Um
matemático marreca, o padre António Carvalho da Costa, escrevendo
por 1709 a sua Corografia Portuguesa, esboça assim o quadro: – «A
cinco léguas da cidade do Porto, em um ameno e salutífero vale, tem
assento a nobre vila da Feira, cujo termo é vastíssimo.»
Como
consta darem sorte os marrecas, gosto sempre de citar este que, além
dessa circunstância propiciatória, tem fama de verdadeiro e justo nas
suas apreciações.
Estendiam-se por 1180 quilómetros quadrados as 105 freguesias que
compunham a civitas de Santa Maria, circunscrição sujeita ao
castelo do mesmo nome, mais tarde chamado Castelo da Feira. Por dez
concelhos actuais se dividem essas freguesias, pertencendo 31 à Feira,
20 a Gaia, 19 a Oliveira de Azeméis, 9 a Cambra, 8 a Estarreja, 7 a
Ovar, 5 a Arouca, 4 a Espinho, 1 a S. João da Madeira e 1 à Murtosa.
A
civitas ou Terra de Santa Maria figura já em documentos do século
décimo e nos velhos cronicons. Um dos mais antigos, de 977 (Port. Mon.
Hist. CXX), ao dizer que a civitas de Santa Maria fica perto
da vila Valeiri (S. João de Ver), refere-se evidentemente à sede da
circunscrição, que existia, portanto, nas cercanias do castelo distante
três quilómetros de S. João de Ver.
Diz a
lenda que a cabeça da Terra de Santa Maria era reconstrução da cidade
romana Lancóbriga.
Desenvolvimento ou sucessora dessas, uma povoação foi apinhoando o seu
casario na baixa dominada pelo castelo e perto do sítio onde se expunham
à venda os produtos das colheitas, os artefactos, as ferramentas, os
utensílios e os panos necessários à vida, ainda rude mas já industriosa,
dos vizinhos, vassalos e ingénuos que vinham trazer aos prestameiros e
almoxarifes os foros, tendas e alcavalas impostas nos terrenos
senhoriais. Tão importante era essa feira que deu nome à vila e,
em 1117, D. Teresa data um documento da Terra de Santa Maria onde
chamam Feira.
Castelo e
Terra começaram a chamar-se de Santa Maria da Feira até se reduzir a
designação só ao novo nome. Assim as Terras de Santa Maria se
converteram no condado da Feira e o foral manuelino de 10 de Fevereiro
de 1514 é concedido à vila da Feira e Terra de Santa Maria.
Além
desta tradição de cabeça dum dos mais vastos territórios organizados ao
ocidente da península, o castelo da Feira é padrão glorioso da
independência nacional.
Em 1128,
Ermígio Moniz, descendente dos senhores das Terras de Santa
Maria, fez levantar o Castelo da Feira a favor do Infante D. Afonso
Henriques, quando este, voltando
/ 61 / da corte de Leão, se rebelou
contra a mãe. Nesse grito de revolta nasceu a autonomia pátria e do
Castelo da Feira – onde nasceu Portugal – partiu este para o
norte, já nascido, vivo e revoltado, a adquirir adesões, até se bater no
campo de S. Mamede com as forças de D. Teresa e do Trava, e entrar
triunfante em Guimarães, que era a capital do condado e se conservava
fiel à viúva do conde D. Henrique.
Só assim,
devendo D. Afonso Henriques a Ermígio Moniz a iniciativa da
revolta que lhe deu a independência do condado e a coroa de rei, se
explica o preferi-lo para seu dapífero e para senhor da Terra de Santa
Maria, ao irmão Egas Moniz, o seu aio, a quem devia não só o
tê-lo educado mas até a promessa com que obteve a milagrosa
interferência de Nossa Senhora de Cárquere, para o sarar das pernas que,
ao nascer, trazia unidas dos calcanhares aos joelhos.
Mas o
Castelo da Feira era já então antiquíssimo. Vêem-se ainda agora, nos
baixos e na entrada da torre de menagem, vestígios evidentes duma
construção romana, tendo aparecido em reduzido perímetro três aras
votivas, com as inscrições latinas de duas interpretadas pelo sábio
arqueólogo dr. Leite de Vasconcelos. Como os romanos colocavam
essas aras nos templos ou nos castros, forçado é concluir que ali
existiu uma fortaleza romana, marcando uns dois mil anos de existência
àquele monumento, sucessivamente transformado até à traça e aspecto
actuais e devidos à reconstrução feita por Fernão Pereira, pai do
primeiro conde da Feira, entre 1448 e 1467.
D.
Fernando I
concedera as Terras de Santa Maria ao seu cunhado, D. João Afonso
Telo e, como este seguiu o partido do rei de Castela, vieram os do
Porto, em 1385, tomar o castelo para o Mestre de Avis, capitaneadas por
Gonçalo Vaz Coutinho, a quem tiveram de pagar mil libras de
afonsis, «porque doutra guisa o não quisera fazer».
Deu
depois D. João I a alcaidaria do Castelo da Feira ao heróico Sá das
Galés e as Terras da Feira ao seu marechal Álvaro Pereira. O neto
deste, Fernão Pereira, obteve, ainda em vida do pai, de D. Afonso
V, o castelo, com a obrigação de o corrigir, refazer e reparar, o que
cumpriu, visto o filho declarar que não podia concorrer para a armada
contra os piratas por o pai ter gasto todo o dinheiro nas obras do
Castelo da Feira.
Dos fins
do século XV até 15 de Janeiro de 1700, os condes da Feira trataram mais
do seu solar, feito, reconstruído e alindado dentro das muralhas
históricas, do que da conservação do monumento militar. A única excepção
foi o acrescento da barbacã, a defender a porta principal, pelo quarto
conde, D. Diogo Pereira Forjaz, em 1567.
Em 1708
foram todos os bens dos condes da Feira incorporados na Casa do
Infantado desamortizando-se em 1839 pela venda a particulares, de que só
escaparam a torre de menagem e as muralhas exteriores.
/ 62 / Ficou
portanto o castelo ao desbarato, até que, em 1909, o dr. António
Augusto de Aguiar Cardoso organizou a Comissão de Vigilância pela
Guarda e Conservação do Castelo da Feira. Ao esforço tenaz e persistente
deste benemérito, falecido em 1937, se deve o ter começado o restauro
pela Direcção dos Monumentos Nacionais em 1935 e o ver-se o castelo,
desde 1939, isolado e liberto da propriedade particular que o apertava
em aterros e construções variadas, impossibilitando a visita a mais de
três quartos do seu perímetro, impedindo portas, postigos e seteiras e
escondendo muralhas e recantos externos.
Coincidiu
este isolamento com uma época de transformação da vila devida à
iniciativa e energia do presidente da Câmara Municipal, Dr. Roberto
Vaz de Oliveira. Rasgou-se uma larga avenida visando o castelo e
tendo ao topo o padrão dos centenários dedicado «aos que em 1128
iniciaram no Castelo da Feira o movimento da independência de Portugal».
Fez-se a rectificação da estrada de acesso ao vetusto monumento e foi
alargada para serem ajardinadas as faixas laterais. Aberta está já a
estrada envolvente das muralhas que permite examiná-las por todos os
lados e torna praticáveis todas as cinco entradas no castelo.
As
dificuldades e impedimentos do período tormentoso que se atravessa têm
demorado a conclusão destas obras, mas vão progredindo as de
embelezamento do tribunal, fronteiro ao castelo, no edifício do antigo
convento dos frades lóios. Foi este da iniciativa dos quartos condes da
Feira, em 1660, e tem anexa uma grandiosa igreja, matriz da freguesia,
que bem merece ser considerada monumento nacional, não só pela
sumptuosidade do seu interior, como pelo escadório que lhe dá acesso e
vem terminar num lindo chafariz ao começo da nova avenida e junto do
vasto largo arborizado, onde ainda se faz mensalmente a tradicional
feira.
Há na
vila o templo da Misericórdia com outro mais imponente escadório e tendo
ao lado o moderno edifício do Abrigo dos Pequeninos.
É, por
tudo, digna duma visita a vila, como é digno duma patriótica romagem o
Castelo da Feira, de cujo eirado se abrange um soberbo panorama
contornado, do sul de nascente e do norte, pelos pinheirais que
circundam nas alturas o plaino verdejante em torno do casario da vila e
estendendo-se ao poente, até à beira-mar cortada pelas águas espelhantes
da ria nas areias da praia, e findando no horizonte com a linha regular
do oceano.
Ao
quilómetro 24,2 da estrada nacional que parte do Porto para Lisboa,
cruza a 29 de segunda classe, distando a Feira, para o sul desse
cruzamento em Albergaria de Souto Redondo, quatro quilómetros apenas.
Tem a
estação própria no caminho de ferro do Vale do Vouga a 13 quilómetros de
Espinho. Servem-na também as estações do caminho-de-ferro do norte de
Ovar, a onze quilómetros de estrada plana, e a de Espinho, também
servida por boa estrada.
No vasto
concelho há muitos pontos de turismo. / 63 /
No
prolongamento da estrada 29 fica para o norte, a três quilómetros, a
estância termal das Caldas de S. Jorge, num formoso e pitoresco vale,
com águas suIfidratadas cloretadas sódicas, notáveis pelo alto grau de
alcalinidade e pela grande percentagem de litina, e de surpreendentes
efeitos no tratamento de reumáticos, de artríticos, de doentes da pele e
de sifilizados. Segue essa estrada até ao Carvoeiro de Canedo, debruçado
sobre o rio Douro, com lindíssima paisagem.
A sete
quilómetros da vila fica a igreja medieval de Riomeão, e em Fiães, a
duas léguas e meia, existe a estação arqueológica do Monte de Santa
Maria, só inicialmente explorada. Mas, em Romariz, a igual distância da
Feira para o oriente, encontra-se a estação romana muito importante do
Castro da Portela.
Em
Arrifana, ao pé da estrada nacional e com comunicação directa para a
vila, a uma légua desta, está erecto o monumento da guerra peninsular,
recordando o morticínio no campo da Bussiqueira, praticado pelos
soldados de Soult, em desforra da morte dum oficial francês, cometida no
sítio da Quebrada, entre a ponte de Cavaleiros e o lugar de Carcavelos
da freguesia de Riba de Ul.
É a
Feira, portanto, uma estância de turismo, não podendo ser esquecida dos
que desejam conhecer o país, os seus monumentos e as suas belezas.
Pequeno é o desvio imposto aos turistas que passam na estrada de Lisboa
ao Porto ou na linha férrea do norte.
Impõe-se
a abertura duma estrada que ligue a Feira para o sul da estrada de
Lisboa e a ponha no seguimento da que vem da Beira Alta, de forma a
tornar o Castelo da Feira ponto de passagem para quem do sul ou da Beira
se dirigia a Espinho e mesmo ao Porto, visto que pelas estradas da
beira-mar tornarão o caminho mais curto, mais plano e mais pitoresco.
Aqui
ficam as sucintas indicações que o meu destrambelhado coração me
permitiu coligir no prazo dado, para a revista “Turismo” transmitir aos
seus leitores; mas prometo-lhes, quando aqui vierem, acompanhá-los na
romagem ao Castelo da Feira, e dar-lhes todos os mais esclarecimentos
que souber, indicando aos gulosos onde se vendem as tradicionais fogaças
e onde se comem os saborosos doces do Chá das cinco na Casa
Coimbra.
Vaz
Ferreira
|