HETERÓNIMOS
SEGUNDO F. PESSOA
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser
grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole
pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no
estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia
regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da
pessoa que estava a fazer aquilo (tinha nascido, sem que
eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia
de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um
poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho,
já não me lembro como, em qualquer espécie de
realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada
consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8
de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e,
tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo
sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio,
numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei
definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei
ter outro assim. Abri com o título, O Guardador de
Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém
em mim, a quem dei desde logo o nome Alberto Caeiro.
Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu
mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto
assim que, escritos que foram esses trinta e tantos
poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a
fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva
Obliqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente.
Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a
Fernando Pessoa-ele só. Ou, melhor, foi a reacção de
Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto
Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe
descobrir - instintiva e subsconscientemente - uns discípulos.
Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-me a si mesmo, porque
nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação
oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um
novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem
interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro
de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que
tem.
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo
diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as
caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis
nasceu em 1887 não me lembro do dia e mês (mas tenho-os
algures), no Porto, é médico e está presentemente no
Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915;
nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no
campo. Não teve profissão nem educação quase alguma.
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro e
189O (às 1.30 horas da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e
é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está
certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow),
mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era
de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu
tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo
Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte,
mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura,
mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a
curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor,
olhos azuis; Reis de um vago moreno; Campos entre branco e
moreno, tipo vagamente judeu português, cabelo, porém,
liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro,
como disse, não teve mais educação que quase nenhuma
só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai
e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns
pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.
Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como
disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se
expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um
latinista por educação alheia, e um semi-helenista por
educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação
vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia
estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.
Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o
Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por
pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer
calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma
deliberação abstracta, que subitamente se concretiza
numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever
e não sei o quê. (...)
FERNANDO
PESSOA, «Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese
dos heterónimos» in: Textos de Crítica e intervenção,
Lisboa, Ática, 1980.
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