Em jeito de prefácio
Muitas podem ser as funções da instituição literária
chamada prefácio. Com ela exorciza-se a timidez de autor e texto que
procuram público, prepara-se o leitor para que se deixe surpreender pelo
tema, justificam-se ousadias de análise, invenções e novidades de
escrita, desculpabilizam-se mediocridades, ajustam-se contas velhas ou
recentes, cozinham-se reputações. Para este arraial e muito mais servem
prefácios.
Assim sendo, sirva-nos este de pretexto para vincar a
oportunidade e excelência do contributo trazido agora à magra
bibliografia passiva de Jaime de Magalhães Lima. Estamos em presença de
um exercício criterioso, denso, solidamente informado, misto de ensaio e
monografia breve, em que sai retratado um ilustre aveirense, bem digno
de figurar na galeria dos cidadãos exemplares.
Com Jaime de Magalhães Lima, percorremos, desde 1870 até
meados dos anos trinta deste século, o Portugal político, literário,
artístico e social, com a sua dinâmica e estagnação, as suas lutas e
complacências, as suas tradições e apelos de modernidade. De tudo foi
testemunha, frequentemente tomou partido, e algumas vezes interveio como
actor.
Do seu perfil de cidadão fazem parte os qualificativos de
liberal e democrata, modelados pela atribulada experiência portuguesa
oitocentista, feita de ideais generosos e interesses
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mesquinhos, de contradições e impossibilidades. Como filho do seu tempo,
assimilou, no mais fundo e secreto da alma, as energias criadoras da
vocação liberal e democrática das sociedades modernas, sabendo, no
entanto, imprimir-lhes uma feição declaradamente crítica. Se adere ao
liberalismo é porque o entende como espaço de liberdade necessário à
respiração natural da pessoa humana, mas divorcia-se dele quando
concebido como realidade fechada nas formulações e práticas políticas do
individualismo de Oitocentos. Se partilha da ideia democrática é porque
vê no povo o genuíno depositário da identidade colectiva e o agente
natural da sua configuração cultural, opondo-se, por isso, a que ele
seja pervertido ou usado por interesses oportunistas de alguns.
A atitude de inconformidade, que cultivou, presta-se a interpretações
que, ou passam ao lado da sua visão do mundo e da vida, ou a deturpam
irremediavelmente. É indiscutível que Jaime de Magalhães Lima valorizou
as tradições populares e lá no íntimo viveu a nostalgia romântica de uma
mítica Idade Média. É igualmente inegável que o seu amor da natureza
selvagem se fez acompanhar de proclamadas reservas perante os progressos
do industrialismo. Mas o que não devemos esquecer também é a feição
crítica e reformadora que o anima, com o fim de refrear aventureirismos
primários que, em nome da revolução, se dispunham a cortar as raízes da
estabilidade e equilíbrio do viver tradicional.
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O conhecimento verdadeiramente interessante das ideias e das épocas
obtém-se tanto pela identificação dos valores e doutrinas que os homens
professam, quanto pelas realidades ou ficções contra as quais eles
reagem, ao procurarem vias diferentes ou opostas de ser e de pensar. E
não se diga que, uma vez estabelecidos os valores e as correntes de
pensamento a que se adere, ficam, por isso mesmo, definidas as
correspondentes oposições e antagonismos. Os valores liberais e a
concepção cristã da vida individual e colectiva, que Jaime de Magalhães
Lima professa, não nos esclarecem suficientemente acerca dos combates
que travou. É preciso mergulhar na sua extensa obra para vermos como
emergem com nitidez os alvos contra os quais disparou o fogo da crítica:
o individualismo, a revolução ávida de mutações rápidas, o liberalismo
corrupto ou inimigo das tradições nacionais que se desenvolveu com a
Regeneração, o laicismo que gradualmente invadia as instituições e o
quotidiano viver. Contra o desprezo das tradições populares, contra os
políticos servidores de interesses egoístas, contra divisionismos que
deitam a perder a necessária unidade de acção, contra a
descaracterização da língua, das artes e dos costumes, contra o
desrespeito pelo diálogo harmonioso do homem com a Natureza, eis alguns
temas de repúdio que dominam a escrita militante do aveirense e contra
os quais se bateu também na colaboração dispersa por variadíssimas
revistas, não obstante as divergências ideológicas que as podiam
inspirar.
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O autor deste estudo fixou a sua investigação e análise
crítica nos conceitos de nação, nacionalismo e democracia. Fê-lo com
rigor, ponderação, criatividade e inovação, ao mostrar que o
nacionalismo professado por Jaime de Magalhães Lima cultiva as
capacidades de realização cultural próprias de cada povo ao longo da
história, elegendo-as como princípio regulador do relacionamento
construtivo e fraterno das formações nacionais entre si. Não havendo
aqui qualquer negação ou recusa do estrangeiro, mas tão só a afirmação
da identidade própria, também não se alimentam formas de nacionalismo
estreito e agressivo geradoras de «patriotismo de avareza e disputa»".
Esta é uma apenas das pertinentes interpretações que abundam neste
texto, tão breve de páginas como rico e estimulador de novas
perspectivas de análise.
Luís Machado de Abreu
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