Carlos Alberto Rodrigues Dias
Procurando seguir a lógica das intervenções anteriores,
referirei, em primeiro lugar, o contexto e as motivações da minha
participação na chamada Gestão Democrática.
Ingressei no Conselho Directivo em 1985, integrando uma
lista maioritariamente feminina (era o único homem do grupo) onde exerci
a função de vogal com a responsabilidade pelos cursos nocturnos. A
Gestão Democrática estava institucionalizada há nove anos pela
legislação do ministro Sotomayor Cardia de 1976.
A minha principal motivação, numa altura em que já levava
nove anos de profissão, foi a curiosidade, a necessidade de conhecer o
mundo do ensino a partir de um outro posto de observação. Não tenho
memória de ir possuído de grandes projectos de transformação ou qualquer
espírito de militância, exceptuando, eventualmente, a militância
sindical; procurava acima de tudo enriquecer-me com a experiência que
permitisse um novo ângulo de visão, um outro ponto de vista. Por outro
lado, não posso ignorar um facto que, embora não se tenha constituído,
com toda a sinceridade, como primeira motivação, veio no momento
oportuno e teve também um peso significativo: a possibilidade de ficar
destacado em Aveiro junto da família e ingressar no quadro de
professores efectivos sem ter que me deslocar para uma periferia
relativamente longínqua. Penso que acabei por pagar esse privilégio, uma
vez que fiquei oito anos consecutivos no Conselho Directivo da Escola
Secundária N.º 1 de Aveiro de que fui o presidente entre 1987 e 1993.
Um outro aspecto, a que já aludi e me parece também
relevante, tem a ver com a intervenção sindical. Penso que a minha saída
do anonimato na Escola se deveu ao facto de ser então delegado sindical
e terá sido esse um dos factores que abriu a possibilidade de participar
num Conselho Directivo. Aliás, acho que a primeira fase da minha
participação na Gestão Democrática eu próprio a encarei
predominantemente como um prolongamento da actividade sindical, como
prestação de um serviço aos professores. Com o tempo, a minha noção de
serviço público foi evoluindo, foi-se alargando aos outros corpos, aos
alunos e à comunidade inteira.
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Nessa evolução fui crescendo e amadurecendo, gerindo e
criando as tensões e os conflitos daí resultantes. À contemplação teve
que suceder a acção, tanto quotidiana como num sentido mais estratégico
do médio prazo, uma acção cada vez mais empenhada e crente de que o
exercício daquelas funções se inscrevia nessa noção alargada de serviço
ao público.
Naquela segunda metade da década de oitenta e princípios
de noventa, o grande problema da Escola Secundária N.º 1 de Aveiro era o
das instalações. Aliás, todas as escolas sentiam esse grande problema.
Vivíamos ainda sob os efeitos da explosão escolar em que era preciso
improvisar salas de aula, levantar paredes e dividir espaços, arranjar
lugares sentados para os alunos, quase sempre mal acomodados e agrupados
em turmas normalmente muito grandes. O problemas das instalações era,
portanto, uma questão prioritária, quer no plano da quantidade, quer no
plano da qualidade. A título de exemplo, a escola de que vos falo foi
construída a pensar numa ocupação que deveria rondar os seiscentos
alunos e albergava nessa altura bastante mais que dois mil. No entanto,
nos últimos seis anos, graças ao efeito conjugado da construção de novas
escolas e da redução da natalidade, esta mesma escola passou de
cinquenta e seis ou cinquenta e sete turmas para apenas trinta e nove ou
quarenta. Hoje, o problema é cada vez mais uma questão de qualidade dos
espaços e do serviço.
Na linha sugerida de registar alguns episódios da
experiência vivida, passo a relatar o primeiro, precisamente a propósito
de instalações.
Numa das habituais reuniões em que participavam os
dirigentes das escolas, técnicos e responsáveis dos Equipamentos
Educativos e da Direcção Regional de Educação do Centro para, de acordo
com as previsões, concertar a distribuição dos alunos para o ano escolar
seguinte, um dos peritos presentes, especializado na questão, afirmou
que tecnicamente se considerava em ruptura uma escola cuja taxa de
ocupação atingisse cerca de 85% da sua carga horária máxima. Como a
escola tinha ainda aulas a funcionar, com elevada taxa de ocupação, em
sete pavilhões pré-fabricados, muito degradados e com as madeiras
bastante apodrecidas, resolvi na reunião seguinte, apresentar um
relatório com a ocupação horária de cada uma das salas de aula em que se
demonstrava que a taxa de ocupação da escola
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era muito superior aos tais 85% e que, portanto, estávamos perante um
caso de ruptura, agravado com o elevado estado de degradação das
instalações. Tudo isto para fundamentar a necessidade de, naquele
contexto, as condições da escola serem tidas em conta, quer na
distribuição de novos alunos, quer na urgência de uma intervenção dos
Equipamentos Educativos para remediar a situação. Ouviram-me, mas nada,
nas palavras ou nos actos, revelou qualquer especial sensibilidade para
um problema que era efectivamente dos mais graves que afectavam o parque
escolar na cidade de Aveiro. No ano lectivo seguinte, quando o frio
apertou um pouco mais, um jovem de 14 ou 15 anos, membro da Associação
de Estudantes, na altura a frequentar o 8.º ou o 9.º ano, aparentemente
muito sossegado, tratou de mobilizar os seus colegas para um protesto
contra a existência de aulas nos pavilhões onde o frio, devido ao
arrefecimento nocturno, durante a manhã, chegava a ser maior no interior
das salas do que no exterior. Aquele jovem não se esqueceu, entretanto,
de informar previamente alguns jornais e rádios locais, bem como
correspondentes de jornais de expressão nacional, para o facto de se
estar a preparar uma greve dos alunos. A forma de protesto desencadeada,
cujo eco foi ampliado pelos órgãos de informação, chegou mais
rapidamente a Coimbra do qualquer das comunicações institucionais, mesmo
as mais instantâneas como o telefone e o telefax. Na manhã em que saíram
as notícias nos jornais, o Conselho Directivo recebeu, num período curto
de tempo, telefonemas da Directora Regional de Educação, do Subdirector,
do Coordenador do Centro de Área Educativa de Aveiro, dos responsáveis
pelos Equipamentos Educativos, todos interessados em compreender o que
se estava a passar e a equacionar modos de resolver o problema. Nunca
tantos responsáveis se tinham preocupado ao mesmo tempo com aquela
escola. Esta foi uma experiência de vida marcante, aprendi com aquele
jovem de 14 ou 15 anos a compreender os limites da acção puramente
institucional.
A outra história está ligada à ideia de descentralização
e de autonomia. Já se fala de autonomia da escola há algum tempo, na
altura falava-se sobretudo da falta dela. Havia situações correntes na
segunda metade dos anos oitenta que aos nossos olhos de hoje parecem
totalmente caricatas. Os cargos de eleição como Delegados
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de Grupo, Coordenador dos Directores de Turma, Directores de
Instalações, cujo processo de homologação depende hoje dos órgãos de
gestão das escolas, era obrigatoriamente submetido à homologação da
Direcção Geral do Ensino Básico e Secundário, o que significava na
prática que essa homologação só acontecia, grande parte das vezes,
quando as aulas já tinham acabado e os mandatos homologados já tinham
expirado. Era uma das irracionalidades do sistema que teimava em
persistir. Quando apareceram as Direcções Regionais de Educação,
criou-se alguma expectativa positiva, quanto mais não fosse pela maior
proximidade e um melhor acesso a uma instância intermédia de poder.
Passou a ser possível ir a Coimbra à D.R.E.C., de início também a
funcionar num velho pavilhão pré-fabricado junto ao antigo Hospital da
Universidade.
No entanto, rapidamente aprendi a descrer na boa fé do
discurso descentralizador e autonomista, quando este é oriundo das
estruturas centrais, ainda que de carácter regional. A certa altura, na
sequência da assunção progressiva de competências das Direcções
Regionais, foram os dirigentes das escolas convocados a participar na
distribuição dos núcleos de estágio no âmbito da formação inicial de
professores. Definiu-se igualmente o processo de indigitação dos
formadores, que passaria pela proposta dos órgãos de gestão de cada
escola, mediante o parecer dos pares de cada grupo disciplinar
envolvido. Até aí, a escola, incluindo os seus dirigentes, eram
normalmente os últimos a saber das decisões tomadas por entidades
distantes e quase desconhecidas, situadas algures numa Direcção Geral.
Esse novo procedimento, aprovado pelo Conselho Pedagógico, foi
implementado na minha escola e teve consequências, levou ao confronto de
posições e ao conflito de interesses, que se revelaram mais fortes do
que a afirmação e a consolidação de novos processos de tomada de
decisões. Acabaram por prevalecer outros pareceres e outras decisões que
não as dos órgãos legítimos do estabelecimento de ensino. A luta pela
autonomia da escola teve ali uma pequena derrota. A autonomia não se dá,
conquista-se, quando se assumem localmente as responsabilidades e elas
são respeitadas, quer pelos mais directamente envolvidos, quer pelos
órgãos hierárquicos superiores. Naquele caso aquela escola não conseguiu
dar nenhum passo em frente. Hoje a autonomia está cada vez mais na ordem
do dia
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dos discursos, houve mudanças organizativas importantes. Os órgãos
centrais dedicam-se, entre outras coisas, a produzir literatura em que
se ensina a autonomia, mas não perdem a oportunidade, em sede de
regulamentação, de complicar e de tentar espartilhar a liberdade de
acção que é inerente a qualquer processo de afirmação de
responsabilidades locais. A autonomia é de facto um processo eivado de
contradições e de conflitualidades, que frequentemente ocorrem para além
ou independentemente das simples reformas legislativas.
Finalmente, de um ponto de vista pessoal, pelo menos,
alcancei o objectivo que me propus inicialmente: observar a realidade
escolar e profissional de um ângulo de visão diferente. Penso que
aprendi, amadureci e perdi alguma da ingenuidade inicial, embora não
toda. Não estou arrependido nem frustrado. Esta experiência de gestão
marcou a minha vida profissional, condicionou o modo de aproximação e o
conhecimento da realidade, influenciou as minhas reflexões. Hoje,
distante da visão utópica dos crentes em grandes, maravilhosas e rápidas
transformações, procuro intervir imaginando nas pequenas mudanças uma
racionalidade e um sentido que de algum modo contribuam para a melhoria
do bem estar e da qualidade de vida do maior número possível dos
intervenientes que se agitam em torno do serviço educativo que
prestamos.
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