é checo de nascimento, austríaco por vocação, mas sem pátria territorialmente determinada, sem Nação que realmente seja a sua. É o viandante, como o Zaratustra de Nietzsche, que percorre as múltiplas partes do mundo, desde a Europa ao Norte de África, sempre acompanhado pelo espírito errante de quem não tem mais domicílio determinado ou permanente; sempre atento a todos os pormenores que a sua longa vista alcança e que o seu aguçado ouvido consegue descortinar. Adopta como sua pátria a Poesia, esse vasto universo sem fronteiras materiais, que extravasa o tempo e o espaço, apenas limitado pelo Espírito invariavelmente perseguido pela “grande solidão”, que vivamente aconselha ao jovem destinatário das consagradas Cartas a um Jovem Poeta, única postura a que obedece, onde quer que se tenha situado temporariamente. Está sempre acompanhado pela Natureza, a grande mestra que tudo tem para ensinar ao poeta, que morreria se não lhe fosse mais permitido escrever, essa necessidade, em si mesma, intrínseca ao seu espírito infinitamente só, que tudo faz jorrar da sua interioridade como uma fonte “na hora mais silenciosa da noite”. E, então, o poeta escreve sobre as suas tristezas e os seu desejos, sobre os múltiplos e diversificados pensamentos que lhe afloram, sejam eles de vida ou de morte, de alegria ou do mais drástico e atroz sofrimento, amiúde conduzido pela convicção de que é preciso “viver tudo”, e assim amar as dúvidas e as interrogações, apesar do indizível, do inexprimível e do inexplicável acompanharem sempre o seu horizonte de pensamento apegado aos maravilhosos e extraordinários silêncios da Natureza. Sempre solitário, permanece o Poeta, para que os ruídos da voz humana não o impedissem de escutar a harmonia musical, a musicalidade das coisas terrestres e celestes ditas pelos homens, pelos Anjos e pelos Deuses. Entre estes Orfeu é o representante supremo, qual figura profética vagueante entre os “dois reinos” que tudo comove e petrifica, ao mesmo tempo que confere a eterna serenidade e harmonia com o som da sua divina e mágica lira, nele sempre ancorada como símbolo supremo da metáfora da audição – que percorre obsessivamente Os Sonetos a Orfeu – do supremo canto da Terra que está livre e que sendo, em si mesma, uma dádiva, um dom, se dá aos “jogos felizes com as crianças”, sempre alegre como uma criança. A Terra que faz despoletar e florir todas as coisas quando a eterna Primavera regressa. “A terra doa”, afirma Rilke em Os Sonetos a Orfeu[1], mas, no entanto, também se encontra esgotada e magoada, até mesmo manipulada, pelo “Homem dominador” que a tudo lança as suas redes e as suas armadilhas, que não é mais fiel à Terra como as flores que “murcham arrependidas”. Orfeu é, aliás, o exemplo supremo da autêntica escuta que os puramente humanos já há muito perderam. Ainda conserva a virgindade dessa escuta inicial que lhe permite ouvir «os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera (...)»[2]. Nada impediu ao “deus audível” que espanta, compreende, celebra e “canta dizível”, de ouvir os extraordinários silêncios da Terra, de cantar, com as mais belas melodias, as suas cores e as suas tonalidades mais características, apresentadas pelos negros arbustos, pela folhagem envolta por um ”castanho futuro”, permanecentes ao longo de um “caminho poeirento”, onde o «verde desliza para o cinzento – / um cinza que, embora dominado, / contém em si tons de azul e prata», num caminho que, num outro plano, se apresenta “sobre um pano de fundo negro e esverdeado”, onde, um pouco acima, encontramos “um salgueiro” que mostra “ao vento / o escondido claro da sua folhagem” e, ao “lado um verde abstracto, um verde pálido e visionário”, que “embrulha de abandono / uma torre desagregada pelo tempo”. A figura de Orfeu aparece, neste contexto, como aquela que é capaz de exaltar, de conduzir ao seu esplendor, o sentido dos sons que autenticamente escuta. Essa qualidade é exclusiva de Orfeu, do Poeta, que sendo “dos dois reinos”, sabe que o círculo do ser de cada ente se completa com a morte, que a si tudo chama, que concede a cada ente o mais veraz conhecimento da sua própria interioridade. “Só a morte em silêncio conhece o que nós somos”, nós, essa “raça de milénios”, “nós, mães e pais / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais»[3]. Ah! A morte, qual limiar absoluto do auto-conhecimento, qual estado supremo da vida interior, qual ponto único e irredutível que conduz o poeta à via da sua interiorização plena. Rilke, o solitário guerreiro do poema, sempre acusado de ter cultivado, de si próprio, uma imagem mística, escreve em 20 de Junho de 1914 um “estranho poema” espontaneamente intitulado Wendung, representante, segundo o próprio poeta, do ponto de mudança irresistível da sua própria existencialidade, garantida sempre que pega na pena para voltar a escrever, para voltar, ainda, a viver outra vez. Aqui onde a escrita revela e des-vela a alma mortificada, anuncia a necessidade de uma viragem completa, de uma personalidade tão marcada pela Guerra – esse estado de ser desviante da Humanidade que conduz indignamente as coisas ao seu próprio, mas inapropriado fim – viragem que se faria de fora para dentro, e, por isso, o que até ao limiar do derradeiro momento havia sido tarefa do olhar passa a ser Herz-WerK, quer dizer, “obra do coração”: «Porque, olha, há limites para o ver, / e o mundo re‑contemplado/quer dar frutos de amor./A obra da vista está já feita, / fazei agora obra-de-coração/ nas imagens dentro de ti, / presas dentro de ti»[4]. O ponto de viragem impõe-se ao poeta. E o caminho que da interioridade conduz à grandeza, passa pelo exterior, há quanto tempo já contemplado e intimamente frustrado e suplicante ao fundo do olhar, sempre envolto em contornos pouco nítidos sobre a aura de um coração sensível e de um corpo dolorosamente atormentado, que espera no quarto da estalagem um leito de suplício redentor[5]. Rilke passeara os olhos e o corpo doente pela exterioridade do mundo, sempre ávido de impressões exógenas, buscadas em viagens pela Escandinávia, Itália, Espanha ou pelo Egipto, receando jamais poder fechar-se sobre a sua própria concha. Torna-se, por isso, irremediavelmente voltado para fora, envolto por uma espécie de disposição a que chama “bem-estar”, quer dizer, o encontrar-se numa espécie de neutralidade corporal que se traduz no não-tomar-partido do corpo, ao mesmo tempo que uma força se sobreleva e toma conta do seu interior deixando, por alguns momentos, perder no coração geral o próprio coração, em pleno espaço de combate que a Guerra naturalmente fazia perdurar e que não é mais preciso ver, ou até mesmo lembrar. Tal como Orfeu, Rilke sente-se sedento de realizar a grande obra de libertação das imagens da morte dentro de si presas. Por isso, expulsa toda a imposição exterior para re-adqurir o ritmo pessoal, não obstante a tragédia envolvente dos que partiam e dos que ficavam nessas terríveis e abomináveis batalhas mortíferas, atormentadoras da tranquila disposição da alma do poeta que, no entanto, encerra em si a certeza obscura e íntima de que, na terrível montanha “haverá uma força a mais, e o coração tornar-se-nos-á mais forte”. Por isso, poder‑se‑á sentir, de novo, o que há de mais sagrado e de mais puro. «Tão grande e tão sem sentido, afirma Paulo Quintela, que o morrer tranquilo e natural, aquele resvalar, insensível ou doloroso, para a morte própria que lhe era tão querida, é portador de consolação inefável. É o que diz a 4 de Outubro ao Príncipe de Thurn e Taxis, na carta de pêsames pela morte da mãe: ‑ ‘Talvez seja uma espécie de consolação involuntária que, nestes dias da morte elevada ao monstruoso, o dolorosamente natural se cumpra como que com natureza mais suave –»[6]. É o sentir e a meditação da matança enorme e sem sentido que perturba o seu espírito apegado aos homens cuja palavra, porém, lhe inspira medo, desconfiança: «Tenho tal medo da palavra dos homens / Eles exprimem tudo com tanta clareza: / (...) E também me amedronta o seu sentido e o seu jogo / com o escárnio, / eles sabem tudo o que há-de ser e já foi;/ (...) Hei-de advertir e opor-me: Ficai de largo! / Gosto tanto de ouvir cantar as coisas. / Mal lhes tocais ficam hirtas e mudas. / Matais-me todas as coisas.»[7]. Mas os sonhos do futuro não deixam de despoletar no poeta, apesar de todas as atrocidades existenciais e dos ventos que sopram em sentido contrário. Emerge a esperança de que uma palavra de compreensão e de humanidade toque os corações selvagens dos fazedores da Guerra e das mortes inocentes até que a guerra esgotada rua sobre si mesma e se abram novas portas para que o futuro possa começar de novo. Mas quando? Nesta época de indigência, de infortúnio, como poderemos esperar a redenção, a salvação? Contrariamente a Orfeu, o nosso olhar deve ser expectante, porém nunca os nossos olhos, tal como os dele, se podem voltar para trás. Mas, ainda, valerá a pena caminhar de cabeça erguida e de olhos voltados para o que está, para o que há-de vir, para o infinito? Talvez Rilke desejasse, como o “deus cantor”, descer ao reino dos mortos, morrer como os outros morreram e que não foram forçados a ver o horrendo e monstruoso espectáculo que assomou o ínfimo espaço que ocupamos neste Universo errante, que já não conseguimos mais habitar poeticamente. É no seio desta atmosfera de mortandade geral e anónima provocada pela Guerra que se coloca a Rilke a problemática da morte, tão vincadamente presente em Os Sonetos de Orfeu, essa figura injusta do Destino de todos os nascentes que dolorosamente nos rouba os entes mais queridos. Talvez seja mesmo este o sentido último que possamos extrair deste devastador evento: saber-se alguma coisa da própria Morte, «esse cozinheiro azulado / numa chávena sem pires / (...) essa comida cheia de obstáculos / (...) esse duro presente, / como uma dentadura postiça»[8]: Ora, talvez esta aterradora experiência se desenrole, no entanto, perante observadores imprevenidos, se é que nos é possível imaginar a existência de olhos imperturbáveis, olhos que apreendem e contemplam, tal como o geólogo, a rocha apenas na sua extrema dureza e apurem um outro grau ainda superior de dureza da vida, para além da morte, assim desenhada em tão grande efervescência. Esta preocupação da morte vai-se aprofundando cada vez mais no sensível espírito de Rilke para quem o sofrimento é em si mesmo uma forma de redenção, até se constituir como o ponto nevrálgico da sua concepção do mundo, personificada na figura de Orfeu, cujo canto o torna eternamente vivo para além do seu perecimento nas mãos das furiosas Ménades que, só em aparência, conseguiram calar o som encantatório da lira que lhe fora doada por Apolo, e cuja música foi perpetuada pela canto misterioso do rouxinol. Aqui toma forma e expressão plena a ideia da implantação da morte na vida, pelo que a aceitação da vida e da morte mostram ser uma só coisa, uma vez que a Morte é apenas “o lado da vida que não está voltado para nós e que nós não iluminamos”. Rilke mostra-nos, a cada momento, esta imperiosa necessidade de interiorização da morte, assim como da interiorização de Deus: a morte, que expulsamos de nós, de que fizemos uma coisa absolutamente exterior, como se fosse algo que não nos dissesse directamente respeito, que não fizesse parte do curso natural da nossa própria vida. Tornámo-la cada vez mais afastada de nós. Espia-nos algures no vazio, para de repente, sem aviso nem chamamento atempado, quiçá, por uma escolha malévola, assalta-nos imprevistamente. Assim aconteceu com Eurídice, a esposa amada por Orfeu, que, subitamente, na noite do dia do seu casamento, foi mordida por uma cobra venenosa, que sem dó nem piedade a chamou ao reino dos mortos, ao Hades, condenada a permanecer sem o seu amado para todo o sempre, apenas por causa de um olhar que não resiste e se inclina para o lado proibido: «Ela porém ia pela mão do Deus, / travado o passo das faixas de morta, / incerta, suave e sem impaciência. / Seguia ela em si como de esperanças / e sem pensar no homem que ia à frente / nem no caminho que subi à vida. / Estava em si. E o seu ter-morrido / enchia-a toda como uma prenhez. / Tal qual um fruto de doçura e treva, / estava cheia da sua grande morte, / que era tão nova que nada entendia»[9]. A morte, a qual nunca visionámos como o mais fiel adversário da vida, mas como um “adversário invisível no ar”, qual “taça perigosa da nossa felicidade, da qual a cada momento podemos ser entornados”, é-nos afinal tão mais próxima do que qualquer outra coisa que nos rodeia e que, por isso, não podemos apurar sequer a distância entre ela e o nosso “íntimo centro vital”. Eurídice é exactamente o arquétipo perfeito dessa presença constante da morte na vida, da inseparabilidade radical destes opostos que, a limite, se completam no ser e no estar quotidiano do homem. Mas à medida que as mortes individuais, aquelas que mais directamente são sentidas pelo poeta, se vão sobrepondo à dolorosa enormidade das mortes anónimas da massa incógnita de seres humanos reduzidos à mais vã aparência de si, vai-se definindo com clareza, no seu iluminado espírito, a sua nova missão, directamente expressa em carta de 23 de Janeiro de 1919 à Condessa de Stauffenberg: «Se, no meio da turvação e desconcerto geral do humano, vejo ainda perante mim uma tarefa, pura e independente, é unicamente esta: reforçar a intimidade com a Morte partindo das mais fundas alegrias e magnificências da Vida: tornar a Morte, que nunca foi uma estranha, de novo mais reconhecível e perceptível como confidente discreta de tudo o que é vivo». Na sequência deste pensamento, tudo se elabora e se consolida no espírito de Rilke de um modo verdadeiramente vivo. Tal como Orfeu, sente a estrita necessidade do imbricamento dos “dois reinos”, cada vez mais inseparáveis no existir humano, determinado por uma aparente apatia, melancolia e secura do coração, “um estado de congelação interior” que torna esse músculo vital quase inacessível, agravado pela mais íntima necessidade de recolhimento e isolamento, que chega a dilacerar esse coração que sente cada vez mais a insegurança do mundo exterior, qual espaço chamejante no qual já não se pode colocar um objecto, uma palavra, sem que de imediato despoletem sombras inquietas, perante o qual a única saída possível é o recolhimento, único meio de alcançar um lugar mais recôndito, onde ainda se possa encontrar alguma estabilidade. O Mundo já não é mais o lugar que permita uma plena auto-realização. O Mundo tornou-se adverso, aureolado por uma esfera de inacessibilidade perante a qual a única saída é a solidão, o recolhimento interior, o isolamento, o fechamento de si. É o que resta ao poeta modernista, que como ninguém sentiu e vivenciou o estado de errância do humano, impotente perante a inquietude de um Mundo que nada perdoa, mas que exige e violenta o coração sem mácula, o coração que encontra na Natureza a única e grande companheira de todas as horas de enfado ou de tédio, de alegria ou de expressividade dos que amam profundamente as entranhas da Vida que da Morte nunca se separa. As expressões de desânimo, e por vezes mesmo de desespero e de revolta, tão características dos autores modernistas, repetem-se e acumulam-se na sensível alma do poeta, depositária dos segredos da Terra, onde este homem desolado consegue encontrar alguma harmonia e tranquilidade: «Eu fui pré-mundo. / Foi a Terra que me confiou o segredo, como ela faz com o germe, / para o conservar intacto. Oh as noitinhas íntimas! ambas nós chovíamos / tranquilas e aprilinias, a Terra e eu, sobre o nosso seio. / Homem! ai, quem pode provar-te a harmonia fecunda / que nós sentíamos. O silêncio do Universo nunca te será / anunciado, nem como ele se fecha em volta de alguma coisa que cresce»[10]. É a subversão e o enterramento do individual, a obliteração das medidas e, particularmente, do coração individual que já não é mais medida da Terra e do Céu, mas diariamente assaltado por “sucessos e empreitadas”, que choca o Poeta. Não lhe pode pois escapar o lado sórdido da catástrofe e não são raras as invectivas a que assistimos contra a campanha de mentiras que assomam a cada passo neste mundo sem freio e sem leme. Porém, o mais terrível é a pobreza interior e a indizível miséria da própria vida. Já não há meios adequados que a permitam descrever. As palavras tornam-se insuficientes face à grande lamentação e ao desespero do luto. Por isso, «tudo o que agora houvesse ainda para dizer, teríamos de parti-lo cá dentro com um pedaço do coração ‑, fica para além do exagero, para além do máximo jamais possível em palavras, e o desmedido da lamentação que de nós quer irromper pressupõe em nós, para ficar ainda dentro da medida, um ânimo infinitamente ampliado que por sua vez não se poderia desenvolver em época tão confusa e enredada»[11]. As palavras já não são capazes de dizer as coisas. O mundo tornou-se monstruosamente indizível e a alma do Poeta é assombrada pelo desalento, pela revolta, despoletada pela destrutividade brutal da guerra que, tal como a cobra que morde o pé da formosa Eurídice na noite em que iria desfrutar, pelo amor, dos prazeres intermináveis da tão esperada união conjugal, conduz cada ser humano à indignidade da sua própria existência, em virtude da absurdidade em que a envolve, a qual extravasa os domínios naturais da Vida. Face a um Mundo assim configurado, e apesar do seu constante grito de alerta, o poeta sente-se impotente. Para além do recolhimento, resta-lhe o silêncio, essa outra forma de dizer o indizível. Por isso, não se cansa de perguntar. Tal como Orfeu, não desiste de transcender o mundo dos vivos para o mundo dos mortos e, pelo seu mágico canto, recuperar uma vida dolorosamente perdida: «Não há então ninguém capaz de impedir e de ter isto? Porque é que não há um par, três, cinco, dez, que se juntem e gritem nas praças: Basta! e se deixem fuzilar e tenham dado pelo menos a vida por gritar: basta!, enquanto os outros lá fora morrem ainda só para que este horror continue, e continue, e se não veja o fim à destruição. Porque é que ...» Sim: ‑ Porquê? ‑ Pobre Poeta?»[12] Rilke, que traz a multidão dentro de si, impotente, desolado, recolhe novamente ao silêncio. Embora parta sempre das suas mais íntimas e mais centrais convicções, reconhece-se absolutamente incapaz de comunicar. Os seus impulsos mais fortes estão encerrados na sua mais tensa produção, esquivando-se a toda a censura do mundo. “Cidadão da Europa intelectual”, como lhe chamou Paul Valéry, é uma da figuras mais puras e mais estremes da cultura europeia que, não obstante as atrocidades do seu tempo, não deixa de transportar através de céus e terras os grandes e suculentos entusiasmos duma humanidade comum. Guarda sempre em si uma palavra de esperança, conduzido pela ideia que move a obrigação da humanidade para um futuro comum, o qual culminará na união de milhões de homens em todas as terras e em todos os lugares. Nesse instante supremo será possível falar de novo, quebrar o silêncio e, então, cada palavra, seja ela de amor ou de arte, encontrará um novo eco, um som inteiramente renovado, uma nova acústica, uma nova musicalidade, e até mesmo uma atmosfera mais aberta e um espaço mais amplo, que trará ao poeta o desejo firme de continuar a viver em prol desta mesma esperança. Aliás, «sem ela, tudo (...) ficaria pesado sobre nós como uma montanha»[13]. O deus da lira, senhor do canto e da poesia, participa desta experiência preenchedora que é ouvir, escutar, e des-vela o “ante-cantar” como uno. Só o silêncio dos mortos pode ser seu par, porque a humanidade afastada do circuito órfico não tem o entendimento da circularidade, não canta o canto da Terra. Assim, persegue Orfeu, ou se preferirmos Rilke, em busca de uma espécie de “sossego musical”, que faz voltar a si a Terra antiga que, no entanto, se silencia, pois os ruídos “dispersos acalmam-se, ao abandonar o dia / e, em uníssono, recolhem à voz das águas”. Orfeu, Rilke, é, a um tempo, a “orelha da Terra”, e a “Boca da fonte” que fala do “uno puro” e inesgotável; da Terra sem ruídos que, apenas se estasia perante a lira erguida que o louvor entoa. Da lira que até mesmo os mortos faz erguer sempre que tocada por esse mensageiro dos vivos que transpõe o limiar dos mortos e que da morte faz vida. A música e a morte apresentam-se, na poesia de Rilke, como um dueto verdadeiramente inseparável: a música assalta o poeta com uma fúria rítmica, portadora de uma alta censura que se ergue contra o coração que, por vezes, não sente tal vaga e que quase sempre se contenta com vibrações menores, que não tem mais “fôlego para arrancar / tempestades de som” a “trombeta do anjo” pela qual se “inicia o juízo final”[14]. A Música é esse “hálito das estátuas” ou quiçá o “silêncio das pinturas”, “a língua onde as línguas acabam”, é o “tempo posto aprumo sobre o sentido dos corações transitórios”. É a transmutação dos sentimentos em paisagem audível, a eterna peregrina onde repousa o espaço dos corações de nós liberto; o que nos transcende mas que, ao mesmo tempo, se apresenta como o mais íntimo de nós, quando esse íntimo nos envolve “como o mais exercitado dos longes”, como o outro lado do ar puro que a todo o tempo nos refresca a alma e nos leva o espírito para as alturas onde repousam os Anjos e os Deuses de um modo absolutamente puro, gigantesco, mas já não habitável[15]. Aliás, nós, os humanos, não somos senão apenas boca; “somos voz só da boca” que, de repente, solta um grito quando a música já não é mais música e se transforma num ruído insuportável que nos afasta da musicalidade original e do harmonioso canto da pura lira do “deus cantor”, cuja música deixa estupefactos aqueles que a escutam e torna as suas almas infinitamente abertas para aquilo que realmente vale a pena; nos apela ao silêncio pelo qual se nos mostra a escuta autêntica e o falar primordial dos entes: «Se tudo ao menos uma vez se calasse. / Se o casual e o acidental / emudecesse, e o riso vizinho: / se o ruído, que os meus sentidos fazem, / me não estorvasse tanto na vigília ‑»[16]. Seguindo de perto a natureza tão peculiar de Orfeu, Rilke constata, pois, a existência de duas realidades sem conciliação possível: a Natureza e a Humanidade que não experienciam exactamente a mesma unidade, não seguem os seus caminhos como irmãs gémeas, mas como campos que se dão, por vezes, na sua mais drástica oposição. Por isso, o ser humano sofre ao afastar-se da dádiva da Natureza, fonte e reserva de todas as forças que, no entanto, o homem vai esgotando impiedosamente, pois já não tem mais consciência dos limites da sua dominação absurdamente incontrolada e incontrolável. Na escala ontológica de gradação de todos os entes, bitolada pelo grau de proximidade de cada coisa com a Natureza, o homem, que pouco tem guardado da sua humanidade, é inferior ao animal e à planta, porque se distanciou da sua vida total, tornando-se um ser de pobreza, tal como já havia sido enunciado por Sófocles no segundo coro de Antígona, essa incomparável obra de arte trágica que, como nenhuma outra, dá conta das violentas atrocidades do humano perante a Natureza indefesa que apenas quer preservar o seu equilíbrio e a sua estabilidade, em toda a sua dignidade e autenticidade. As palavras de Sófocles são, neste ponto, perfeitamente ilustrativas da posição rilkeana, quando o tragediógrafo, ainda imbuído pela áurea significante do pensamento originário, se apercebe que o nosso vandalismo ecológico não é senão mais do que uma consequência inevitável de uma inquietante estranheza inicial que, bem como o poder que ela engendra precede o homem. É sobre esta vida que roda sobre si mesma, mas que não habita mais dentro do seu próprio círculo, que o ser humano atira os seus laços e as suas redes, quais instrumentos destruidores da ordem natural da própria Natureza. Por isso, a toda a ordem tenta impor os seus jogos, por vezes esmagadores da ordem inerente à Natureza. Devemos, pois, examinar o sentido que deve ser conferido à brilhante conquista feita pelo homem do Mar, da Terra e das espécies animais. A travessia dos mares, a abertura da Terra com a ajuda dos arados, põe em obra o movimento de violência que é central ao homem, o qual, continuamente errando, desenraíza, forma e disforma os limites da vida orgânica. E o grande grito de alerta surge exactamente no já referido segundo coro de Antígona, do mesmo modo que o encontramos vivamente resplandecente na figura do homem imperialisticamente dominador de Os Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke, o mais inquietante e o mais prodigioso entre todas as criaturas, esse «Homem dominador, desde que encarniçado / andas na caça, mas sei-te, mais que rede e armadilha», cujo «matar é uma forma do nosso luto errante»[17], esse ente extraordinário que «co’o sopro invernoso do Noto, / passando entre as vagas / fundas como abismos, / o cinzento mar ultrapassou. E a terra / imortal, dos deuses a mais sublime, / trabalha-a sem fim, / volvendo o arado, ano após ano, / com a raça dos cavalos laborando. / E das aves as tribos descuidadas, / a raça da feras, / em côncavas redes / a fauna marinha, apanha-as e prende-as / o engenho do homem. / Dos animais do monte, que no mato / habitam, com arte se apodera; / domina o cavalo / de longas crinas, o jugo lhe põe, / vence o touro indomável das alturas. / A fala e o alado pensamento / as normas que regulam as cidades / sozinho aprendeu; / da geada do céu, da chuva inclemente / e sem refúgio, os dardos evita, / de tudo capaz. / Ao Hades somente / fugir não implora. / De doenças invencíveis os meios / de escapar já com outros meditou. / Da sua arte o engenho subtil / p’ra além do que se espera, ora o leva / ao bem, ora ao mal; / se da terra preza as leis e dos deuses / na justiça faz fé, grande é a cidade; / mas logo a perde / quem por audácia incorre no erro. / Longe do meu lar / o que assim for! (...)»[18] Este é o modo próprio de ser dos humanos e da sua vida habitante na Terra. E Rilke que frequentou intimamente os pintores de Worpswede, sente-se participante das mesmas intenções desses pintores que captam, em tempo de infortúnio, a essencialidade dessa habitação humana na Terra e pela Terra (que também é pro-dução, poihsiz), no sentido da jusiz grega que, em si mesma dá o ser da habitação, como cultivar e edificar e não como destruir, manipular ou aniquilar. Cultivar é vigiar o crescimento dos vivos. E o traço do habitar indica-nos o cuidado da morada dos mortais na Terra, esse cuidado que não é senão o sustento dos mortais, sendo a Terra a fonte originária desse sustento. Worpswede é, pois, para Rilke o reduto onde a paisagem é admirada e respeitada em todo o seu esplendor. Pintores vieram de longe para viver na Natureza, para a admirar e sentir a força criadora que dela brota originariamente. Partilhando uma emoção de vida que é comum, pretendem que as suas obras revelem a adesão íntima ao estado de ser próprio da Natureza virgem, imaculada. A Einfühlung, com as manifestações da Natureza, resulta de uma relação privilegiada: estes pintores instalam-se na Natureza para interpretar os seus sinais, os seus sons, para compreender intimamente a sua mensagem e não para a desventrar. Rilke refere particularmente o espírito de finura de Bökclin ‑ um dos pintores representantes da corrente idealista da pintura alemã do século XIX, pintor de paisagens de cores escuras, de estilo monumental patético, em cujas telas dominam temas mitológicos ‑ em captar a pulsação da Natureza e de todos os seres que real ou alegoricamente a preenchem. Quando na auréola de um bosque, Bökclin pinta um licorne selvagem, parece incarnar nele todo o mistério da floresta. E se o pintor faz poucos retratos é porque existem poucas pessoas que revelem, no olhar, o carácter da relação que os artistas têm com a Natureza. Por isso é que para Rilke, Bökclin é um dos pintores que mais intensamente percebeu que a fronteira que separa a Humanidade e a Natureza é perfeitamente intransponível. Os pintores, tal como o poeta, perseguem a essência da Natureza, mas ela escapa-lhes sempre. A Natureza, gosta de se esconder, tem as suas próprias leis internas, por vezes inacessíveis à mais perspicaz forma em que a inteligência humana se apresenta, como bem observaram os pensadores renascentistas. A natureza é indizível e até mesmo inexprimível, como o enigmático sorriso da Mona Lisa. Essa sorriso de Anjo pintado por Leonardo de Vinci, esse tipo ideal de retrato renascentista de um ente perfeito e misterioso sempre a olhar para nós, que encerra diversos valores simbólicos, que insinua a cada instante uma interrogação intelectual, mas que ao parecer desvendado, transfigura-se. Com a transfiguração vai a certeza de que o sentido que parecia próximo está outra vez escondido. Rilke reconhece, de facto, que a Natureza tem segredos insondáveis para os humanos. É mais misteriosa do que os mortos e a sua origem mais enigmática do que a Morte e a Vida. E, contudo, os humanos frequentam a Natureza como se fossem donos dela. Com prepotência, servem-se dela e dos seus magníficos dons, explorando os seus recursos até ao esgotamento. Estranhos da Natureza, habituam-se a contactar com ela superficialmente. São apenas as crianças que a reconhecem como reduto matricial, integrando-se nela com a mesma facilidade com que fogem dos adultos e dos seus hábitos. O conforto da infância com a Natureza permanece nos adultos exclusivamente como memória de experiências outrora felizes. Por isso, quando procuram as raízes da infância, a Natureza aparece como imagem desse tempo plenamente redondo, primordial e infinitamente originário. Rilke manifesta obsessivamente uma ânsia de voltar à infância, de marcar um encontro com as origens, de ser novamente criança, de ser como as crianças que brincam, lá fora, passando ao lado do grito verdadeiro: «Oh fosse eu, / um menino e pudesse voltar a sê-lo ainda», exclama Rilke, nostalgicamente, na Sexta Elegia. É precisamente como adulto que o ser humano não vive o sentimento do todo da Natureza, não ouve o canto da Terra. Mas, «a música, sempre nova, vinda das pedras mais frementes, / constrói no espaço inútil a sua casa divina»[19]. E o canto da Terra não deixa de manifestar-se ritmicamente. Na Primavera a Terra está particularmente esfuziante depois da invernosa reserva entorpecida em que interrompe a doação. «A primavera regressou. Em tudo / a terra é uma criança e aprendeu inteiras / tantas, tantas poesias ... E, pelas canseiras, / recebe o prémio do seu longo estudo. (...) Terra que estás livre, dá-te a jogos felizes / agora co as crianças. Quem te apanha, / alegre terra. A mais alegre ganha.»[20] Rilke exprime com as imagens da fonte, dos frutos, das flores, das árvores e, consequentemente, das seivas, dos sucos, dos rumores e dos perfumes a vitalidade real em que se move a Natureza, re-completando ininterruptamente o magnífico círculo do regresso e da despedida. A fonte, essa boca prenhe de dádivas, fála-nos do uno puro e inesgotável através de uma água sempre corrente que nos chega por uma “máscara de mármore”, de onde brota uma «água desbordada / pra outra água à espera lá no fundo, / silenciosa aguardando a que vem murmurando / em segredo, a mostrar-lhe na cova da mão / o céu, por trás de verde e escuridão, / como coisa escondida e cobiçada (...) / pela borda musgosa a cair mansa / pra o espelho do fim que lá de baixo, baixo, / faz a concha sorrir em trémula mudança»[21]. Embora fale aos vivos, somente ao morto é dado beber da sua água, «aqui por nós ouvida, / quando o deus lhe acena em silêncio, a chamá-lo».[22] Rilke representa-nos a fonte como origem, como boca de onde jorra a água mais pura e cristalina, e, ainda, como receptáculo de retorno. Da boca soltam-se falas de uma inesgotabilidade divina. A água corrente é sonora e primordial como o fogo, o ar e a terra e vem de longe transportando as falas. Porém, “para si somente / ela fala”. Sem interlocutores, a Natureza numa tranquilidade insuspeitada comunica o fio de harmonia captável pelos sons mais subtis. «Maçã cheia, pêra e banana, a dita / uva-espim ... Tudo isto fala». A chama ao variar a sua forma com toda a fantasia, é um elemento de transsubstanciação e fala também. Entre as flores que são sempre fieis à Terra e, por isso, murcham sempre arrependidas, a rosa, é a eleita. A rosa é a flor de Rilke. Cultivou rosas no jardim de Muzot. Dedicou-lhe um ciclo de poemas franceses - Les Roses - e escreveu para seu epitáfio «Rose oh reiner Widerspruch. Lust niemands Schlaf zu sein unter so viel Lidern», quer dizer, «rosa, ó contradição pura, volúpia / de ser o sono de ninguém sob tantas / pálpebras»[23]. Em Os Sonetos a Orfeu, a rosa é uma flor dotada de ser, está dentro do circuito órfico, especialmente perto de Orfeu, sendo amiúde conotada com algo de fundamental, ainda que não seja dito o quê. A rosa é um perfume que percorre os séculos, mas é vão procurar encerrá-la num nome, numa designação. Ela escapa-nos sempre. Rilke respira a rosa e expressou o desejo de que se desse o nome a uma variedade de rosas. Tudo é metamorfose, fim e recomeço:
«Rosa, ó rainha, outrora é de supor fosses cálice de bordo limitado. Mas pra nós és a plena, inumerável flor, o objecto inesgotado. Nessa riqueza, pões roupas e mais roupas num corpo que é de nada senão luz; mas cada pétala mostra como poupas todos os atavios e como os negas. Há séculos nos chama teu perfume com seus mais doces nomes; de repente como a glória paira nos ares, balança. Ninguém sabe nomeá-lo, apenas se presume... E uma recordação tem-no presente: nós pedimo-la às horas da lembrança.»[24]
A Rosa é, para o Poeta, a essência de toda a plenitude de ser, tem um encanto natural que instaura contradição, ao ser portadora de uma beleza peculiar que com os espinhos se mantém eternamente unida. É a flor dos contrastes: da suavidade delicada da sua beleza dada pela cor e pelo aveludado das suas pétalas, brota ao mesmo tempo, a agressividade, a violência dos agudos espinhos que fazem sangrar a mais dura pele. É elevada a um nível incomparável, ao representar a transitoriedade da vida, tão cara ao Poeta, de uma forma mais delicada, ao representar o conhecimento da beleza na efemeridade, ao representar a morte que anuncia o fim do ciclo da vida pelo espinho que pica e intensamente faz doer. No entanto, o seu ser é inesgotável na sua temporalidade e, enquanto tal, coloca-nos esse premente problema da aceitação da transitoriedade permanecente no homem e nas coisas, quando as pétalas murcham e os picos ainda permanecem. As pétalas são invólucros de um corpo que já não é nada, cuja perenidade se revela através de perpetuações eternamente perpétuas. A Natureza na sua ordem manifesta uma intencionalidade que se anuncia por Leitmotive. Seria apenas preciso sentir-se parte da mesma textura para os perceber. «Escuta, ouves já os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera». Mas, os humanos já não têm a lentidão necessária para captar a atmosfera musical que se solta nos retornados círculos da Natureza. Os sons emergem da sombra e voltam à sombra, num movimento intemporal sem que os humanos os sintam: «perto das sepulturas, / trazem-te os teus dizeres, os que então jorrem, / passem teu queixo de velhas cãs escuras, / pra caírem depois na concha à tua frente. / (...) Uma orelha da terra».[25] Os humanos têm pressa, são ambiciosos, estranhos e distantes entre si. O ruído da vida humana diminui-lhe a subtileza para ouvir os sons da Terra: à “orelha da terra” não responde a voz dos homens. Os Leitmotive, expressão da vitalidade da Natureza, só atraem os humanos para cumprirem o prazer do efémero. Por exemplo, os frutos inchados de maturidade são por si uma atracção irresistível, mas sem consequências representativas, para os humanos, da circularidade da Natureza. «Onde havia palavra, há descobertas / na surpresa da polpa que se toca». «Esperai..., a que sabe... Mas foge logo após».[26] Tudo é breve e passageiro. Se Rilke insiste na presença do efémero é para tornar mais claro que a origem completa o seu arco com a morte: «Tudo isto fala / morte e vida na boca». Engana-se quem no reino dos vivos acredita na eternidade da Terra. O canto órfico é o alento que comove e que sobrevive quando a Natureza se desfolha. O poeta que sobrevive à estação da morte, está sempre preparado para acolher o futuro. A época do ano mais expoente é aquela em que sendo já Inverno e ainda não sendo Primavera, anuncia a renovação. Rilke é, definitivamente, o poeta da Vorfrühling. A pré-Primavera anuncia as celebrações da festa órfica. A árvore, a água resistiram ao tempo e à morte e exprimem a força renovadora da criação. Brevemente chegarão as folhas e depois os frutos e com elas os perfumes. A marcha do ser sobrepõe-se ao não-ser, porque a força da criação é incontrolável. Mas a alegria e a beleza não são uma conquista para a humanidade. Tudo o que vem do ser a ele volta. A Natureza expõe-se nos seus sinais, mas recupera-os no movimento de regresso a si. O domínio dos mortos é tão presente como o domínio dos vivos. Mas só quem partilha das refeições dos mortos pode compreender a sociedade dos vivos. Quem desce ao reino das trevas pode celebrar os mistérios da terra . «A vós, em meu sentir presença permanente, / sarcófagos antigos, aqui venho saudar-vos»[27]. Os mortos são uma “presença” diversa da dos vivos, permanecem na unidade do ser, regressados à essência da sua textura. A morte não faz parte de um estado misterioso, antes acompanha a vida como uma metade. «Como Orfeu, toco / a morte nas cordas da vida / e à beleza do mundo / e dos teus olhos que regem o céu / só sei dizer trevas (...) Mas, como Orfeu, sei / a vida ao lado da morte, / e revejo-me no azul / dos teus olhos fechados para sempre»[28]. Orfeu frequenta a vida e a morte sem deixar de ser presente, porque o seu canto é de eterna ressonância. O reino dos mortos é sempre presente e, na sua unidade, mantém todo o passado e promete todo o futuro. Na metamorfose do visível em invisível as metades reúnem-se. «Nós, raça de milénios: nós, mães e pais, / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais. / Sem fim aventurados, o tempo que nos resta! / Só a morte em silêncio conhece o que nós somos / e o que é que ela ganha, quando a nós empresta.»[29] Uma das ideias fundamentais de Rilke é, pois, a da morte metamorfose. O movimento de passagem do ser ao não-ser e do não-ser ao ser é constante, porque não há um princípio nem um fim, mas encadeamento de passagens de figuras. Contudo, no primeiro soneto, dedicado a Wera Ouckama Knoop, o nº 25 da primeira parte, Rilke não esconde a desolação e a dor perante a morte prematura com que «transpôs a porta aberta e sem consolo». É interessante constatar que este soneto que não rodeia o espanto perante o não significado da vida precede imediatamente o soneto em que Rilke fala da morte cruel de Orfeu pelo “enxame das Ménades”. Há uma afinidade traduzida pelo efeito do canto de Orfeu na bailarina. Só escutando a lira moveu o seu efémero corpo, mostrando que a dança é também um lugar do regresso do ser. «Sabias inda o lugar da lira erguida, esse / onde ela ressoa - ; o inaudito centro. / E por ela ensaiaste passos da tua arte / na esperança de que um dia, à festa plena, dentro, / a face e o andar do amigo se volvesse».[30] Antes deste segundo jogo da bailarina com o poeta, Rilke atribui a Wera o soneto 18 da segunda parte, fazendo participar a dança e a bailarina da superação do tempo e da exaltação do círculo órfico. “Ela dormia o mundo “.É a afirmação da harmonia silenciosa do universo.[31]
«Com o meu cantar Seduzirei a filha de Deméter, Encantarei o Senhor dos Mortos; Comoverei os seus corações com estas melodias. Hei-de conseguir trazê-la do Hades! (...) Ó Deus que dominas o silencioso mundo das trevas! Para junto de ti todos os filhos das mulheres vêm sem [excepção; Todas as coisas belas acabam por descer ao teu reino. És o credor a quem nunca se fica a dever. Um momento breve permanecemos na Terra, Depois, pertencemos-te para sempre, para todo o sempre. Eu busco alguém que precocemente veio ter contigo. O botão foi colhido antes de a flor ter desabrochado. Tentei, em vão, suportar essa perda. Não consegui! O Amor é um deus de poder infinito. Ó Rei! tu sabes, Que é verdadeira aquela velha história que os homens contam Sobre as flores que presenciaram o rapto de Prosérpina. Permite, então, que se urda de novo para a doce Eurídice O fio da vida, que foi tirado do tear Cedo de mais. Vê! peço-te pouco, Apenas que ma emprestes, não que ma dês... Será, de novo tua, quando tiver vivido a vida até ao fim.»[32]
Orfeu, reconhecido como filho de Eagro (ou segundo outra versão do deus Apolo), príncipe trácio, e de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas , habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajes dos trácios. É o rei desta região. Orfeu, o cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e «cítara» como ninguém. É o único de entre os mortais, cuja arte musical é igualada à dos interpretes divinos, os primeiros grandes músicos, como Apolo, Pã ou as Musas, que não têm nenhum instrumento seu, a não ser a sua própria voz, tão extraordinariamente bela, que nada há que lhe possa ser igualado. Da sua mãe recebera o dom da música e do canto; da Trácia, por intermédio de seu pai, o impulso de desabrochar e o desejo de expansão. Cantava melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se aclamavam. Durante a expedição dos Argonautas, no seio de uma violenta tempestade, diluiu o pânico, acalmou os tripulantes e amainou as ondas com o seu canto. Orfeu, o sacerdote dos Argonautas, reteve a sedução das Sereias, com a sua música, que ultrapassava a doçura destas feiticeiras habituadas a desviarem o curso dos humanos em virtude dos seus dons encantatórios. A sua música é a linguagem perfeita do coração, do amor, da sensibilidade, do afecto. Em tudo penetra. É divina, demoníaca; pura embriaguez dionisíaca. Fiel companheira de todas as horas; eternamente presente em todos os actos, de vida ou de morte, de prazer ou de desolação. Símbolo da música, da poesia e do amor, da audição intacta dos mais puros sons da Terra, Orfeu foi apenas traído pela visão. A perdição pela visão ex-tática do amor constitui o último reduto da sua própria existência. Sendo dos “dois reinos”, culmina como a sua Dríade, Eurídice, no reino dos mortos, não obstante a eternidade do seu cantar, pelas mãos das furiosas e enlouquecidas sacerdotisas de Baco, multidão selvagem, possessa com a ira da embriaguez excitada pela vista do sangue. A música de Orfeu é isso mesmo: a linguagem universalmente eterna de todas as coisas. Mais do que as palavras despoleta o sentir e o ser de cada ente; o seu poder infinitamente penetrante comove o mais insensível; acorda o adormecido; ressuscita os amortalhados; torna visível o invisível; faz escutar o silêncio; torna animado o inanimado; move o imóvel; torna o selvagem dócil. É encanto, magia, hipnose e catarse: no seio das mais profundas tristezas faz brotar a alegria; dá força ao mais frágil dos vermes; faz repousar, torna calmos, os espíritos mais agressivos; acalma as iras e as tempestades. É este poder encantatório da música que Rilke transporta para os seus Sonetos, ele que também é Orfeu, tal como todo o poeta. Porque afinal a missão fundante do poeta é mesmo celebrar: celebrar a palavra divina, celebrar o ser e todos os entes. O poeta está embrenhado numa ontologia fundamental. A missão de Orfeu é salvífica, tal como a de Rilke que, sob o lema de Hölderlin, está plenamente consciente de que «(...) onde há perigo, cresce / Também o que salva»[33]. Nada é irremediável, nem mesmo a morte ... Referindo-se ao mito de Orfeu, os gregos destacam-no, entre a mitologia helénica, por ser dos mais obscuros e carregados de simbolismo; por se ter tornado uma verdadeira teologia, que não deixou de exercer influência determinante na formação do cristianismo primitivo, estando atestado na iconografia cristã. Para os romanos, por seu turno, e, particularmente segundo Ovídeo, Orfeu assume o mesmo simbolismo: subjuga, com o seu melodioso canto e com o som mágico da sua lira, os animais e as árvores, procura Eurídice nos infernos e, igualmente, é morto pelas Ménades. Rilke parecendo manter a tríade qualificativa de Orfeu, recontextualiza-a ao encará-la como fenómeno interpretativo do pulsar original do mundo. Os Sonetos abrem com os efeitos encantatórios do canto de Orfeu sobre a Natureza:
«E uma árvore irrompeu. Ó ascese pura! Ó árvore no ouvido! Orfeu numa canção! E tudo emudeceu. E o silêncio inaugura novo começo, sinal, transformação. Animais de silêncio saíam do arvoredo aberto e claro, dos ninhos de descanso; e então aconteceu que não era por medo nem por astúcia que vinham tão de manso, mas sim porque escutavam.»[34]
O poder dos sons da lira do poeta não é um facto insólito. Antes se manifesta, com mais ou menos audibilidade, em todos os sonetos. Quem é Orfeu, não sendo daqui, mas se «dos dois reinos fronteiros / a sua vasta natureza cresce»? Quem é Orfeu se «sobre ir e mudar / vasto e livre dura / teu ante-cantar, / deus da lira pura»? Quem é Orfeu? O «calmo amigo de tantos longes vários, / sente que a respirares o espaço aumentas. / Entre as vigas de escuros campanários / deixa-te ressoar». Orfeu é o “deus cantor”. Eis é a evocação de uma qualidade que lhe é única. O canto prodigioso do poeta participa do canto da Terra e a forma profunda da sua existência é o seu inigualável cantar. A Terra expira o canto de Orfeu. A lira de Orfeu inspira o canto da Terra. A Terra repousa em si. Irrompe e repousa em si, numa imensa plenitude. Orfeu escuta-a e celebra-a. “Celebrar” é o termo que serve a Orfeu: a sua missão é celebrar as coisas da Terra. O seu canto exprime o dionisismo universal. «Celebrar, isso mesmo! Ser destinado a celebrar, / (...) Nunca a voz lhe falhou no pó, se fosse / do exemplo divino possuído. / Tudo se torna vinha, ou cacho de uva doce, / em seu sul sensível amadurecido. / (...) Porque ele é um dos mensageiros vivos: / transpõe o limiar dos mortos e ergue as taças / com os seus frutos de esplendor votivos.»[35] Orfeu move-se livremente entre as árvores, entre as folhas e as flores e os animais com uma intimidade invejável. A sua fibra é tecida da fibra do mundo e o seu canto toma fôlego no respirar cósmico universal. Cantando, o poeta sorve o mundo e volta a deitá-lo fora num movimento ritmado e contínuo. Ao seu canto associam-se o vento, os ares, os céus sonoros, o voo ... e o grito também. Se Rilke mantém em Orfeu o poder da música e o poder da palavra sobre os seres e as forças do mundo, é porque Orfeu participa “na dupla paisagem” ao mesmo tempo que representa a ligação dos mortos e dos vivos, reinos sem fronteira definida. O primeiro contacto explícito do “deus cantor” com os mortos é quando aí procura Eurídice, conduzida a este mundo pela picada de uma serpente venenosa, quiçá a mesma que expulsou Adão e Eva do Paraíso, não mais recuperado pelos humanos. O episódio de amor de Orfeu e Eurídice, mais do que uma história sentimental simboliza a estranheza dos apelos da vida e da morte, quais pólos complementares, mesmo para quem tem poderes demiurgos. Orfeu não se conforma com a irremediável perda de Eurídice. Lamenta-se doridamente sem cessar. Nem o seu magnífico canto que os outros alegra, lhe trás a satisfação, o ânimo, a coragem. Nada consegue reparar a perda de um ente tão querido. Ovideo em As Metamorfoses descreve, como ninguém, essas súplicas comovedoras:
«Yo, pues, con humildad os ruego y pido, por el silencio grande y los temores de que está lleno el reino ennegrecido, por esta confusión y sus terrores, que me hayáis, sacros dioses, concedido mi Eurídice llevar y mis amores, tornándola la vida, de que el hado con tan temprana muerte le ha privado».[36]
Ovídeo relata-nos ainda como o som comovedor das suas palavras e dos seus acordes se estende às forças das trevas e como o senhor dos mortos lhe concede, excepcionalmente, um favor. Eurídice poderá voltar a ver a luz do mundo se Orfeu for animado apenas pela alegria de a reencontrar Eurídice. A proibição de olhar para trás não é só a crença na palavra de Hades, mas impõem a libertação de um comportamento que o fez perder Eurídice. É a possibilidade de Orfeu se purificar. Ressuscitá-la é ressuscitar-se ou ainda dar supremacia ao apolínio sobre o dionisíaco. Orfeu, deus omnisciente do círculo órfico, hesita entre o apelo dionisíaco dos desejos mais impulsivos do seu ser ardente e o equilíbrio da concentração apolínia. Mas, o entusiasmo dionisíaco do envolvimento com a Natureza que tudo arrebata, bem como a escarlate apologia dos sons dos frutos maduros, do livre voo dos pássaros, da frescura da água corrente, quebra a ordem e harmonia próprias da atitude apolínia. Eurídice simboliza, pois, o lado sublime e etéreo de Orfeu. A morte da figura deixa o poeta desorientado no meio dos sons estonteantes e enfraquece o seu poder criador. Quando procura Eurídice no reino das sombras, é esse lado de si mesmo que procura. Mas, porque não terá conseguido salvar Eurídice? Porque terá sido incapaz de salvar-se a si mesmo, de encontrar o balanço entre as suas contradições? Orfeu ao perdê-la pela segunda vez não disfarça o canto amargo do desespero. Talvez só um sentimento absoluto o inspirasse a não se voltar para trás ou talvez se tenha voltado, movido pela exaltação de ver Eurídice. A traição da visão. A perdição do olhar, como já referimos, impediram-no de promover a dupla salvação Eros[37], uma das personificações que aparecem nas cosmogonias pré--filosóficas, é uma espécie de “primeiro motor” - assim reconhecido por Aristóteles - que explica o casamento e o nascimento de elementos mitológicos. É o princípio primeiro que tende para a plena conservação da vida, da existência de todas as coisas, garantindo a sua suprema vitalidade, a sua eterna perpetuação. Eros como princípio de atracção na Natureza envolve a necessidade e o seu preenchimento. Por oposição, Thanatos[38] é a força inversa que faz prosseguir a Natureza numa luta interminável até ao inorgânico. Eros e Thanatos é o par que determina a oscilação pendular do prazer e do desprazer, do sim e do não, do viver e do morrer. No estado amoroso a aspiração à morte aparece como solução única, sublime, final. A morte é o desejo da plenitude do não-ser, da união última e per-feita. É o que resta para além do canto que já não move nem comove. Wagner, que consumou a ideia romântica de obra de arte total, na qual convergem todas as artes, conseguiu com o seu drama musical, Tristão e Isolda[39], entificar em sons, uma das relações de paixão e tragédia mais mistificadas na história da música. Os mistérios do amor e da morte são de uma obscuridade impiedosa. A revelação pelo amor da unidade na vida é breve, parecendo ser tomada como abuso a experiência dessa alegria. Tristão e Isolda, cantando o amor ideal, provam que esse amor não pode ser consumado em vida, como não o podem ser os amores mais belos. Ao amor demasiado só a morte pertence. Nesta obra intensamente poética, a música e o poema unem-se numa construção dramática em que se manifesta a finura criativa de Wagner. Depois de fazer triunfar, num primeiro momento, o êxtase amoroso como conquista do absoluto, repõe a humildade humana: o absoluto não é, em si mesmo, a dimensão dos vivos. É num outro estado que se dá a unidade procurada na morte, onde se encontra a síntese do eterno e do passageiro. Só na morte descortinamos domínio inexorável do silêncio apaziguador. Nela e por ela as leis do mundo e da lógica são dissolvidas na vastidão do indizível. A morte cativa ao prometer o repouso no esquecimento eterno. Brangäne dando o filtro do amor de Isolda, que tinha ordenado o filtro da morte porque é melhor morrer - de modo nenhum a salva. O amor, “esperança imunda” não resiste como promessa de libertação. Para o amor ser eterno, o tempo teria que ser superado. E o tempo é sempre separação. A viagem, referência de temporalidade, é impiedosa com os amantes. No navio em que Tristão escolta Isolda até ao palácio do rei Marke. Os amantes dão início à sua história de perdição, da “amor de perdição”. Eurídice, também é depositária dessa experiência viandante. Na passagem para a clareira do mundo, perde definitivamente a possibilidade de regresso. Porém, recupera a sua unidade e ganha a eternidade. Para que “ilha dos mortos” serão atirados nas suas viagens? A de Arnold Böcklin parece pronta a recebê-los: uma rocha corcovada num mar negro e encrespada de ciprestes. Os buracos na rocha assemelham-se a catacumbas prováveis para as urnas que fazem a travessia num barco para a última viagem. Max Reger ‑ que seguindo o estilo perpetuado por Brahms, compôs música com uma harmonia cromática inigualável, como podemos vislumbrar nos seus quatro Poemas Sinfónicos segundo Arnold Böcklin ‑ bem como Sergei Rachmaninov ‑ que compôs em 1909, seguindo de perto o estilo de Cajkovskif, o poema sinfónico intitulado a Ilha da Morte ‑ fazem a escolta dessas almas com uma sumptuosa angústia sonora. Rachmaninov, na introdução do poema, sugere o movimento surdo dos remos que se intensifica à medida que o barqueiro prossegue a viagem. É no episódio em que faz a evocação da vida passada, dos seus lamentos e dos seus júbilos, que o computador atinge um pathos orquestral pleno de visualidade. A vida e a morte seduzem e perturbam como duas manifestações da mesma energia cósmica inicial. Rilke dá conta do esforço de ser de todas as coisas e Os Sonetos a Orfeu não deixam de manifestar a dificuldade em abranger a vida e a morte. Das Elegias diz Rilke que a «afirmação da vida e da morte constitui uma única e mesma coisa». Aliás, «reconhecer uma sem a outra ‑ e é isso que aqui se experimenta e exalta ‑ uma limitação que acabaria por excluir tudo o que é infinito. A morte é o lado da vida que está distante de nós que nós não iluminamos». Por isso, «é nosso dever tentar alcançar a maior consciência possível da nossa existência, à vontade em ambos os domínios e deles se alimenta inesgotavelmente ... A verdadeira forma de vida cruza ambos os campos, o sangue da grande da grande circulação passa por ambos: não há nem um Aquém nem um Além, mas sim a grande Unidade, na qual estão à vontade os “Anjos”, seres que nos superam.»[40] Com a superação do tempo, a afirmação reversível da vida e da morte teria mais evidência. Assim, é preciso fazer a travessia do tempo até atingir a libertação do mundo e ser conduzido a um outro ponto supremo, que seja, a um tempo, eterno e ilimitado. O não-ser é o verdadeiro lugar do regresso do ser a si. «Quem com mortos deve / papoulas comer /( nem o som mais leve /voltará a perder».[41] (I-9) Com a morte o ciclo completa-se: os mortos recolhem à fonte originária. Os sons da Terra são testemunhos desse estado fundador para quem estiver atento, porque «flores, parras e frutos por costume / não falam só a língua da estação»[42]. O passado e o futuro são categorias quase esquecidas. Estar aqui, no mundo, é fruir de um imenso agora, um eterno presente. Por isso, a morte é tanto uma ideia sempre próxima de Orfeu. Ele não é só um aqui, é um ser “dos dois reinos”. Orfeu não tem pátria, tal como Rilke, mas a Terra é o seu abrigo apropriado, o seu topoz, o seu lugar natural. Orfeu canta o eterno retorno da Terra, move-se na qualidade de participante do ser da Terra e da sua finalidade eternamente sem fim.
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Isabel Rosete [1] Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, 12, p. 20. [2] Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, 25, p. 61. [3] Idem, 24, p. 60 [4] Cf. in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, pp. 50 - 52. [5] Ibidem. [6] Cf. Rainer Maria Rilke, in Paulo Quintela, HÖLDERLIN E OUTROS ESTUDOS, p. 256. [7] Rainer Maria Rilke, in Paulo Quintela, HÖLDERLIN E OUTROS ESTUDOS, p. 55. [8] Rainer Maria Rilke, “A Morte”, in POEMAS. AS ELEGIAS DE DUÍNO E SONETOS A ORFEU, p. 379 [9] Rainer Maria Rilke, Orfeu. Eurídice. Ermes, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, pp. 162 - 163. [10] Rainer Maria Rilke, in Paulo Quintela, Hölderlin e Outros Estudos., p. 259. [11] Rainer Maria Rilke, in op. cit., pp. 259 - 260. [12] Idem, p. 260. [13] Idem, p. 261. [14] Rainer Maria Rilke, “Assalta-me, música com fúria rítmica”, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 335. [15] Cf. Rainer Maria Rilke, “À Música”, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 389. [16] Rainer Maria Rilke, “Se tudo ao menos uma vez se calasse”, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 91. [17] Rainer Maria Rilke, Os Sonetos A Orfeu, 11, p. 47. [18] Sófocles, Antígona, 335 - 375, pp. 52 - 53. [19] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 10, p. 46. [20] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 21, p. 29. [21] Rainer Maria Rilke, Fonte Romana, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 159 [22] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 17, p. 52. [23] Rainer Maria Rilke, “ROSA, Ó CONTRADIÇÃO PURA, VOLÚPIA”, in Poemas. As Elegias De Duíno E Sonetos A Orfeu, p. 441. [24] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 6, p.42. [25] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 15, p. 51. [26] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 13 - 15, pp. 21 - 23. [27] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 10, p. 18. [28] I. Bachmann, O Tempo Aprazado, pp. 27.- 29. [29] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 24, p. 60. [30] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 28, p. 64. [31] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 2, p. 10. [32] “Orfeu e Eurídice”, in Edith Hamilton, Mitologias, pp. 148 - 149. [33] Hölderlin, “Patmos”, in Poemas, p. 407. [34] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 1, p. 9. [35] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 7, p. 15. [36] Ovídeo, Las Metamorfosis, p. 383. [37] Talvez seja interessante notar que Eros, para além de todas as conotações no âmbito da mitologia grega, é a noção psicanalítica utilizada por Freud para designar o “princípio do prazer”. Corresponde ao princípio do amor ou princípio sexual existente no corpo humano. A energia daí resultante é apelidada de libido. Freud declara a este respeito no seu Tratado de Psicanálise (p. 30). «O que melhor sabemos acerca de Eros , portanto, do seu representante, o libido, é adquirido através do estudo da função sexual que, na acepção corrente se bem que não na nossa teoria, se defende como Eros. Podemos concluir que o impulso sexual que está predestinado a influenciar decisivamente a nossa vida se desenvolve gradualmente a partir da contribuição sucessiva de vários impulsos parciais representados por determinadas zonas erógenas». Para a psicologia analítica de Jung, citando apenas um outro exemplo, Eros representa um símbolo arquétipo. Desencadeia no homem o seu lado inconsciente feminino e a emoção. O facto de o sentimento ser incomensurável para o pensamento, faz surgir complicações diversas. Por isso, afirma Jung: «A maioria dos homens é cega no que se refere ao erotismo e comete simultaneamente o erro imperdoável de misturar Eros com sexualidade. O homem pensa que ter uma mulher é possui-la sexualmente. Nunca a tem menos do que nessa altura, porque para uma mulher, o erotismo tem apenas carácter de conveniência. Para elas o casamento é uma relação em que a sexualidade é um acessório» (Cf. Jung, A Mulher Europeia, p. 58). [38] Por oposição a Eros, Freud recorre ao termo grego Thanatos, para designar o “instinto de morte”: (...) “admitimos, observa Freud, um instinto de morte, tendo por missão reconduzir tudo o que é dotado de vida orgânica ao estado inanimado, ao passo que o objectivo perseguido por Eros consiste em complicar a vida, em mantê-la e conservá-la, integrando na substância viva dividida e dissociada um número cada vez maior da suas partículas destacadas. Os dois instintos, tanto o instinto sexual como o instinto de morte, comportam-se como instintos de conservação, no sentido mais estrito da palavra, uma vez que um e outro tendem a restabelecer um estado que foi perturbado pelo aparecimento da vida. O aparecimento da vida seria pois a causa tanto da prolongação dessa mesma vida como da aspiração à morte, e a própria vida apareceria como uma luta ou um compromisso entre essas duas tendências.»(Cf. Freud, Ensaios de Psicanálise, pp. 207 - 208). [39] O mito de Orfeu encontra o seu par na lenda céltica de Tristão e no drama musical de Wagner Tristão e Isolda. Segundo a lenda céltica, Tristão é um personagem lendário da Bretanha, modelo medieval do cavaleiro enamorado, do ciclo de romances sobre os seus amores com Isolda. Wagner recupera esta lenda e compõe o drama musical em três actos, Tristão e Isolda, estreado em Munique em 10.06.1865. É um longo poema de amor, sofrimento e morte, escrito sob o impulso da paixão amorosa reprimida. O dinamismo que falta à acção é dado pela interioridade expressa no cromatismo exacerbada linguagem musical.. Letra e música, nascidas de um mesmo amor inebriante, apresentam uma homogeneidade única em toda a história da ópera. [40] Maria Teresa Dias Furtado, “Introdução”, in Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno, p. 14. [41] Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, I, 9, p. 17. [42] Idem, I, 14, p. 22.
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