Pormenor do retrato a óleo de José Estêvão existente na sala de professores.

Escola Secundária José Estêvão
Departamento de Línguas Românicas e Clássicas

PORTUGUÊS

 

HETERÓNIMOS SEGUNDO F. PESSOA

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fa­zer aquilo (tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

 

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conse­guirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto as­sim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediata­mente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Obliqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente. Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa-ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

 

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subsconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajus­tei-me a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

 

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 não me lembro do dia e mês (mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro e 189O (às 1.30 horas da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora re­almente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma  só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou esponta­neamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a vi­agem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

 

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inespe­rada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ri­cardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para es­crever e não sei o quê. (...)

 

FERNANDO PESSOA, «Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos» in: Textos de Crítica e intervenção, Lisboa, Ática, 1980.

Página anterior   Página inicial   Página seguinte