DESPACHO N.º 14-I/ME/94 de 26/OUT./94 do Gabinete de Sua
Excelência a Ministra da Educação.
«Os alunos não podem, em caso algum, ser prejudicados por
virtude de interrupção de actividades lectivas, quaisquer que sejam os
motivos que a justifiquem. Nestes termos, determino:
Nas escolas em que se verifique atraso no cumprimento dos
programas devem os respectivos órgãos de gestão organizar desde já aulas
suplementares, utilizando, designadamente, créditos horários atribuídos
no âmbito de apoio pedagógico acrescido, de forma a assegurar o
cumprimento integral dos objectivos e conteúdos definidos no programa de
cada disciplina.
PROGRAMA DE FILOSOFIA
PRESSUPOSTOS PEDAGÓGICOS
No plano dos pressupostos pedagógicos, a elaboração deste
Programa teve em conta:
– a adequação activa à situação de desenvolvimento e
maturidade cognitiva dos alunos a quem se destina, não para se conformar
com ela mas para a transformar, num processo qualitativo e gradual;
– a valorização do pólo aprendizagem no processo de
ensino, de modo a possibilitar que o aluno se tome, efectivamente,
agente dinâmico da sua própria aprendizagem;
– a relevância de uma perspectiva de consecução de
objectivos que, conciliando-se com a transmissão de conteúdos
constituídos como um mínimo rigoroso de informação, desmotive a simples
memorização, suscite um trabalho individual de pesquisa e reflexão e
exija a sua fundamentação progressiva;
– a organização e articulação das unidades programáticas
segundo critérios em que a vertente pedagógica e didáctica é dominante,
embora não exclusiva.
Este programa assume como objectivos próprios:
*
fornecer instrumentos intelectuais de análise e reflexão;
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* facilitar a passagem do estádio das operações concretas
ao das operações formais;
* ultrapassar, decididamente, o nível da abordagem do
lugar comum;
* desenvolver a competência comunicativa/argumentativa,
tanto oral como escrita;
* proporcionar a convergência da formação e da
informação, num horizonte de aperfeiçoamento pessoal e cultural;
* harmonizar o desenvolvimento lógico dos conteúdos
filosóficos com o desenvolvimento psico-pedagógico;
* possibilitar a aprendizagem dos conteúdos de uma forma
estruturada e integrada;
* possibilitar uma atitude de abrangência e articulação
de saberes parcelares, numa síntese pessoal, aberta e construtiva;
* fundamentar a estruturação de uma reflexão pessoal,
crítica e valorativa;
* promover uma efectiva mudança de atitudes, mediante um
distanciamento crítico que permita a análise fundamentada do vivido.»
A senhora ministra é, certamente, uma barra em economia.
Não sei se já deu aulas. Por hipótese, no ensino superior. No secundário
não, certamente. Aí, recebeu-as. Conhece o ensino secundário do lado dos
alunos, noutro tempo, noutro lugar, noutro mundo que não tem nada a ver
com a década final do século XX.
E ordena: que leccionemos os conteúdos dos programas,
integralmente, que se cumprem os objectivos, que se dêem aulas
suplementares.
A senhora ministra determina mas, em relação à qualidade
do produto, ficou muda e queda. "O meu negócio são números" – diria o
Gordo. Portanto, ignoremos nós também e despachemos; o programa, corno é
óbvio. Segundo a teoria (empirista) do balde, o que é cada um de nós
senão um recipiente a encher? É ocasião de pôr à prova a sua validade.
Sim, senhora ministra, vamos enchê-los e eles, os alunos,
vão ficar
cheios, de nós e de coisa nenhuma. Não podem ficar pior
do que já estão. Mal não fará, portanto.
Sim, senhora ministra, obedeceremos, mas assegure-nos
primeiro que nas serão fornecidas, em quantidade suficiente, camisas de
força e mordaças de sólida garantia e, ainda, pessoal habilitado em
karate, para as aplicar. O resultado será mais seguro ainda se, do
programa (falo de filosofia o que melhor conheço) foram eliminadas
coisas de pouca monta, como sejam as pressupostas e as objectivas (essas
mesmas!). Não passa de um pormenor. É que, depressa e bem, há pouco
quem...
Elimine, ao menos, um desses pormenores: "a valorização
do pólo aprendizagem no processo de ensino, de modo que o aluno se
torne, efectivamente, agente dinâmico da sua aprendizagem.". Mas é
melhor eliminar todos.
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Sim, senhora ministra, mas mande primeiro verificar – uma
simples questão de números se o total de tempos lectivos disponíveis,
mesmo sem faltas, ainda que por doença, cobre os tempos de aulas
previstas para o cumprimento integral dos programas. Não fomos nós que
fizemos as contas. Foi-nos servido o prato já feito.
"Sim, senhora ministra, mas publicite primeiro as
conclusões a que chegaram os professores que, a título experimental,
aplicaram os programas em vigor. O que sabemos é por o ter ouvido os
próprios experimentadores. E não é pouco!
A avaliação da experiência está feita? Se não, porque
não? Se sim, por que não chegou ao conhecimento dos professores?
Sim, senhora ministra, vamos todos, obedecer eternamente,
dar aulas suplementares, mas assegure-nos primeiro, que as escolas têm
salas disponíveis para o efeito. Ou teremos de optar pelo horário
nocturno (verdadeiramente nocturno), das vinte e três hora e quinze
minutos às oito horas e vinte minutos. E porque não se, de acordo com a
última moda, as provas do 12.º ano, as quais, em parte, decorrerão entre
as 12h e as 14 horas.
Sim, senhora ministra, tudo será feito em conformidade
mas, primeiro, mande verificar se a carga horária dos alunos ainda pode
ser sobrecarregada com aulas para compensar as aulas que não foram dadas
ou que, tendo sido dadas, não renderam o que estava (?) previsto. De
qualquer modo, cumpriremos: não somos autónomos, somos do secundário,
porque se fôssemos do superior, isso não teria qualquer importância. Era
só sumariar.
A senhora ministra manda: é preciso ser económico,
comprimir as matérias e depois, fazer os destinatários engolir os
comprimidos, a bem ou a mal. Assim, sim, excelência, conseguiremos. Que
é a escola, senão uma fabrica de produção em cadeia? Apliquemos as
receitas dos economistas e não haverá crise. Como conciliar, porém, esta
visão economicista – um cumprimento de programas e de objectivos, nos
prazos previstos – com a imagem da escola promotora de valores?
Esqueçamos. Que, em economia, o que conta mesmo, são os valores
monetaristas.
Sim, senhora ministra, todos os defensores do "bom" senso
aplaudirão estas medidas e nós, professores, escolhidos para bodes
expiatórios, baixaremos as cabeças e prepararemos o pescoço para que,
sobre ele se abata, merecidamente, o cutelo do carrasco.
Sim, senhora ministra, dê sem piedade, nestes
cordeirinhos mansos, que de tão cordatas, estão mesmo a pedi-las.
Balidos de cordeiros não chegam aos céus, quanto mais ao Terreiro do
Paço! Senhora ministra, somos realmente uma classe em que mil de nós
incomoda muito menos que um elefante. Demasiados funcionários do
sistema, deste, de todos os sistemas. Eles, vós, mandam e nós marchamos,
sem sair do mesmo lugar, compassadamente, ombros caídos, cabisbaixos.
Dos mansos será o reino dos Céus!
Só mesmo o problema do vencimento nos faz erguer uma
sobrancelha (quase me escapava: abanar a cauda). O nosso negócio também
são números. E porque não, nós? Justifica-se plenamente a escolha duma
economista para dirigir o ministério que nos dirige.
Se a senhora ministra, com as últimas determinações quer
significar-nos que, como servidores do Estado, devemos cumprir as
tarefas pelas quais somos pagos, damos-lhe inteira razão. Tanto mais que
o Estado somos nós (por muito que o esqueçamos); servindo-o bem, é a nós
que servimos.
Ou, quer dizer que nos temos baldado? Alguns, todos,
algumas vezes, muitas? Não somos E.T.s. Cometemos erros, mas os erros
piores vieram de cima, porque geraram na classe, no funcionalismo e na
população em geral, a convicção de que as leis não são para cumprir (a
não ser pelos "mexilhões) de que se pode sempre dar um jeito. Quer Vossa
Excelência, do dia para a noite, limpar a casa, de alto a baixo, do
sótão á cave? Nem que a vassoura fosse mágica!
E está convencida que somos uma classe de gente que se
balda? Não seremos antes uma classe desmoralizada? Que se cansam de
esperar por D. Sebastião e que já não encontra motivos para acreditar?
Dê-nos condições, senhora ministra. Não nos dê escolas
armazéns com milhares de alunos. E não esqueça que não basta um
tratamento de choque. Pode-se morrer da cura. A escola, têm-no dito os
estudiosos do fenómeno, não é
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9 / nem nunca foi a nata da sociedade. É um
espelho. E está doente, sem dúvida porque a sociedade está doente.
Tratar a escola e esquecer a sociedade, é como tratar os sintomas e
ignorar ou fingir, ignorar as causas. É como acusar a TV. de estar na
origem da violência. Explora-a, como explora os mais baixos instintos do
homem, e tudo em nome da sacrossanta concorrência.
Mas, na escola, os explorados somos nós, os professores,
convertidos em "maus da fita", servindo de álibi para muita coisa, mas
sobretudo vitrinas da irresponsabilidade, das frustrações, da má
consciência e das medidas inconsequentes de alguns dos que nos acusam. E
sempre de ouvidos surdos às nossas razões.
Por algum motivo, a profissão docente é considerada de
risco e fornece aos consultórios psiquiátricos e quejandas, alguns dos
seus melhores e mais assíduos doentes.
Sim, senhora ministra, dê-nos mais um bom puxão de
orelhas. Mas
dê-o também aos pais, aos filhos, à TV., aos ministros da
educação que se têm sucedido uns aos outros, às reformas sucessivas e
nunca devidamente avaliadas, e às reformas das reformas, à indiferença
geral, aos novos valores, às mil e uma maneiras de aliciar crianças e
adolescentes, a tudo o que os lança à deriva, e torna as escolas este
deserto cultural (*) e um lugar de desencontros, ausência de
solidariedade, competição, incomunicação.
Sim, senhora ministra, quando fala, de quem fala: da
escola ou da sociedade? Dizer de uma ou de outra, é o mesmo. Claro que,
em tudo quanto vai mal no ensino (e é muito) os ministros, todos os
ministros que por lá têm passado, e os secretários de estado, e os
directores gerais, etc., etc., estão de mãos limpas e consciências ainda
mais limpas. Nós, por cá, todos bem: temos as costas largas.
Sim, senhora ministra. Ordene. Mas assegure-se primeiro,
junto do senhor ministro da saúde que serão tomadas, atempadamente, as
medidas necessárias para fazer face a uma grave crise que se avizinha.
Pode nem ser necessário. É que talvez acabemos todos. professores e
alunos, muito bem domesticadinhos, abanando a cabeça, para cima e para
baixo:
– Sim. Senhora ministra.
– Sim. senhora...
– Sim...
Seremos o país dos yes, man. Perdão, dos yes,
woman.
E, quem sabe senão passa por aqui mesmo, a solução da
crise.
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(*) –
Sem comentários: no orçamento do ano corrente, a escola viu reduzida a
verba destinada à cultura.
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