2.3. Democracia e sistema representativo
O
ANTI-INDIVIDUALISMO limiano, de que atrás falámos,
ressalta também na sua ideia de democracia, como igualmente no que
entende dever ser o funcionamento das suas instituições, acompanhando de
perto o pensamento de Antero de Quental e Oliveira Martins, e
corporalizando os pressupostos que o levam a defender a reforma da
legislação eleitoral e a aderir aos projectos da «Vida Nova» e do
Franquismo. Para Jaime Lima, crítico do sufrágio universal carreado pelo
Contrato Social de Rousseau, «a democracia não pode reduzir-se ao
nivelamento de direitos políticos e riqueza», mas deverá, sobretudo,
apostar na formação do povo para a cidadania, promovendo o culto das
virtudes cívicas e da «consciência da responsabilidade) indispensáveis a
um «uso benéfico da liberdade) (Lima, 1902: 269, n.1).
A aversão pelo sufrágio universal, apanágio elitista de
muitos intelectuais de Oitocentos, é, em Jaime Lima, a consequência da
análise da vida política portuguesa e internacional, mas, sobretudo, o
corolário do seu ideário organicista. Repugna-lhe a igualdade de voto,
em cidadãos desiguais na cultura, na instrução e no carácter, mas
enojam-no mais os jogos políticos que instrumentalizam o voto e
adulteram os desideratos da representação que, desta forma, deixa de
reflectir os
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interesses da colectividade, para satisfazer as conveniências e
caprichos do novo «feudalismo político» e «dos marquesados eleitorais»
(Lima, 1888: 16). O que se passava em Portugal verberou-o Jaime Lima em
muitas páginas dos seus ensaios, dos seus artigos na imprensa e também
dos seus romances:
«Chegada a eleição, o liberalismo de Garrido compensou a
pobreza de eleitores. Para inteira liberdade da urna, logo de manhã, as
patrulhas de cavalaria varreram o povo das ruas em redor da igreja; pelo
dia adiante, um serviço de polícia bem feito deu em resultado que só
fossem reconhecidos eleitores, para terem acesso à urna, os amigos do
governo [...]. Glória ao liberal que assim honrava as nobilíssimas
tradições da sua família!» (Lima, 1903: 189-190)
Mas, atento ao que se passa no mundo, não deixa de se
estribar noutras experiências, denunciando-lhes as imperfeições:
«A nação mais democrática do Mundo, ou pelo menos
apontada como tal, os Estados Unidos, é o melhor exemplo da significação
que tem o direito de votar; ali o voto é uma mercancia como o algodão ou
os cereais, o poder é para quem mais souber capitalizar. Por isso não
será temeridade afirmar que o sufrágio universal «torna-se na prática a
base natural duma verdadeira tirania». (Lima. 1888: 16)
O que está em causa não é a democracia orgânica, mas a
democracia do número, esta última a casar dois conceitos incompatíveis
para quem vê a comunidade como um «verdadeiro organismo social», cuja
sobrevivência não poderá
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depender da vontade egoísta ou instrumentalizada da cada célula, mas sim
da acção concertada de todos os órgãos. É este o princípio em que também
estriba a necessidade do Estado, o qual, cabeça desse organismo, incapaz
de subsistir como corpo acéfalo (Lima, 1890: 606), está sujeito a
obrigações e condutas que se identifiquem com o bem comum e não com o
das oligarquias possidentes. E porque se erige
«a corrupção em sistema político, na descrença de todo o
sentido nobre e de todo o móbil de acção que não seja um sórdido e
insaciável egoísmo» (Lima, 1888: 34),
e porque nunca esteve em causa a necessidade e justeza da
democracia ou do sistema representativo, levantava-se, a Jaime Lima, o
problema da representação ideal, capaz de conviver com o sufrágio
universal, com os direitos políticos adquiridos, «embora [os eleitores]
tanta vez tenham usado esses direitos em prejuízo da sociedade», pois
retirá-los «seria levantar uma agitação perigosa» e desnecessária (Lima,
1890: 610).
Em 1888, quando J. Lima escreve pela primeira vez sobre
esta temática, não apresenta qualquer solução para o problema, nem
acredita em qualquer terapêutica capaz de esvaziar o sufrágio universal
do vírus da corrupção, e de pôr a vontade popular a exprimir-se em
inteira liberdade:
«Suponhamos, porém, que este vício é susceptível de
correcção, suponhamos que o sufrágio universal chega um dia a funcionar
em perfeita liberdade. A hipótese é
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irrealizável, porque a liberdade implica a concorrência e, dada esta, os
ambiciosos e os partidos surgem imediatamente nas suas diligências de
colheita. Mas, se fosse possível que o sufrágio popular funcionasse em
plena liberdade, não teríamos nele uma garantia de progresso, porque é
sabido quanto o espírito popular é, em regra, adverso às transformações
que o progresso científico indica. Há mesmo certa oposição entre a
democracia e a ciência.» (Lima, 1888: 16).
O grande problema, que é necessário ultrapassar, reside
no conflito entre o particular e o geral, entre o individualismo e os
interesses da sociedade, do «organismo social». A questão será objecto
de troca de correspondência com Antero de Quental, também ele preocupado
em encontrar uma saída orgânica e democrática, e que lhe comunica, por
carta de 5 de Maio de 1888, as suas próprias incertezas:
«Confesso-lhe que não me parece isso cousa que se resolva
do pé para a mão, nem creio que tamanha obra dependa simplesmente da
aceitação de certas doutrinas. As da representação adequada e efectiva
da nação, dos seus órgãos naturais e não de entidades abstractas. Acho-a
perfeita e é há muito a minha. Mas como dar consciência, a esses órgãos,
da sua realidade e autonomia? Por meio da lei? Mas a lei é impotente
para isso, impotente para criar seja o que for naquela esfera profunda
que só depende da espontaneidade social. Creio que é questão de tempo,
de evolução lenta e surda dessa tal espontaneidade. Porventura será
necessário que a desagregação social vá ainda muito mais longe, chegue
até àquele ponto em que a existência da mesma sociedade pareça ameaçada,
para se dar então a reacção.» (Quental, 1993: XXV)
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Jaime Lima aclarará algumas das dúvidas de Antero, a crermos na resposta
deste, datada de 22 do mesmo mês, na qual, colocando novas questões, tem
sempre, como pano de fundo, a perspectiva organicista do todo social:
«Presta-se a sociedade actual, ou não se presta, a essa
reorganização? E, por conseguinte: quais são os elementos que
acondicionam? – É no exame desta segunda questão que se me oferecem
graves dúvidas. Porque aquelas duas interrogações podem ser
transformadas nesta outra: Quer a sociedade actual reorganizar-se? Sem
essa vontade toda a obra legislatória é vã, pois tudo quanto é orgânico
pressupõe um princípio interno ou força vital, único que dá plasticidade
às transformações do organismo. (Quental, 1993: XXV1)(63)
Dois anos depois, quando a Liga Patriótica agonizava antes de
titubeados os primeiros passos, Jaime Lima publicava,
na revista de Eça de Queirós(64),
o seu trabalho sobre «A reforma administrativa e a democracia» (Lima,
1890), procurando responder às hesitações e perplexidades levantadas por
esta questão, que vinha a ser discutida entre Antero e Oliveira Martins
desde antes de 1878 (Catroga, 1981: 360 ss.), ano em
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que este último publicou As Eleições, e que ganhava agora mais
acuidade, com a aproximação da entrada da «Vida Nova» na governação.
Nos considerandos deste último trabalho, Jaime Lima
entende que a igualdade, na sociedade demo-liberal portuguesa, não
lograra ainda ultrapassar a esfera do direito civil, continuando os
resquícios do Antigo Regime a toldar «o trato de indivíduo a indivíduo»
e a não se mostrar, mas instituições e nas relações políticas», «a justa
partilha dos direitos e responsabilidades políticas». Isto é, «o governo
do povo pelo povo», bandeira de todas as revoluções democráticas, estava
longe de constituir uma realidade de facto, não se concretizando além do
espaço formal delimitado pelo articulado dos códigos jurídicos. O
problema não era apenas nacional, e ele tinha-o ainda há pouco
constatado, aquando da sua longa viagem pela Europa, porquanto
«Ao poder absoluto dos reis substituíram-se governos
absolutos de toda a espécie, entre os quais avultam pela frequência
ditaduras militares, oligarquias capitalistas ou mesmo híbridos destes
dois géneros como agora sucede no Brasil. Um legítimo governo
representativo, a expressão dos interesses e da vontade de um país
regulando a administração do estado, é raro se porventura existe.
Todavia, se não me iludo, essa representação é a condição inalterável da
riqueza, da prosperidade e da segurança de uma nação.» (Lima, 1890: 605)
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Portanto, a objectivação de uma democracia de facto,
alargada a todas as esferas da sociedade, dependia, principalmente, da
qualidade do sistema representativo. O problema, já aflorado em 1888,
colocava-se na resposta a duas questões fundamentais: «qual deverá ser a
base da representação», e «por onde aferir a capacidade» do cidadão,
chamado «a intervir directamente nos negócios públicos». A resposta à
primeira passava pela resposta à segunda que, perante a rejeição do
sufrágio universal, já que o voto individual nada significava ou
representava em termos de relações sociais, ficava reduzida ao campo do
«censo» e da »instrução», barómetros das capacidades administrativa e
intelectual. Mas, porque reconhece limitações a estes barómetros, já que
«o censo é simplesmente uma presunção de fortuna, não
tendo coisa alguma de comum com as aptidões políticas e consagrando
arbitrariamente o privilégio de uma oligarquia de ricos com exclusão do
resto da nação» (Lima, 1890: 608),
outro tanto acontecendo com a instrução, pois
«um sábio de primeira ordem pode ser um mau eleitor, um
operário pode tomar-se um excelente eleitor. Tudo depende de saber a que
se aplica o seu voto e em que condições o vai dar» (id., ibid.).
Jaime Lima logrará ultrapassar este imbroglio,
avançando com a distinção entre «a eleição» e «a representação», porque
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«Em teoria, estas duas noções de representação e da
eleição são todavia absolutamente distintas. Podemos, com a eleição
directa, ter mandatários que em nada representam a opinião de todos os
votantes: podemos, com a representação de colectividades de interesses,
obter um corpo representativo fiel e sincero, posto que poucos eleitores
tenham tido parte no voto.» (id., ibid.)
É este o percurso dialéctico que o transporta ao
organicismo corporativo, na esteira de Krause e Costa Lobo, pretendendo,
com o seu contributo, «não [...] criar uma sociedade nova mas apenas
reorganizar uma sociedade existente» (Lima, 1890: 610), pois, como já
acima vimos, a sua ideia de acção transformadora é reformista e não
revolucionária. A proposta limiana confinava o sufrágio universal à
eleição das Câmaras Municipais que deixariam de superintender na
organização do recenseamento eleitoral, no lançamento de impostos e na
discussão do orçamento concelhio. Estas atribuições revertiam para um
novo órgão, o Conselho Municipal, instituição corporativa que deveria
representar, onde fosse possível, os «três principais agentes da vida
social»: a terra; o capital e o trabalho; o
saber (Lima, 1890: 610-611). Destes agentes corporativos sairia «a
câmara dos pares convertida numa legítima representação de classes»
(idem: 613), enquanto ao conjunto das câmaras e conselhos municipais
caberia a eleição das Juntas Gerais dos Distritos e da Câmara de
Deputados.
Aos olhos contemporâneos, percorrido que foi um longo
caminho nas sociedades democráticas, a proposta limiana
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aparece-nos coxa e contraproducente, nomeadamente quando vemos os corpos
eleitorais das representações da «terra» e do «capital e trabalho» serem
outorgadas, respectivamente, aos quarenta maiores contribuintes de
contribuição predial e industrial (Idem: 611). Não emitimos juízos de
valor que, à distância, surgiriam sempre anacrónicos; limitamo-nos a
dar-lhe voz e a registar a bondade das suas intenções.
_________________________________________
(63)
– Carta de Antero de 22 de Maio de 1888. Ver nota anterior.
(64)
– “Revista de Portugal”, publicação literária, científica e
noticiosa, dirigida por Eça de Queirós e editada por Lugan & Genelioux,
sucessores de Ernest Chardron. Publicou-se no Porto de 1 de Julho de
1889 a 1892. Jaime Lima tem diversa colaboração nesta revista, para além
da direcção da secção «Ideias e Factos».
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