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        Arsélio de Almeida Martins 
        
        
          
        
        
        Acho que foi muito importante as pessoas 
        ouvirem-se umas às outras. Há coisas que nós não sabemos, mesmo quando 
        participamos nos acontecimentos. Ao ouvir as pessoas, percebi que não 
        tive uma boa parte dos problemas que as pessoas têm ou tiveram. Tenho 
        estado aqui a tentar descobrir porque é que isso aconteceu. Eu tive um 
        percurso completamente diferente. Estava a tentar dizer por que raio é 
        que eu estive muitas vezes na gestão, e a explicação para isso é porque 
        era preciso, porque é a minha vida, porque fui empurrado para isso e não 
        sei quê, mas o que é que leva fundamentalmente um tipo como eu, que sou 
        professor de matemática e nunca desisti de ser, a fazer aquilo a que se 
        chama habitualmente um "frete"? Porque é uma coisa sempre secundária na 
        minha vida. 
        
        
        Com 17 anos, 18, comecei a trabalhar, no 
        que diz respeito a opções políticas, na Universidade de Lisboa, 
        aparentemente à volta da extrema-esquerda, mas em grupos de apoio 
        pedagógico e num centro de estudos científicos de estudantes da 
        Faculdade de Ciências de Lisboa. Desde o primeiro ano da universidade, a 
        minha vida passa sistematicamente pelo associativismo militante, pelo 
        lado das questões pedagógicas. Começo a minha vida activa, devo dizer 
        adulta, como militante associativo ligado à extrema-esquerda, mas sempre 
        nos sectores pedagógico e científico. Quando a minha faculdade se 
        radicaliza brutalmente, esta acção científica e pedagógica praticamente 
        deixa de existir para só haver grandes confrontos com a polícia, eu já 
        me mudei para o Porto. A minha família mudou-se para o Porto e eu com 
        ela. Saio do grupo dos meus amigos. Desde cedo, trabalho muito mais 
        agarrado a pessoas naquilo que é fundamental do que agarrado a ideias. 
        No Porto, o movimento estudantil é todo clandestino, não há nada que 
        seja legal; e eu passo a um movimento muito recuado, em que é necessário 
        trabalhar sistematicamente com os estudantes a nível muito recuado, 
        pedagógico – matemático. Agora é uma militância pedagógica dentro da 
        Universidade como militante associativo, e, como é natural, e fui 
        dirigente de uma Associação de Estudantes em listas de unidade de 
        esquerda e em listas da extrema-esquerda, Como estudante, 
        / 
        52 / o meu trabalho é 
        sempre ligado a questões pedagógicas. No fundamental, a minha formação é 
        toda de trabalhar com os estudantes na área pedagógica, e é da política 
        em segundo plano. 
        
        
        Quando vou para professor, vivo todos os 
        passos: tenho que fazer as Ciências Pedagógicas nas Letras do Porto, 
        colocado em Vila Real, para ganhar nas férias. Sou um activo professor, 
        defendendo as minhas ideias desde o início, morrendo sempre pela 
        língua... Nunca tive calma suficiente para seguir os tais conselhos do 
        Dr. Aurélio que é "Cala-te boca, que é para não te tramares". Eu morri 
        sempre pela língua, morria antes no movimento associativo estudantil, e 
        muitas vezes depois como professor. 
        
        
        Mas percebe-se então o que é que se 
        passa. O que se passa é que eu passo para a profissão docente. Depois de 
        passar pela tropa, em Novembro de 1975, entro na vida das Escolas como 
        vivia no movimento associativo. Logo em 76, depois de um ano a fazer 
        barulho, sou candidato a um Conselho Directivo, por razões de coerência 
        interna à escola e externa em relação às opções políticas que defendia. 
        A primeira vez que concorri às eleições foi na Escola Secundária Filipa 
        de Vilhena. Ao fim de um ano de ter dirigido assembleias e essas coisas 
        todas, não tive outro remédio senão formar lista. Felizmente fui 
        derrotado, porque, com o meu temperamento religioso, se não tivesse sido 
        derrotado, e fui derrotado por muito poucos votos não tinha ido fazer 
        estágio, porque com o meu feitio, se eu tivesse ganho as eleições ainda 
        agora era professor provisório, provavelmente, nunca mais tinha 
        conseguido equilibrar o meu barco, ou tinha saído do ensino. Fui fazer 
        estágio num Liceu Garcia de Orta, onde havia agressões, caceteiros, 
        sistematicamente, havia o bairro chinês e havia os meninos da Foz, que 
        andavam sempre à pancada. Nesse tempo era professor, mas não gostava que 
        me apalpassem mesmo sendo estagiário. O que mais me marcou nesse tempo 
        foi a violência gratuita e a perda de invariante dos estudantes em 
        relação aos professores, em relação à organização, etc.. Não tendo 
        vivido nas Escolas nos dias do 25 de Abril, porque estava na tropa, 
        espantou-me a grande violência nas Escolas do tipo do Garcia de Orta. 
        Era um problema que me preocupava muito, fiz muitas intervenções no 
        Garcia de Orta, apesar de ser estagiário, e trabalhei muito no sentido 
        de equilibrar disciplinarmente 
        / 
        53 / aquela escola. 
        Finalmente, tive duas felicidades juntas (a minha mulher engana-se 
        sistematicamente nos números e fomos parar a Santo Tirso). Uma vida 
        bucólica. De noite andava pelo Vale do Ave a ver e a repintar a paisagem 
        e de dia dava aulas no Liceu de Santo Tirso. Depois de Santo Tirso, vim 
        parar à Escola Secundária de Aveiro, que nessa altura existia com um 
        ambiente um bocado a que não estava habituado. No Garcia aquilo era 
        muito violento, mas o corpo dos professores era muito unido, 
        conseguíamos defender-nos uns aos outros, embora, nas votações as 
        pessoas se dobrassem ao peso dos papás influentes. 
        
        
        Na Escola Secundária de Aveiro, a Isabel 
        Cerqueira passa-me o lugar dela de Coordenador de Directores de Turma 
        para eu poder ir para o Conselho Pedagógico e no fim daquilo 
        candidato-me ao Conselho Directivo numa lista que ganha; mas é esse o 
        ano em que sou expulso de um partido político e vou sair de Portugal num 
        concurso para cooperantes: com a minha família (e a do Alcino Cartaxo 
        também) vou para São Tomé. Quando voltei não havia horários de 
        matemática e, para não andar lá a fazer figura de empatar serviço, 
        concorri a várias Escolas, e fui parar à José Estêvão, numa altura em 
        que estava em Cabo Verde na formação de professores. Ainda estava em 
        Cabo Verde, quando o Alcino Cartaxo, que era um rapaz despachado, me 
        disse que tinha aceitado formar um Conselho Directivo e que contava 
        comigo. Quando chegasse já sabia que tinha um lugar no Conselho 
        Directivo dele numa escola que nem conhecia. Quando cheguei tinha à 
        minha espera o Alcino, que se tinha metido numa camisa de onze varas, 
        porque não tinha conseguido arranjar. Há o episódio da Alda Gomes, a 
        Alda aceita formar lista e eu que tinha dito que sim ao Alcino, e isso 
        era público, não tive lata para dizer que não à Alda, que não conhecia 
        de lado nenhum. Sem conhecer as pessoas, lá fiquei na Direcção, num 
        tempo em que não havia tempo para pensar, porque se tinham de tomar 
        medidas de emergência sempre. Eu lembro-me que foi um período muito 
        agitado por causa dos ciganos, por causa da polícia, lembro-me que tive 
        que suspender não sei quantos alunos nessa altura sem ser Presidente do 
        Conselho Directivo. Não percebia a maior parte das coisas, tinha de agir 
        em cima do acontecimento... E, em coerência com as minhas ideias e, pela 
        língua afiada que tenho, no ano seguinte, em coerência com o que tinha 
        andado a dizer, fui para 
        / 54 / 
        Presidente do Conselho Directivo, que tinha um antigo Reitor que 
        conhecia mal, careca já nessa altura, com... sei lá com quem, já não me 
        lembro de nada, com quem foi. Eram várias pessoas, o Alcino Cartaxo 
        também lá esteve, se calhar, a Venília, várias pessoas, eu não conhecia 
        a maior parte das pessoas. A partir daí fomos resolvendo parte dos 
        problemas que era o preciso. 
        
        
        Nunca tive nem formação, mas não me posso 
        queixar, porque de facto eu tinha andado todo o tempo num trabalho de 
        liderança de organizações, dum ou doutro ponto de vista. A minha 
        facilidade tem a ver com o treino, o conhecimento dos assuntos 
        pedagógicos de há muito tempo e ter passado por muitas reformas e sempre 
        a discuti-las. Andei sempre a trabalhar e a dirigir organizações, 
        diferentes das escolares, mas organizações. Nunca querendo ser gestor, 
        passei a minha vida inteira a olhar para o que os outros dizem, a 
        organizar e a devolver o que se faz e o que se diz. A minha formação é 
        essa, o meu papel é esse. Nunca fui a maior parte das coisas que pensam 
        que um Presidente de Conselho Directivo é e das dificuldades que tem, 
        sou, fundamentalmente, aquilo que se pode chamar um teórico, mas é 
        evidente um teórico com as obrigações inerentes, quer dizer, nos 
        momentos em que é preciso estar lá para dar o corpo ao manifesto também 
        lá estou, faço as coisas que os outros fazem, mas não discuto muito 
        isso, é um problema que não me preocupa muito. Tive sempre umas relações 
        razoáveis, ao mesmo tempo conflituosas, mas muito razoáveis com a 
        Administração. Entendemo-nos perfeitamente. Admito que é preciso 
        explicar cuidadosamente e repetidamente, porque não presumo que alguém 
        tenha obrigação de adivinhar, discutir muito quando é caso disso, mas 
        não tenho muitas queixas da Administração. Eu sei que muitas vezes têm 
        mais dificuldades ainda do que nós, à partida, que as pessoas que lá 
        estavam e estão tinham e têm as mesmas dificuldades que eu. 
        
        
        Dei-me sempre bem ou nem penso muito nos 
        problemas que não conseguimos resolver. Sempre me considerei como agente 
        uma parte da solução do problema e não passei a vida a atribuir culpas e 
        a esperar dos outros as soluções que eu não encontrava. 
        
        
        A gestão democrática, que eu penso que 
        funciona na base de uma grande cumplicidade, foi possível fazer porque 
        era um acordo inter-pares necessário para 
        / 
        55 / fazer o barco navegar 
        sem meios nem remos, fingindo que tem leme. É preciso haver uma grande 
        cumplicidade entre as pessoas que têm de aguentar e viver a pobreza para 
        funcionar e produzir alguma riqueza sobre os sacrifícios de todos. 
        Aceito a desgraça com a naturalidade de um não resistente e é por isso 
        que não sou nem angustiado desiludido nem optimista iludido e tolo. 
        
        
        Fui treinado para ir vivendo a vida, 
        normalmente, e apanhando o que há para apanhar, transformar as ideias 
        avulsas em discurso coerente e devolver outra vez a quem tem que fazer 
        as coisas. Se eu tivesse de carregar comigo as dificuldades e o que não 
        compreendo estava derreado e derrotado. Trato de apanhar o que flui das 
        pessoas que comigo trabalham, encontrar soluções muito rapidamente, não 
        fazer grande teoria sobre isso. Fui responsável por uma montanha de 
        coisas que nem passa pela cabeça às pessoas atribuir a um professor do 
        ensino secundário. A ideia principal é não me preocupar com isso, se eu 
        estiver a trabalhar, se estiver atento, se estiver vivo e a trabalhar 
        com as pessoas que trabalham comigo, que muitas vezes nem dão por ela. A 
        Venília esteve convencida que eu sempre fui um grande manipulador e que 
        decido as coisas antes, que ouço as pessoas tendo decidido 
        antecipadamente (fingimento democrático?). Mas a verdade é que na maior 
        parte das vezes, o que eu sei é nada e fico a saber só depois das 
        pessoas falarem o que elas pensam que são pequenas coisitas, que depois 
        de organizadas parecem muito; a maior parte das pessoas nem sequer 
        percebe que são as pequenas coisitas, as pequenas sensibilidades, as 
        pequenas coisas que se dizem e funcionam é que formam uma decisão. 
        Sempre ouvi os estudantes de forma séria, ouço as pessoas quando não 
        concordo e é com quem eu aprendo mais. 
        
        
        Isto não é para fazer passar a ideia que 
        não há capacidade teórica e prática. Alguma haverá, mas essa preparação 
        não é mais do que uma parte. Uma boa parte do meu trabalho depende da 
        experiência política e do trabalho das outras pessoas. Não há pessoa 
        nesta sala que não me tenha ajudado e a quem eu não tenha ajudado. Esta 
        é a teia que nos torna fortes Sem isto não era possível explicar como se 
        trabalha em tantos registos ao mesmo tempo. A maior parte também do 
        mérito, das coisas que eu fiz não tem nada a ver comigo; em cada dia sou 
        capaz de fazer quatro, cinco e seis reuniões, ontem fiz cinco ou seis 
        reuniões de coisas diferentes 
        / 
        56 / – a penúltima foi com 
        a Luísa e cinco minutos a ouvir a Luísa para organizar o pensamento a 
        devolver aos professores de S. Jacinto, que estão no ensino à distância. 
        Tive cinco minutos para ouvir e decidir exactamente tudo o que era de 
        decidir, tudo o que era decisão política da Escola, a partir de três ou 
        quatro informações mergulhadas no caldo dos Conselhos Directivos. Os 
        Conselhos Directivos são constituídos por todos os outros. As equipas 
        que foram formadas por acordos ideológicos falharam todas. Na José 
        Estêvão, as melhores equipas foram aquelas formadas para trabalhar sem 
        nos preocuparmos sobre quem eram as pessoas indicadas por um conselho de 
        anciãos. 
        
        
        A Escola Secundária José Estêvão, os 
        Conselhos Directivos da Escola Secundária José Estêvão, onde eu estive, 
        a maior parte deles, não têm nada a ver comigo, nem com as minhas 
        concepções ideológicas ou políticas. São grupos de pessoas que foram 
        escolhidos muitas vezes por um grupo de pessoas mais alargado com base 
        no trabalho que iam fazendo; e algumas delas completamente antagónicas. 
        Há duas ou três pessoas que eu vi a trabalhar com um rigor brutal, muito 
        bem, que, à partida não fazia sentido juntarem-se, por exemplo, a Maria 
        José Calafate e a Esmeralda Assunção. E, no entanto, é a dupla 
        monumental, que fez uma boa parte daquilo a que nós podemos chamar a 
        recuperação da paisagem física da Escola. 
        
        
        A minha ideia é que uma Escola com 
        experiência, com tradição precisa de uma pessoa ou outra para melhorar a 
        sua condução. Fico satisfeito quando me dizem que durante muitos anos 
        tornei as coisas muito mais fáceis à José Estêvão. 
        
        
        Aqui fica o meu entendimento sobre a 
        minha forma de estar no Conselho Directivo, descartando-me completamente 
        de qualquer responsabilidade individual que tenha nisto, porque a minha 
        responsabilidade individual é muito curta neste negócio e eu estou 
        totalmente convencido, e sei que é assim, porque vivi em muitas 
        organizações todas dirigidas do mesmo modo e onde eu fui só esse tipo 
        que sozinho vale nada, mas facilita muito quando podemos contar com ele. 
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