NA
LEITARIA COM FERNANDO PESSOA
Lídia
Homem de Gouveia conheceu Fernando Pessoa: "A casa
onde vivia a minha professora de instrução primária era
no segundo esquerdo, e o Fernando Pessoa vivia no
primeiro esquerdo. A casa dela era uma casa muito
barulhenta, porque ela tinha três sobrinhas e fazia
contraste com a casa de Fernando Pessoa, que vivia com a
família, mas que era uma casa muito silenciosa. Eu via-o
a subir ou a descer a escada. Havia um candeeiro a gás,
na rua, que dava para o quarto dele. Diz quem observou os
manuscritos dele que escrevia com lápis pequeninos. Eu
reparava que ele nunca metia a chave à porta, devia haver
sempre alguém que lhe abria a porta e também nunca o vi
sem chapéu. A casa dele era muito silenciosa e eu dizia
'que o silêncio o engolia'. Quando ele vinha na rua
vinham sempre muitos garotos com ele, mas não eram
malcriados, vinham atrás dele e falavam com ele, mas não
sei o que diziam. Eram aqueles garotos que acabavam a
venda dos jornais e seguiam-no, mas não eram indelicados.
Fernando Pessoa era uma figura estranha, sempre de preto e
chapéu. Parecia que não andava, levitava, andava aos
ziguezagues".
Lídia
Homem de Gouveia continua a recordar, na sua espantosa memória:
"O Fernando Pessoa todos os dias saía a porta de
casa e virava à esquerda para ir à leitaria do Trindade
onde eu também entrava porque eu ia para o liceu e também
ia à leitaria. Eu bebia um copo de leite e um queque. O
Fernando Pessoa bebia um copo de vinho sempre acompanhado
de um queque, como disse um bombeiro de mais de 90 anos,
que foi há uns anos entrevistado, porque eu isso nunca
vi.
Eu
casei em Dezembro de 1935 e o Fernando Pessoa tinha
morrido em 30 de Novembro desse ano, por isso muito pouco
tempo antes, mas como eu fazia o meu enxoval em casa da
minha professora, cruzava-me muitas vezes com ele na
escada. Eu tinha muita curiosidade pela casa dele, mas só
um dia vi a porta aberta, deve ter sido quando a mãe dele
morreu, talvez em 1926. Aí espreitei para a casa dele. Eu
nunca vi a tal tábua junto ao parapeito da janela da casa
dele onde dizem que Fernando Pessoa escrevia com a luz do
candeeiro da rua. As pessoas não tinham, nessa altura,
a mínima noção do valor dele. Nem eu. Ele era uma
pessoa muito reservada, o que aguçava a curiosidade.
Quando ofereceu ao Trindade da leitaria o primeiro livro
dele, não foi muito apreciado. Ele devia ter as contas um
bocadinho atrasadas e, se calhar, pagou com o livro, não
sei. Era um desconhecido para quase todos nós, ali do
bairro. Talvez os que se juntavam com ele na Brasileira
soubessem o seu valor.
Só há pouco tempo é que me disseram que ele
tinha uma obra sobre gestão de empresas, extraordinária,
que está esgotada. O enterro de Fernando Pessoa deve ter
saído de S. Luís. O Sr. Benjamim, o bombeiro que se dava
muito bem com ele, também não foi ao enterro. Não
saiu daqui. Passou-nos despercebido.
Penso
que o Fernando Pessoa também ia à Universidade Popular
Portuguesa, mas às conferências, não às aulas. Ia só
ouvir. Ia às conferências do António Sérgio e de
outros. Há pessoas que iam às conferências e
disseram-me que sim, que o Fernando Pessoa ia lá. É possível,
mas eu nunca o vi. Sem chapéu e dentro da sala, eu não o
identificava, mesmo que estivesse na assistência. O Sr.
Benjamim via-o em cabelo. Pudera, era o barbeiro dele. Nem
quando me cumprimentava ele tirava o chapéu. Só levava
dois dedos ao chapéu e inclinava um pouco a cabeça. Acho
que nunca dissemos sequer bom-dia!. Ele era muito
reservado.
Eu
comecei a conhecer a obra de Fernando Pessoa quando
comecei a vir aqui às conferências e actividades
culturais da Casa Fernando Pessoa. Como costumo dizer eu
desconhecia a pessoa que havia em Pessoa.
Não
gosto de dizer que conheci Fernando Pessoa. Digo sempre:
'Eu vi Pessoa'. Não tenho a veleidade de dizer que o
conheci. Mas tenho gosto em me ter tantas vezes cruzado
com um dos homens de maior valor da nossa literatura e da
literatura mundial".
A
conversa ia longa. E Lídia, que nunca me deixou tratá-la
por "senhora dona", acrescentou: «Como vê, eu
não fui ninguém importante. Porém, na minha vida, tive
oportunidade de me cruzar com pessoas que foram
importantes. Eu não tenho valor".
Entrevista
a Lídia Homem de Gouveia por Luísa Paiva Boléo, in
"NOTÍCIAS MAGAZINE"
n.º 337 de 8 de Novembro de 1998, págs. 76-90.
(Foto de Raul Cruz)
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