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Manuel J. G. Carvalho - Nação, nacionalismo e democracia em Jaime de Magalhães Lima - 1999

2.3. Democracia e sistema representativo

 O ANTI-INDIVIDUALISMO limiano, de que atrás falámos, ressalta também na sua ideia de democracia, como igualmente no que entende dever ser o funcionamento das suas instituições, acompanhando de perto o pensamento de Antero de Quental e Oliveira Martins, e corporalizando os pressupostos que o levam a defender a reforma da legislação eleitoral e a aderir aos projectos da «Vida Nova» e do Franquismo. Para Jaime Lima, crítico do sufrágio universal carreado pelo Contrato Social de Rousseau, «a democracia não pode reduzir-se ao nivelamento de direitos políticos e riqueza», mas deverá, sobretudo, apostar na formação do povo para a cidadania, promovendo o culto das virtudes cívicas e da «consciência da responsabilidade) indispensáveis a um «uso benéfico da liberdade) (Lima, 1902: 269, n.1).

A aversão pelo sufrágio universal, apanágio elitista de muitos intelectuais de Oitocentos, é, em Jaime Lima, a consequência da análise da vida política portuguesa e internacional, mas, sobretudo, o corolário do seu ideário organicista. Repugna-lhe a igualdade de voto, em cidadãos desiguais na cultura, na instrução e no carácter, mas enojam-no mais os jogos políticos que instrumentalizam o voto e adulteram os desideratos da representação que, desta forma, deixa de reflectir os / 74 / interesses da colectividade, para satisfazer as conveniências e caprichos do novo «feudalismo político» e «dos marquesados eleitorais» (Lima, 1888: 16). O que se passava em Portugal verberou-o Jaime Lima em muitas páginas dos seus ensaios, dos seus artigos na imprensa e também dos seus romances:

«Chegada a eleição, o liberalismo de Garrido compensou a pobreza de eleitores. Para inteira liberdade da urna, logo de manhã, as patrulhas de cavalaria varreram o povo das ruas em redor da igreja; pelo dia adiante, um serviço de polícia bem feito deu em resultado que só fossem reconhecidos eleitores, para terem acesso à urna, os amigos do governo [...]. Glória ao liberal que assim honrava as nobilíssimas tradições da sua família!» (Lima, 1903: 189-190)
 

Mas, atento ao que se passa no mundo, não deixa de se estribar noutras experiências, denunciando-lhes as imperfeições:

«A nação mais democrática do Mundo, ou pelo menos apontada como tal, os Estados Unidos, é o melhor exemplo da significação que tem o direito de votar; ali o voto é uma mercancia como o algodão ou os cereais, o poder é para quem mais souber capitalizar. Por isso não será temeridade afirmar que o sufrágio universal «torna-se na prática a base natural duma verdadeira tirania». (Lima. 1888: 16)
 

O que está em causa não é a democracia orgânica, mas a democracia do número, esta última a casar dois conceitos incompatíveis para quem vê a comunidade como um «verdadeiro organismo social», cuja sobrevivência não poderá / 75 / depender da vontade egoísta ou instrumentalizada da cada célula, mas sim da acção concertada de todos os órgãos. É este o princípio em que também estriba a necessidade do Estado, o qual, cabeça desse organismo, incapaz de subsistir como corpo acéfalo (Lima, 1890: 606), está sujeito a obrigações e condutas que se identifiquem com o bem comum e não com o das oligarquias possidentes. E porque se erige

«a corrupção em sistema político, na descrença de todo o sentido nobre e de todo o móbil de acção que não seja um sórdido e insaciável egoísmo» (Lima, 1888: 34),
 

e porque nunca esteve em causa a necessidade e justeza da democracia ou do sistema representativo, levantava-se, a Jaime Lima, o problema da representação ideal, capaz de conviver com o sufrágio universal, com os direitos políticos adquiridos, «embora [os eleitores] tanta vez tenham usado esses direitos em prejuízo da sociedade», pois retirá-los «seria levantar uma agitação perigosa» e desnecessária (Lima, 1890: 610).

Em 1888, quando J. Lima escreve pela primeira vez sobre esta temática, não apresenta qualquer solução para o problema, nem acredita em qualquer terapêutica capaz de esvaziar o sufrágio universal do vírus da corrupção, e de pôr a vontade popular a exprimir-se em inteira liberdade:

«Suponhamos, porém, que este vício é susceptível de correcção, suponhamos que o sufrágio universal chega um dia a funcionar em perfeita liberdade. A hipótese é / 76 / irrealizável, porque a liberdade implica a concorrência e, dada esta, os ambiciosos e os partidos surgem imediatamente nas suas diligências de colheita. Mas, se fosse possível que o sufrágio popular funcionasse em plena liberdade, não teríamos nele uma garantia de progresso, porque é sabido quanto o espírito popular é, em regra, adverso às transformações que o progresso científico indica. Há mesmo certa oposição entre a democracia e a ciência.» (Lima, 1888: 16).
 

O grande problema, que é necessário ultrapassar, reside no conflito entre o particular e o geral, entre o individualismo e os interesses da sociedade, do «organismo social». A questão será objecto de troca de correspondência com Antero de Quental, também ele preocupado em encontrar uma saída orgânica e democrática, e que lhe comunica, por carta de 5 de Maio de 1888, as suas próprias incertezas:

«Confesso-lhe que não me parece isso cousa que se resolva do pé para a mão, nem creio que tamanha obra dependa simplesmente da aceitação de certas doutrinas. As da representação adequada e efectiva da nação, dos seus órgãos naturais e não de entidades abstractas. Acho-a perfeita e é há muito a minha. Mas como dar consciência, a esses órgãos, da sua realidade e autonomia? Por meio da lei? Mas a lei é impotente para isso, impotente para criar seja o que for naquela esfera profunda que só depende da espontaneidade social. Creio que é questão de tempo, de evolução lenta e surda dessa tal espontaneidade. Porventura será necessário que a desagregação social vá ainda muito mais longe, chegue até àquele ponto em que a existência da mesma sociedade pareça ameaçada, para se dar então a reacção.» (Quental, 1993: XXV) / 77 /


Jaime Lima aclarará algumas das dúvidas de Antero, a crermos na resposta deste, datada de 22 do mesmo mês, na qual, colocando novas questões, tem sempre, como pano de fundo, a perspectiva organicista do todo social:

«Presta-se a sociedade actual, ou não se presta, a essa reorganização? E, por conseguinte: quais são os elementos que acondicionam? – É no exame desta segunda questão que se me oferecem graves dúvidas. Porque aquelas duas interrogações podem ser transformadas nesta outra: Quer a sociedade actual reorganizar-se? Sem essa vontade toda a obra legislatória é vã, pois tudo quanto é orgânico pressupõe um princípio interno ou força vital, único que dá plasticidade às transformações do organismo. (Quental, 1993: XXV1)(63)


Dois anos depois, quando a Liga Patriótica agonizava antes de titubeados os primeiros passos, Jaime Lima publicava, na revista de Eça de Queirós(64), o seu trabalho sobre «A reforma administrativa e a democracia» (Lima, 1890), procurando responder às hesitações e perplexidades levantadas por esta questão, que vinha a ser discutida entre Antero e Oliveira Martins desde antes de 1878 (Catroga, 1981: 360 ss.), ano em
/ 78 / que este último publicou As Eleições, e que ganhava agora mais acuidade, com a aproximação da entrada da «Vida Nova» na governação.

Nos considerandos deste último trabalho, Jaime Lima entende que a igualdade, na sociedade demo-liberal portuguesa, não lograra ainda ultrapassar a esfera do direito civil, continuando os resquícios do Antigo Regime a toldar «o trato de indivíduo a indivíduo» e a não se mostrar, mas instituições e nas relações políticas», «a justa partilha dos direitos e responsabilidades políticas». Isto é, «o governo do povo pelo povo», bandeira de todas as revoluções democráticas, estava longe de constituir uma realidade de facto, não se concretizando além do espaço formal delimitado pelo articulado dos códigos jurídicos. O problema não era apenas nacional, e ele tinha-o ainda há pouco constatado, aquando da sua longa viagem pela Europa, porquanto

«Ao poder absoluto dos reis substituíram-se governos absolutos de toda a espécie, entre os quais avultam pela frequência ditaduras militares, oligarquias capitalistas ou mesmo híbridos destes dois géneros como agora sucede no Brasil. Um legítimo governo representativo, a expressão dos interesses e da vontade de um país regulando a administração do estado, é raro se porventura existe.
Todavia, se não me iludo, essa representação é a condição inalterável da riqueza, da prosperidade e da segurança de uma nação.» (Lima, 1890: 605) 
/ 79 /

 

Portanto, a objectivação de uma democracia de facto, alargada a todas as esferas da sociedade, dependia, principalmente, da qualidade do sistema representativo. O problema, já aflorado em 1888, colocava-se na resposta a duas questões fundamentais: «qual deverá ser a base da representação», e «por onde aferir a capacidade» do cidadão, chamado «a intervir directamente nos negócios públicos». A resposta à primeira passava pela resposta à segunda que, perante a rejeição do sufrágio universal, já que o voto individual nada significava ou representava em termos de relações sociais, ficava reduzida ao campo do «censo» e da »instrução», barómetros das capacidades administrativa e intelectual. Mas, porque reconhece limitações a estes barómetros, já que

«o censo é simplesmente uma presunção de fortuna, não tendo coisa alguma de comum com as aptidões políticas e consagrando arbitrariamente o privilégio de uma oligarquia de ricos com exclusão do resto da nação» (Lima, 1890: 608),
 

outro tanto acontecendo com a instrução, pois

«um sábio de primeira ordem pode ser um mau eleitor, um operário pode tomar-se um excelente eleitor. Tudo depende de saber a que se aplica o seu voto e em que condições o vai dar» (id., ibid.).
 

Jaime Lima logrará ultrapassar este imbroglio, avançando com a distinção entre «a eleição» e «a representação», porque / 80 /

«Em teoria, estas duas noções de representação e da eleição são todavia absolutamente distintas. Podemos, com a eleição directa, ter mandatários que em nada representam a opinião de todos os votantes: podemos, com a representação de colectividades de interesses, obter um corpo representativo fiel e sincero, posto que poucos eleitores tenham tido parte no voto.» (id., ibid.)

 

É este o percurso dialéctico que o transporta ao organicismo corporativo, na esteira de Krause e Costa Lobo, pretendendo, com o seu contributo, «não [...] criar uma sociedade nova mas apenas reorganizar uma sociedade existente» (Lima, 1890: 610), pois, como já acima vimos, a sua ideia de acção transformadora é reformista e não revolucionária. A proposta limiana confinava o sufrágio universal à eleição das Câmaras Municipais que deixariam de superintender na organização do recenseamento eleitoral, no lançamento de impostos e na discussão do orçamento concelhio. Estas atribuições revertiam para um novo órgão, o Conselho Municipal, instituição corporativa que deveria representar, onde fosse possível, os «três principais agentes da vida social»: a terra; o capital e o trabalho; o saber (Lima, 1890: 610-611). Destes agentes corporativos sairia «a câmara dos pares convertida numa legítima representação de classes» (idem: 613), enquanto ao conjunto das câmaras e conselhos municipais caberia a eleição das Juntas Gerais dos Distritos e da Câmara de Deputados.

Aos olhos contemporâneos, percorrido que foi um longo caminho nas sociedades democráticas, a proposta limiana / 81 / aparece-nos coxa e contraproducente, nomeadamente quando vemos os corpos eleitorais das representações da «terra» e do «capital e trabalho» serem outorgadas, respectivamente, aos quarenta maiores contribuintes de contribuição predial e industrial (Idem: 611). Não emitimos juízos de valor que, à distância, surgiriam sempre anacrónicos; limitamo-nos a dar-lhe voz e a registar a bondade das suas intenções.

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(63)Carta de Antero de 22 de Maio de 1888. Ver nota anterior.

(64)“Revista de Portugal”, publicação literária, científica e noticiosa, dirigida por Eça de Queirós e editada por Lugan & Genelioux, sucessores de Ernest Chardron. Publicou-se no Porto de 1 de Julho de 1889 a 1892. Jaime Lima tem diversa colaboração nesta revista, para além da direcção da secção «Ideias e Factos».

 

 

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