Teresa Caldeira de Sousa
discurso in directo
Nasci em Ansião, mas senti-me sempre muito desenraizada.
O meu pai era funcionário das finanças e a sua carreira obrigava-o a
frequentes mudanças de localidade.
Daí que tenha vivido sempre em certa instabilidade, de terra para terra,
de escola para escola,
sem conseguir firmar amizades.
Frequentei o ensino primário em Avis e Sabugal e o ensino
liceal em várias cidades: do 2.º ao 4.º anos em Coimbra e do 5.º ao 7.º
anos no liceu da Guarda. Entrei no liceu da Guarda em 1937 com 13 anos
de idade. (...) Daí que tenha vivido sempre em certa instabilidade de
terra para terra, de escola para escola.
A esta distância vejo-me perfeitamente envergonhada com a
educação que então se dava. Na altura havia muito pouco ideia do que se
passava no mundo. Recordo-me que comecei a aperceber-me dos
acontecimentos mundiais através da BBC e só depois começar a ouvir a
emissora nacional. Os livros eram poucos e muito condicionados.
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A educação da minha época era muito fechada,
especialmente a das raparigas. Não podíamos passear sozinhas: as minhas
saídas de casa eram os percursos casa-liceu, liceu-casa; não podíamos ir
ao café; não podíamos ir ao cinema (a não ser com os pais); não podíamos
conviver com rapazes. Não havia televisão e a rádio estava a dar os
primeiros passos. Assim passava o tempo em casa a estudar e a ler muito.
Lia tudo o que me vinha à mão, quer o mau – Pitigrilli, Max du Veuzit –,
quer sobretudo bons autores como Eça, Camilo, etc. Lia-se muito, uns
mais, outros menos; para isso influía muito o ambiente que se tinha em
casa e eu, felizmente, tinha quem soubesse despertar-me para interesses
culturais.
Os meus pais gostavam muito de teatro e não perdiam uma
peça, sempre que tinham uma oportunidade; fui várias vezes assistir a
espectáculos no Teatro Nacional e recordo-me de, ainda muito pequena,
ter ido assistir a várias peças apresentadas por teatros ambulantes,
como um que ficou célebre: a companhia de Rafael de Oliveira com a "A
Morgadinha dos Canaviais", "O Grande Industrial", etc.
O tipo de educação da época e a instabilidade da minha
infância tomaram-me muito fechada e tímida. Estou a ver-me sentada numa
sala de aula, sozinha numa carteira ao fundo da sala, envergonhada,
desconfortável, com frio, de boina azul-escuro na cabeça. Na altura,
todas as meninas tinham de andar com qualquer coisa na cabeça. Foi
apenas no último ano do liceu, num passeio de finalistas à Serra da
Estrela – ir de manhã e vir à noite – que comecei a integrar-me na
turma, a quebrar o gelo que me envolvia, que acabou por se derreter por
completo numa festinha de fim de curso em que eu aparecia vestida de
ceifeira.
Terminado o curso liceal,
a minha mãe queria que eu estudasse línguas, mas eu estava interessada
em prosseguir estudos universitários;
em especial, estava interessada no curso de Matemáticas. Por um lado,
sempre tinha gostado de Matemática; por outro lado, tive no último ano
liceal um professor recém-formado que possuía o dom de tornar a
disciplina aliciante. Graças ao apoio do meu pai, fui de facto para
Coimbra frequentar o curso de Ciências Matemáticas. Foi como se tivesse
transposto um fosso! A maioria dos
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professores enchiam os quadros
negros de alto a baixo, várias vezes por aula, teoria e mais teoria.
Recordo, no entanto, vários professores a cujas aulas assistia com
prazer. Foi o caso do professor Mário Silva, de Física Geral. Tinha
regressado recentemente do estrangeiro, onde passara vários anos devido
a perseguições políticas. As suas aulas eram muito interessantes, muito
actualizadas. Também recordo o professor Júdice de Física-Matemática,
Mecânica Celeste e Geodesia. Era um professor extraordinário!
Não havia o hábito de ler obras para além dos
apontamentos tirados nas aulas e das sebentas. Havia alunos, ditos "sebenteiros",
que faziam quase profissão de fazer sebentas, habitualmente muito mal
impressas. Ainda não havia fotocópias.
Quando muito íamos à Biblioteca consultar as obras de Bento Caraça e
Vicente Gonçalves.
À saída do curso tive uma grande oposição da minha mãe
que não queria que tivesse estudado... O que me valeu para iniciar a
minha vida como professora foi o apoio do meu pai.
Terminado o curso e como
o meu desejo era ser professora,
matriculei-me como aluna voluntária do curso de Ciências Pedagógicas na
Faculdade de Letras, que durava apenas um ano e tinha cinco cadeiras.
Foi com muito prazer que assisti às aulas de Psicologia Geral, graças ao
entusiasmo do professor Sílvio de Lima. Também gostei muito de Pedagogia
Geral do professor Planchard. Foram essas as primeiras pessoas que me
abriram perspectivas para o que é ser professor e o que é a educação dos
jovens.
Enquanto frequentava o curso de Ciências Pedagógicas em
Coimbra, vivia em casa de umas tias minhas, proprietárias de um colégio
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para a instrução primária das meninas que podiam pagar. Tendo-lhes
falhado uma professora para a segunda classe, lembraram-se de mim. Nesse
ano dei a segunda classe e no seguinte acompanhei as alunas na terceira
classe. Foi uma experiência que vivi com muito prazer. Acho que foi aí
que me atrevi, pela primeira vez, a introduzir uma inovação pedagógica.
Estava estabelecida uma regra em relação aos ditados –
cada erro, cada palmatoada – que era coisa que feria a minha
susceptibilidade,
de modo que resolvi fazer o contrário com muito desagrado das minhas
tias muito habituadas ao tipo de pedagogia da época. Quem não desse
erros tinha um prémio – um chocolatinho. Claro que hoje tenho outra
visão das coisas e acho isto muito discutível. Considero que cada aluno
deve compenetrar-se das suas responsabilidades e não concordo nada com
essas coisas das "semanadas" nem dos prémios pelas positivas nos testes.
Mas isto já é outra perspectiva – as ideias vão evoluindo ao longo da
vida.
Nessa altura era difícil conseguir-se um lugar para
exercer actividade docente.
Sobretudo era difícil entrar como professor num liceu.
Não havia vagas como agora há. Mesmo na categoria de eventual era coisa
complicada. Tirando Lisboa, Porto e Coimbra, praticamente só havia um
liceu por capital de distrito e, além disso, o número de jovens a
estudar para além da instrução primária era muito reduzido.
Mas fui convidada para dar aulas num colégio da Lousã.
Contra a vontade da minha mãe, mas apoiada pelo meu pai, lá fui de
automotora de cá para lá... Estive quatro anos nesse colégio sempre a
dar matemática. A experiência de ensino aos "serranitos" ajudou-me
a começar a compreender a pedagogia da Matemática. Para quem sai da
universidade é difícil adaptar-se à ideia de que é necessário partir
muito de baixo e ir avançando muito devagar. A evolução daquelas
crianças ao longo daqueles quatro anos foi, para mim, uma preciosa
experiência.
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Em seguida fui para um colégio em Condeixa. Entretanto
tinha casado e o meu marido conseguiu, na mesma altura, um lugar num
colégio em Pinhel. No ano seguinte, o meu marido entrou no estágio no
Liceu Normal de Coimbra, após ter vencido a difícil barreira que era
passar no exame de admissão.
O estágio tinha a duração de dois anos e não era pago. Até se pagavam
propinas!
Claro que essa situação veio criar-nos grandes limitações. Vivíamos
então na cave da casa da minha mãe, em aposentos que ela nos cedeu.
(Mesmo assim, decidimos que nunca daríamos explicações.
Ser "paga a metro" é coisa que sempre me fez impressão. De facto, era
difícil sobreviver com os vencimentos que então se praticavam, mas
sempre fomos muito limitados nas nossas ambições. Tanto assim que apenas
tivemos casa própria quando viemos viver definitivamente para Beja em
1989.
Terminado o estágio, o meu marido teve de concorrer a um
dos poucos lugares de professor efectivo que então apareciam a concurso.
Recordo-me que nesse ano houve apenas três lugares a concurso: Açores,
Bragança e Beja. Ele optou por Beja; e daí nasceu esta ligação a esta
terra.
Lá fomos para Beja, onde alugámos uma casita. Foi lá que
nasceu a nossa primeira filha.
Consegui colocação no liceu como professora eventual a
dar outras disciplinas que não Matemática.
Tive de sujeitar-me às vagas existentes em Desenho, Físico-Químicas e
Trabalhos Manuais.
Tive de aprender a usar serra de recortes, a fazer caixinhas, presépios
em cartolina, etc.
Quando se abriram perspectivas de entrada no estágio,
fiquei colocada no Liceu Rainha Santa do Porto, onde tive como
orientadora a Dr.ª Madalena Garcia. Nessa altura já o estágio estava
reduzido a um ano e era pago, embora não pagassem as férias. Considero
que foi uma fase muito enriquecedora, apesar de eu já ter vários anos de
serviço. Gostei. No final fui submetida a provas de Exame de Estado –
uma prova escrita sobre a didáctica de um tema de Matemática, em cerca
de
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três horas; uma lição a uma turma, com tema tirado com vinte e quatro
horas de antecedência, apreciada por um grupo de seis professores no
fundo da sala que, no fim e durante uma hora, discutiam o modo como
tinha decorrido a aula. Passou-se isto em 1969.
Nesse tempo do meu estágio no Porto, estava o meu marido em Beja,
onde desempenhava o cargo de Reitor do Liceu e tomava conta da nossa
filha, que frequentava a 4.ª classe. Mas no ano em que fiz o estágio,
ele concorreu ao Liceu de Aveiro, onde ficou colocado. E assim, em 1970,
viemos viver para Aveiro, onde nos mantivemos até 1989. Nesse ano,
voltámos para Beja, onde continuei a dar aulas mais uns anos até me
aposentar em 1992.
Durante anos e anos, os currículos de Matemática mantiveram-se
inalterados.
No início da década de 70, o professor Sebastião e Silva foi encarregado
de dar uma grande volta aos programas de modo a renová-los e pô-los a
par do que então já se fazia nos países mais avançados. Foi a época da
transição da chamada "matemática clássica" para a "matemática moderna".
Foi uma transição difícil em que, com reduzido apoio, tivemos de nos
adaptar a uma série de coisas novas de que nunca tínhamos ouvido falar.
Ainda me recordo da perplexidade com que o meu marido e eu íamos
acompanhando, através da TV, as lições sobre lógica e conjuntos do
professor Sebastião e Silva.
Posteriormente tivemos oportunidade de assistir, em
Oeiras, a um curso de formação de professores; e aí o choque ainda foi
maior.
Passado algum tempo já tudo aquilo era banal.
Mas custou-nos bastante a adaptação. Foi a maior alteração que se
verificou ao longo dos 44 anos da minha carreira.
Inscrevemo-nos também por essa altura na Sociedade Luso
Espanhola de Matemática. A formação de professores era muito feita à
custa de boas vontades e do interesse pessoal de cada um.
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Quando vim viver para Aveiro,
alguém se lembrou de me propor
ao Reitor do Liceu de Aveiro – nessa altura, o ciclo dava os primeiros
passos e estava ainda na dependência dos liceus ou das escolas técnicas
–
para orientar estágios
de Matemática no Ciclo Preparatório, Nunca me tinha passado pela cabeça
vir a orientar estágios, mas após alguma hesitação, e talvez por gostar
de novas experiências, aceitei, tendo desempenhado esse cargo durante
anos.
Quando o ciclo se tornou independente e os liceus tiveram
necessidade de orientadores de estágio para receber os alunos da
Universidade de Aveiro, que tinham chegado ao último ano do bacharelato
– o último ano era dedicado ao estágio – voltei para o liceu.
Os primeiros de estagiários que me foram confiados eram
gente que, de um modo geral, tinha boa preparação científica, boa
capacidade pedagógica e muita vontade de trabalhar. Foram apresentados
trabalhos com muito bom nível e fizeram-se algumas interessantes
experiências pedagógicas. Por razões que me escapam totalmente, nunca
mais voltei a ter, ao longo dos anos que orientei estágios no ensino
secundário, grupos de nível equivalente. Não vou garantir que tenha
havido degradação na formação de professores. O mais provável é que
aqueles primeiros grupos tenham sido uma circunstância excepcional. De
qualquer modo,
tenho um pouco o sentimento de que o nível foi sucessivamente baixando;
e isso
apesar dos cursos universitários terem passado a licenciaturas.
Claro que houve brilhantes excepções! Cada vez me aparecia maior número
de estagiários com cadeiras atrasadas e a cometer, com mais frequência,
calamitosos erros científicos. (...) Creio que a universidade se coloca
numa posição muito alta e se preocupa pouco com as estruturas de base.
Creio que seria importante estudá-las na universidade
para que os futuros professores se apercebam de série de questões
básicas, essenciais.
Notei uma falta crescente de formação em questões
elementares nos estagiários de sucessivas gerações, enquanto iam sendo
capazes de saber na perfeição todas as regras de primitivação.
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