Acesso à hierarquia superior

4ª Série - Número 2 - Junho de 1999 - pp. 13-20

...a partir de trabalhos da formação contínua nas iniciativas Professor: pessoa e profissão e A escola e a construção de género para uma igualdade de oportunidades


org. Teresa Maria Pinheiro de Castro


Com dez anos de idade, aproximadamente a mesma percentagem de rapazes e raparigas são declaradamente agressivos, dados à confrontação aberta quando se zangam. Aos treze anos, começa a emergir uma diferença nítida entre os sexos: as raparigas tornam-se mais hábeis do que os rapazes na prática de técnicas agressivas mais artificiosas, como o ostracismo, os mexericos e as vinganças indirectas. Os rapazes, de um modo geral, continuam a procurar o confronto directo quando provocados, alheios a outras estratégias mais subtis. (...)

Esta diferença entre rapazes e raparigas epitoma aquilo a que Carol GilIigan chama a disparidade – chave entre os sexos: os rapazes orgulham-se de um tipo de independência e autonomia dura e solitária, enquanto as raparigas se vêem a si mesmas como fazendo parte de uma rede de ligações. Assim, os rapazes sentem-se ameaçados por qualquer coisa que ponha em causa a sua independência, enquanto para as raparigas a ameaça reside na rotura dos seus relacionamentos.

David Goleman

No desenvolvimento das mulheres, o absoluto da preocupação com os outros, definido inicialmente como a recusa a fazer sofrer os outros, torna-se complicado pelo reconhecimento da necessidade da integridade pessoal.

Carol Gilligan

 

Considerando a Biologia e a Psicologia do Desenvolvimento, o ciclo da vida humana caracteriza-se pela ligação e pela separação (relativamente à família, aos amigos, aos outros em geral).

A adolescência definir-se-á pelo apogeu de uma necessidade de separação. Ao invés, a idade adulta significaria o regresso à ligação e à preocupação com os outros.

Entretanto, enquanto os homens tendem a reforçar a ideia de separação, demarcando-se através de uma identidade e integridade próprias, na perspectiva da chamada Ética dos Direitos, do "Eu", as mulheres, por seu lado, apresentariam um dilema no seu desenvolvimento, a saber, o conflito entre a realização pessoal e a preocupação com os outros, aquilo que se designa por Ética das Responsabilidades. / 14 /

As mulheres seriam então "atoladas em relação", pondo-se uma tonalidade familiar nas vidas das mulheres, deixando-as em risco, já que a sociedade premeia a separação. Esta realidade é retratada nas mais variadas situações, mas nunca como hoje o assunto da feminização (a despeito das conotações que pesam sobre esta palavra) se tomou tão premente, tais as implicações que o mesmo tem despoletado nos mais diversos níveis da esfera social, económica, política... Se neste último caso – o reduto da política, como lhe chamou Vitalino Canas (1) as mulheres entram com extraordinária dificuldade, (quem não se lembra da famigerada lei das quotas...), já no âmbito do ensino-aprendizagem assiste-se a uma intensa feminização da profissão docente, um facto indiscutível, para o qual se acham causas e consequências nem sempre valorizadoras, visto que os estereótipos femininos, consciente ou inconscientemente adquiridos e tidos como absolutos, emprestariam alguma subalternidade ao contexto escolar. De facto, se por um lado as mulheres são predispostas a prestar serviços aos outros e portanto tirariam vantagens do carácter necessariamente relacional da profissão, pelo discurso afectivo e pela preocupação com os alunos, por outro lado, estarão as mulheres, pela sua visão dita "não violenta", a fomentar uma cultura de acomodação decorativa e tagarela?!...

Os dados estão lançados. Contudo, uma visão maniqueísta da realidade do homem e da realidade da mulher não faz muito sentido, após os estudos realizados. No capítulo "Visões de Maturidade", na obra citada de Carol Gilligan, a autora refere que medir o desenvolvimento das mulheres pelo padrão dos homens faz ignorar a possibilidade de diferentes verdades, para além de que, acrescenta, a Ética da Responsabilidade pode tornar-se um apoio da força da integridade pessoal, por escolha consciente e deliberada. As mulheres até estariam, portanto, numa posição ideal para observarem todo o potencial humano. Assim, na dialéctica do desenvolvimento humano, a clássica tensão entre o padrão feminino e o padrão masculino, com a pressuposta ordem hierárquica subjacente, tende a esbater-se cada vez mais para integrar os dois modos de experiência e de interpretação social, no que resulta uma maior compreensão e equidade das relações entre os sexos e uma representação mais completa das relações adultas no trabalho e na família.

Seja como for, não será por acaso que ainda se comemora um Dia Mundial da Mulher (e por que não um dia mundial dos loiros, dos morenos, dos baixos ou dos altos?!...), que existe uma Linha Mulher ou uma Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres e aforismos que teimam em dizer que, por detrás de um grande homem está uma grande mulher (etc.); porém, à custa de quê? Vejamos o quão verosimilhante pode ainda ser este pequeno texto extraído de um conto de Moravia, "O Equilíbrio":

O problema de meu marido é que eu lhe dei tudo: juventude, beleza, inteligência (sim, até inteligência; estava a tirar a licenciatura, e por ele abandonei o estudo), tudo, dizia eu; e em troca não recebi nada. Ou, melhor, recebi; em troca, ele conseguiu que me transformasse em empregada da sua ourivesaria. Dei-lhe também dois filhos, um rapaz e / 15 / uma rapariga, que têm agora nove e dez anos.

(...)

Enquanto vou pensando estas coisas, continuo a vê-lo dormir e deixo correr o meu pensamento. Dei-lhe, portanto, tudo, e ele, em troca, não me deu nada. Pior: fez de mim uma empregada da sua loja. Por isso, eu sou credora; ele devedor. Os pratos da balança entre nós não estão desequilibrados: o dele está em baixo, cheio e pesado; o meu está em cima, vazio e leve. É claro que tenho de fazer alguma coisa para que o meu prato fique, pelo menos, a par do dele. 

Tenho uma ideia. Mas talvez que, mais que uma ideia, seja um impulso do corpo que, por assim dizer, se antecipa à ideia. Desço da cama, visto-me à pressa (...)

         Alberto Moravia

Neste percurso de ficção, será porventura reconfortante acabar a história com uma moralidade roubada a Balzac: "A mulher é mais forte através da sua sensibilidade do que o homem através da sua força". Mais um estereótipo?... Por que razão será então tão problemática a integração das mulheres no mercado de trabalho – apesar do crescente número de mulheres que entram para as universidades, uma vez que têm melhores notas, em cursos tradicionalmente masculinos, como Direito, Medicina ou Engenharia?

A verdade é que o mercado de trabalho revela uma forte segregação sectorial do emprego feminino, que se concentra nas áreas do ensino e da saúde (uma vez mais, a constatação da prestação de cuidados aos outros, numa ética de responsabilidade), assim como lugares mais baixos ou intermédios das hierarquias das organizações.

A este respeito, vale a pena atentar no seguinte registo descritivo de ocorrência, feito por uma professora, num contexto de reunião de conselho de turma, com os professores da turma e membros do conselho directivo de uma escola, em que se pretendia aprovar o currículo e organização curricular de uma turma do sétimo ano de escolaridade:

Começávamos a comunicar uns aos outros as propostas de Currículo para cada uma das disciplinas, quando o Presidente do Conselho Directivo interveio, dirigindo-se ao professor de Educação Visual e Tecnológica e da Área Vocacional.

Presidente do CD – Ao nível do que propuseste na Área Vocacional parece-me que nada contemplaste de específico para as raparigas. As vertentes escolhidas são Informática, Carpintaria e Electricidade.

Professor da Área Vocacional – Sim, tinha pensado assim, pelo menos para o 7.º ano.

[silêncio... parecendo-me que o assunto tinha ficado por ali]

Eu – Pareceu-me que estava a defender vertentes específicas para rapazes e raparigas. Porquê? Defende que haja uma diferenciação de aprendizagem por sexos? / 16 /

Olhe que isto é um projecto que vai estar a desenvolver-se em 2001!...

Presidente do CD – É uma questão que ponho à discussão.

Professor de Ciências – Eu acho absolutamente certo que se pense nessa diferença. Acho que não podemos ser líricos nem viver de poesia, por mais bonita que ela seja. Vejam o exemplo da Electricidade. Sabemos que nenhuma rapariga vai arranjar emprego na Construção Civil. Já alguém viu uma rapariga a trabalhar na Construção Civil? E é na Construção Civil que se emprega a maior parte dos electricistas.

Professor da Área Vocacional – Não é exactamente assim. Há também o domínio da Bobinagem e aí as raparigas até são muito procuradas. Eu acho que, pelo menos, deve haver alguma aprendizagem comum, de base. Já não defendo, talvez, para as raparigas, a aprendizagem comum da Instalação Eléctrica. Temos realmente de ser pragmáticos. Mas isso é lá para o 9.º ano…

Eu – Eu penso que deve ser aberto a todos um leque de escolha o mais diversificado possível, sem nenhuma diferenciação por sexos nem à partida, nem em termos de expectativas de futuro. Insisto neste ponto por duas razões:

Primeiro porque, em termos pessoais, acho que a Escola se deve organizar de modo a que rapazes e raparigas possam descobrir interesses e aptidões com o máximo de liberdade.

Segundo, (virando-me para o Presidente do CD) porque quero dar testemunho da reflexão que um grupo de professores desta escola tem feito na Acção de Formação "A Escola e a Construção das Identidades de Género para uma Igualdade de Oportunidades". Tenho-o ouvido a si, várias vezes, lamentar que nada do que os professores aprendem na Formação Contínua "transpire" na escola ou produza qualquer mudança.

Então aqui está a minha participação: temos reflectido sobre esta matéria e tem sido considerado que a promoção da igualdade de oportunidades na educação e na vida social passa por uma intervenção da escola, implicada na reformulação e no alargamento das perspectivas tradicionais sobre os papéis sociais do masculino e do feminino.

Presidente do CD – Estou a ouvi-la com toda a atenção mas aponto-lhe já o caso da Escola Secundária de Estarreja, onde trabalha a minha mulher, que desenvolve um projecto, com sucesso reconhecido exteriormente. Eles têm uma turma organizada ao abrigo do despacho 22 e assumiram, sem quaisquer complexos, Jardinagem para as raparigas e Electricidade e Metalomecânica para os rapazes. Aliás eles / 17 / fizeram uma parceria com a Câmara Municipal e ela é que indicou essa distinção.

Eu – Eu conheço o projecto. Ele foi divulgado no Forum realizado, há dias, em Santa Maria da Feira, sobre Escola-Diversidade-Currículo. De facto, foi muito aplaudido, mas também é verdade que o comentador, Dr. Abílio Amiguinho, da Escola Superior de Educação de Portalegre, o criticou pela discriminação subjacente.

Professor de Ciências – Nós temos de pensar naqueles que vão fazer parceria connosco, em que se disponibiliza para organizar os estágios destes alunos. Estamos ou não interessados em integrar estes alunos no mercado de trabalho, na sociedade activa?

Presidente do CD – A... , por exemplo, é contra o facto de conseguirmos que o Hotel Imperial aceite as nossas alunas para estagiarem, por exemplo, no serviço de quartos?

Eu – Não, não acho nada mal. Mas porquê só para alunas? E se algum rapaz pudesse vir a interessar-se?

Professor de Geografia – Mas acha, realmente, que algum rapaz virá a querer estagiar no serviço de quartos do Hotel Imperial?

Eu – Não sei…

Professor de Português – Atenção à nossa cultura. Não é que eu esteja de acordo mas, com a cultura que temos, será muito improvável que algum rapaz queira um trabalho desses.

Professor de Ciências – Sejamos claros: a escola tem de compreender o meio local se quer inserir-se nele e pedir-lhe colaboração.

Eu – Mas será que temos de pensar o meio local como algo estático e imutável?

Professor de Educação Visual e DPS – Bom, eu acho que temos de ter presente que estamos a definir um currículo para o 7.º ano de escolaridade. A três anos do fim da educação básica será legítimo afunilar as aprendizagens por causa de emprego? Não se trata de abrir perspectivas, primeiro?

Professor de Ciências – Mas é ou não verdade que estamos preocupados, sobretudo, com a integração social destes alunos? Queremos ou não queremos fazer alguma coisa pela integração social destes alunos?

Eu – Claro que queremos!

(...)  / 18 /

Será legítimo que a Escola "afunile" as aprendizagens (baseando-se no sexo!) por causa das saídas naturais de emprego – dentro de uma perspectiva "pragmática", ou, em vez disso, deverá antes abrir e alargar caminhos (fazendo pouco caso dos papéis sociais do masculino e do feminino) – dentro de uma perspectiva dita "lírica", "poética"...?

É bem verdade que não raras vezes as atitudes tomadas em prol da justiça e da equidade nestas questões não passam de paternalismos complacentes mascarados de boas intenções progressistas. Trata-se de uma questão cultural e social abrangente, que engloba diversas formas de organização. Tudo isto fará parte de um processo de crescimento natural, necessariamente lento, porém inevitável, como vem provar o inquérito levado a cabo por duas professoras, uma vez mais no âmbito de uma acção de Formação, junto a 100 alunos, divididos entre o 2.º e o 3.º ciclos:

Face aos dados obtidos, verificámos que a mulher permanece a eterna «sacrificada».

Não podemos esquecer que hoje ela tenta afirmar-se cada vez mais no mundo do trabalho, adquirindo maior independência face ao homem, procurando o sucesso no seu desempenho, a satisfação do seu "ego", tudo isto com esforço, pois sobre ela continua a recair todo o «peso» do lar.

O pai adquire, neste trabalho, alguma importância, mas quase nunca no singular!

Os resultados dos nossos inquéritos vêm de encontro a estudos estatísticos realizados em 1985, em França e na América, em que concluem que a mulher trabalhadora por conta de outrem continua a dedicar muito mais tempo aos filhos do que o pai, na mesma situação.

Chega-se mesmo a salientar que a desproporção é de 1 para 4 (a mãe apoia 4 vezes mais), desvalorizando-se ainda o sentimento e o empenhamento do pai na execução de iguais tarefas. 

No entanto verificamos, no nosso dia-a-dia, haver pais mais atentos e empenhados nos cuidados que dispensam aos filhos (bebés). Parece-nos até que irradiam uma certa felicidade na sua condição de pais!... Tratar-se-á de uma «paternidade» verdadeiramente assumida em todas as suas vertentes? Poderemos pensar que estas manifestações são augúrio de uma nova «era», a de pais «maternos»? / 19 /

Mais três interrogações foram colocadas por outra professora, no trabalho que realizou ainda a propósito destas temáticas:

Será que uma crescente constatação da infinita variedade e individualidade dos humanos, de um outro sexo, vai permitir um esbater de estereótipos e das representações de género?

Será que a utilização da "Internet" e outros meios electrónicos que vai necessariamente marcar as relações inter-pessoais e as relações de género, irá acentuar as assimetrias ou libertar identidades?

Será que em relação ao género, em Portugal, actualmente o dominante é a desigualdade, o desequilíbrio e a assimetria, com espaços e dimensões de igualdade aqui e ali, ou será o dominante a igualdade, a simetria, o equilíbrio com resquícios de autoritarismo, prepotência, domínio e subordinação?

Termina-se com uma espécie de hino, em que se exorta a uma caminhada em equidade, empenhada e optimista, de uns e de outros, de mulheres e de homens. Será esta, em suma, a visão de maturidade de que falava Carol Gilligan, que encontra eco nas mais variadas latitudes:

É uma tarefa épica (que o digam as palestinianas e tantas outras) mas à qual as mulheres estão a demonstrar que não só não voltam as costas como, muito menos, desistem.

Dos sofrimentos de muitas gerações vem-nos a força, da capacidade de amar vem-nos a força – apoiada por muitos homens que, como Aragon, vão sentindo que "A mulher é o futuro do homem".

Os jovens (rapazes e raparigas) intensamente explorados, ainda assim com as raparigas mais exploradas que os rapazes e com componentes mais dramáticas como a exploração sexual do corpo feminino (assédio e prostituição), embora, também neste campo e sobretudo nas crianças e jovens a igualdade na desgraça vá crescendo em muitas partes do mundo, os jovens têm vindo a uniformizar interesses, num instinto solidário de defesa que, necessariamente, imporá um salto em frente na caminhada humana.

Nair Penafort

______________________________

(1)  in "Público" de 8 de Abril de 1998 (artigo de opinião)

Fontes de informação e referências bibliográficas:

"Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher", ("Visões de Maturidade"), trabalho da formanda Teresa Maria Pinheiro de Castro, realizado no âmbito da Acção de Formação "Professor: Pessoa e Profissão", Centro de Formação José Pereira Tavares, Aveiro: Maio de 1999.

"Registo Descritivo de Ocorrência", trabalho da formanda Rosa Maria Condesso Mangerão, realizado no âmbito da Acção de Formação “Escola e a Construção de Identidades para uma Igualdade de Oportunidades", Centro de Formação José Pereira Tavares, Aveiro: Maio de 1998.

Trabalho conjunto das formandas Maria de Jesus Silva e Maria Isabel Oliveira, realizado no âmbito da Acção de Formação “Escola e a Construção de Identidades para uma Igualdade de Oportunidades", Centro de Formação José Pereira Tavares, Aveiro: Maio de 1998.

Trabalho de Maria Aldina Duarte, realizado no âmbito da Acção de Formação “Escola e a Construção de Identidades para uma Igualdade de Oportunidades", Centro de Formação José pereira Tavares, Aveiro: Maio de 1998.

GILLIGAN, Carol; Teoria psicológica e Desenvolvimento da Mulher, Ed. Calouste Gulbenkian, Lisboa, [p. 257]

PENAFORT, Nair; Percursos da Sensualidade, Forum Cultura e Saberes IRENE CASTRO, Porto: 1993 [pp 49 e 50].

GOLEMAN, Daniel; Inteligência Emocional, Círculo de Leitores, Lisboa, [pp 153-154].

MORAVIA, Alberto; Uma Outra Vida, Europa América, Lisboa: 1975, [pp 81 e 82].