À procura dum significado para a palavra
HUMANIDADE
VASCO BRANCO
NASCEMOS
pouco depois da guerra de catorze e a tempestade nazi apanhou-nos ainda
na adolescência. Esses anos de incerteza e angústia deixaram-nos
cicatrizes fundas e conduziram-nos a um hábito defensivo, cujo escudo se
chama cepticismo. Desconfiados, pois, não por natureza, mas pela
impressão vivaz que a verificada falência de certas ensinanças, tidas
como dogma, escreveram em nossa alma, desconfiados, não por natureza,
mas pelo cansaço da praga de propagandas que pretendeu e pretende
governar a opinião pública − se não o Mundo −, só muito cautelosamente
nos atrevemos ainda à arbitragem duma questão ou a escolher guarida para
certas atitudes.
Nesta nossa época em que são vulgares os termos
engenheiros de almas, mentalidades teleguiadas, epidemias psicológicas,
opiniões dirigidas, temos, mais do que nunca, larga justificação
para essa desconfiança, para esse cepticismo. Ninguém desconhece que
actualmente a propaganda alinha em majestade e eficiência ao lado de
qualquer outra arma, e nós, os leigos, nem sempre estamos preparados
para a destrinça entre o nobre metal e a ganga que o envolve, pois só o
tempo poderá fazer subir a vil escória ao plano do nosso desprezo. A
propaganda, todavia, não desfigura somente os propósitos das nações, as
atitudes dos partidos políticos, a redacção dos comunicados da guerra: a
propaganda pode desvirtuar ou valorizar o mais insignificante
procedimento humano. É por isso que mais dificultosa se nos afigura a
busca que empreendemos de um significado para a palavra Humanidade.
Quando determinámos procurar o significado desta palavra,
o nosso primeiro ímpeto levou-nos a compulsar as definições dos
dicionários e das enciclopédias. Foram lidas dezenas de vezes e
finalmente abandonadas. Não conseguimos encontrar nessas definições
calor suficiente. Abafadas em tecnicismo − aliás imprescindível à
explanação das ideias − deixaram-nos um sabor a indiferentismo,
provocaram-nos um prurido puramente epidérmico, que não se coadunavam
bem com o nosso sentir. Tudo o que tentámos depois para fazer ganhar em
veemência a definição, saiu verborreico e expletivo − e, por isso, nos
agarrámos sofregamente à tábua de salvação do chamado exemplo.
Quando nos dizem que o massacre do povo magiar é
desumano, somos o primeiro a reconhecê-lo, como igualmente reconhecemos
a desumanidade do bombardeamento atómico feito a Hiroshima e Nagasaki.
Dirão certos argumentadores que, neste último caso, se tratava duma
necessidade tendente a aproximar o fim da guerra. É muito possível que
tenham razão; mas, se pretendermos encarar as coisas exclusivamente sob
o ponto de vista humano, mantemos o que afirmámos, visto que a
humanidade não pode usar para medida pontos de vista particulares
deste ou daquele indivíduo, deste ou daquele grupo, desta ou daquela
facção política, deste ou daquele país, deste ou daquele continente,
desta ou daquela raça, desta ou daquela civilização. A humanidade
é uma palavra sem limites − é uma palavra tão grande que alberga, no
mesmo carinho, o trabalhador e o indigente,
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o ministro e o operário, o sábio e o ignorante, o nórdico e o dravidiano.
A maior parte das vezes, a humanidade entra em
conflito com os interesses individuais ou de grupo, e a eles se tem que
sacrificar quase sempre: quando os povos europeus chegaram ao Novo
Mundo, o povo ameríndio viu a sua sentença de morte assinada e sem
possível apelação; quando os japoneses chegaram às ilhas que constituem
hoje a sua pátria, encontraram ali a raça ainú, que está em vias de
extinção. Não vamos chorar sobre as campas frias destas fatalidades
históricas; mas também não podemos, sem hipocrisia, chamar de
humanitários aos invasores. A própria natureza, tão cantada pelos
poetas, teria que prestar largas contas se a chamássemos à Iiça pelo seu
comportamento para com o bípede que − talvez... num momento de
imprudência − dotou de cérebro...
A classificação de um acto sob o ponto de vista humano
é muito subjectiva; o que para uns é louvável, outros condenam. Atitudes
há, todavia, com tal cunho de humanidade que são imediata e
unanimemente reconhecidas como tal.
Quando, no silêncio da noite, o lúgubre chorar da sereia
avisa o bombeiro de que há gente em perigo, ele não trata de indagar se
a casa a arder é de rico ou de pobre, de socialista ou monárquico, de
branco ou de negro, de sábio ou de analfabeto, de cristão ou de ateu. E
é precisamente nesta espontaneidade e neste desinteresse que vamos
encontrar a definição mais adequada − e talvez mais capaz − para a
palavra Humanidade.
JANEIRO DE 1957
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