Intro:
Ao longo do presente ano lectivo o autor das presentes
linhas participou em diversas Visitas de Estudo, o que o levou a
reflectir acerca das virtudes e limitações desse tipo de actividades e a
desejar fazê-lo "em voz alta", isto é, por palavras escritas, que como
se sabe é o pior que se pode fazer, porque facilmente tais coisas podem
ser anexadas a processos do tipo de "Inimigo do Sistema Educativo". São
essas reflexões o que ireis ler.
Contudo, antes de começar a divagar sobre tão
interessante assunto, o autor gostaria de pedir desculpa aos eventuais
leitores deste jornal pelo facto de, por vezes, passar a escrever na
primeira pessoa – evitando assim malabarismos afectados de quem está a
expressar as suas opiniões, mas não quer dar a impressão de "parecer que
só ele é que sabe". Posta esta introdução, comecemos então.
1. Porto:
A propósito da problemática da Poluição e Reciclagem de
Lixos que, como já foi noticiado no Aliás n.º 4, motivou a participação
dum estudante alemão em aulas de Física e Química da nossa Escola,
realizou-se uma Visita de Estudo das turmas B e E do 8.º ano à região
do Porto, onde, para além de outros locais, foi visitada uma Fábrica
de Reciclagem de Lixos, que produz um fertilizante agrícola.
Sobre as virtudes da realização deste tipo de actividades
escolares melhor – e mais elucidativo – será ficarmos com as palavras de
um dos alunos que nela participou:
"(...) Pela viagem, conversámos, ouvimos música e,
alguns de nós, os alunos, confraternizámos. E digo alguns, porque a
confraternização era, em certos casos, impossível devido a um puto
qualquer que resolveu levar para a camioneta uma aparelhagem e a pôs a
tocar em altos berros, submetendo os outros que até, para não chatearem
alguém, tinham levado os seus "Walkman". Mas lá chegámos, após duas
horitas de viagem, à Lipor, que me surpreendeu por não cheirar tão mal
como eu pensava, talvez por não estar a laborar na altura.
(...) Depois, estava prevista uma visita às
instalações fabris, mas, devido às más condições atmosféricas, tal não
foi possível, pelo que apenas vimos descarregarem o lixo de uma
camioneta numa enorme piscina, não de água mas de lixo.
Sendo assim, embarcámos na nossa camioneta e seguimos em
direcção do Zoo de Maia para almoçarmos, o que constituiu uma surpresa
dos organizadores, pois estava previsto irmos comer a um parque perto da
Exponor. Esta deslocação foi rápida e mais agradável, sem o barulho
infernal da aparelhagem; e, quando parámos, apressámo-nos a tirar as
mochilas das prateleiras e a correr para ocupar uma mesa solarenga e
limpinha à entrada do Zoo.
Entre muitas risadas e "calotices" acabámos de almoçar e,
como tínhamos tempo, fomos visitar os animais que por lá existiam, que
realmente eram mais que suficientes para fazer as delícias de qualquer
zoologista ou curioso que por lá aparecesse. (...) Hoje em dia é cada
vez mais importante defender as mais diversas espécies animais e
vegetais, e os animais encontram nos Zoos um apoio dos grandes. O bonito
disto tudo é o sacrifício que algumas pessoas fazem para manter os
Zoológicos, que muitas vezes vivem de ofertas monetárias simbólicas que
mal chegam para o gasto total.
Bom, mas deixando a bicharada para trás, partimos em
direcção à lsar-Rakoll.
A lsar-Rakoll é uma fábrica de colas pouco conhecida no
mercado e que vive sobretudo de contratos em grande escala com empresas.
A primeira vez que ouvi falar nesta indústria foi através do matutino "O
Público", numa altura em que este jornal publicava todos os domingos uma
cidade para construir, iniciativa na qual a lsar-Rakoll participava
fornecendo cola aos leitores, só que esse contrato foi desfeito, segundo
o que me disse um dos nossos guias, porque "O Público" pedia muito
dinheiro.
(...) As colas que são produzidas na Isar-Rakoll são
utilizadas na indústria sapateira, mobiliária, do papel, na construção
civil para fixar tacos, alcatifas, azulejos, corticite, etc. [Segue-se
uma descrição da visita às instalações fabris.] O que eu achei mais
curioso foi a utilização, para
/
13 / esses testes, de fibrocimento em
substituição do cimento tradicional: O que a química não pode fazer
hoje!
Após uma visita um pouco longa, regressámos para a
camioneta. Todos nós pensávamos que não haveria tempo para o lanche e
pusemo-nos a comer e a beber no interior da viatura, mas fomos
surpreendidos pela notícia de que iríamos lanchar ao pé do Castelo do
Queijo, na Foz do Douro. Esta paragem foi-me particularmente favorável,
pois pude tirar fotos ao cargueiro que na noite anterior tinha encalhado
a escassos metros da costa, ao lado do Castelo.
Embora tenha sido uma paragem rápida, foi muito agradável
e a viagem de regresso a Aveiro ainda mais. Naquela altura as duas
turmas tinham-se dividido: na frente da camioneta, o 8.º E, na parte de
trás, nós, o 8.º B. Cantámos, jogámos, isto é, divertimo-nos e... o pior
foi quando chegámos... queríamos continuar! Mas tudo o que é bom acaba e
a nossa visita de estudo tinha chegado ao fim.
André Pinheiro Moreira, n.º 25 da turma B do
8.º ano"
2. Lisboa:
No mês de Abril, após um doloroso processo de cartas,
telefonemas e contactos pessoais, conseguiu-se finalmente concretizar
uma Visita de Estudo das turmas F e G do 9.º ano a Lisboa.
Da parte da manhã, os desportistas do 9.º F foram visitar
o Estádio da Luz, enquanto os artistas do 9.º G [os mesmos que passaram
todo o Dia da Escola a pintar um enorme painel na Sala de Alunos]
deslocaram-se até à zona do Chiado para visitarem as instalações da
Faculdade de Arquitectura e da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa
(vulgo ESBAL). De tarde, o programa para ambas as turmas consistiu numa
visita às instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, nomeadamente ao
seu Centro da Arte Moderna (cuja visita provocou algumas discussões
sobre Arte e Estética em relações às quais o professor de Arte e Design
teve de "descalçar a bota"...).
Para
muitos destes jovens (nomeadamente os do 9.º G, pois que os da turma F
haviam ficado com a camioneta para se poderem deslocar também até às
instalações da Faculdade de Motricidade Humana na Cruz Quebrada) esta
visita a Lisboa possibilitou-lhes a oportunidade de viajarem de
Metropolitano (enquanto aos professores acompanhantes era proporcionada
uma dor de cabeça adicional devida à sua preocupação em não perder
ninguém pelo caminho...) e, por outro lado, proporcionou a todos –
alunos e professores – uma oportunidade de confraternização que poderei
ilustrar da melhor forma. À chegada a Aveiro, um dos alunos que durante
os dois primeiros períodos lectivos havia demonstrado uma atitude de
quase hostilidade para com a minha pessoa, e com quem inclusivamente não
havia confraternizado especialmente durante a viagem, virou-se para mim
estabelecendo-se o seguinte diálogo:
– Oh Professor, como é que se chama?
– Paulo...
– Não se importa se o tratar pelo seu nome?
– Não...
– Então Paulo, vamos daí tomar um café?
Não sei se o meu rosto terá deixado transparecer espanto
ou mesmo quase pânico pelo alcance de tão curto diálogo, mas o facto é
que aceitei o convite, embora – discernimento (ou receio de excessos?)
"oblige" – tenha delicadamente dissertado acerca da problemática de
tratar os professores por "tu", no que fui aparentemente entendido pelo
aluno em questão. (Confesso que não resisti depois a provocá-lo,
confrontando-o com o facto de até aí nunca ter demonstrado especial
consideração pela minha pessoa mas, passados os seus embaraços iniciais,
julgo poder dizer que, após esse café, "ficámos amigos".)
/
14 /
Importará ainda referir que a turma em questão (9.º G)
caracterizara-se até pouco tempo antes da referida Visita de Estudo por
um comportamento bastante problemático que, inclusivamente, levara à
realização de um Conselho Disciplinar. Por esse motivo a realização da
Visita de Estudo preocupara os professores nela envolvidos, embora na
verdade o comportamento dos alunos durante a mesma tenha demonstrado que
afinal os rapazes (e raparigas) sabem comportar-se dum modo civilizado e
responsável. (Diga-se em abono da verdade que os mesmos sabiam que
estariam "fritos" se assim não se comportassem. Infelizmente, a
massificação do nosso Ensino obriga a que a o processo Educativo não
possa abdicar de recorrer bastantes vezes à clássica técnica do "crime e
castigo".)
3. Paris:
Já depois de ter sido dada como frustrada a intenção das
turmas A e B do 11.º de se deslocarem em Visita de Estudo a
Paris, mais concretamente a La Villette (Cité des Sciences et de
I'Industrie), realizou-se finalmente no mês de Maio a referida Visita de
Estudo.
Tentando
ilustrar o modo como decorreu esta viagem a terras de França (e
Espanha), já esteve patente nos corredores da nossa escola uma
mini-exposição, assim como no Dia da Escola esteve em exibição o
documentário vídeo "Memórias de uma viagem" (exibido nas duas únicas
sessões com "casa cheia" que a actividade "Non Stop Vídeo Ciência"
registou).
Cabendo os louros da organização desta Visita de Estudo
especialmente aos alunos (ajudados pelas Directoras de Turma), a mesma
decorreu da melhor maneira. De qualquer modo, sobre tudo o que se passou
nesses 6 dias muito haveria ainda a dizer, devendo-se contudo avisar os
mais curiosos que não será aqui nestas linhas que se irão desvendar os
"segredos" dessa viagem (que aliás não serão muito diferentes dos de
qualquer Visita de Estudo de duração superior a um dia). Não sendo assim
objectivo principal deste artigo descrever as aventuras dessa viagem,
julgamos porém que não deixa de ser esta uma boa oportunidade para
efectuar algumas reflexões acerca da Escola (no seu sentido lato) e das
suas virtudes e limitações.
Pegue-se numa Escola espartilhada por curricula e
horários rígidos e dê-se aos alunos uma oportunidade de, sob a
orientação da mesma instituição, saírem do recinto escolar para a rua.
Como se poderá calcular, os resultados poderão ser explosivos, embora
esse carácter explosivo se refira na maior parte das vezes ao
comportamento emocional dos intervenientes, alunos e professores (já
agora, para quando a inclusão dos Auxiliares da Acção Educativa nestas
actividades?) e não a explosões propriamente ditas como as que assolaram
as ruas de Los Angeles ainda há bem pouco tempo.
"Quando o mar bate na rocha... quem se lixa é o
mexilhão". Lá diz o povo e é verdade. Mas mais verdadeiro se tornará o
ditado em causa se entendermos a(s) rocha(s) como representação figurada
dos filhos/alunos, o(s) mexilhão(ões) como símbolo dos professores
(pateticamente agarrados aos alunos, sua principal razão de existência
ou no mínimo de sobrevivência) e o mar possante como representação dos
pais (membros, como todos nós, da sociedade que pretende através da
Educação, nomeadamente a Escolar, moldar os seus elementos à sua imagem
e semelhança, por vezes numa perspectiva demasiadamente umbiguista e
incompatível com a contínua mudança das regras de convivência social).
Na verdade constata-se que – e esta Visita de Estudo a
Paris é bem disso demonstrativa – muitas vezes os jovens "mais
santinhos" se excedem em experiências vivenciais, quando se encontram
longe da vigilância e controle apertado de seus pais. Os objectos
expostos na prateleira de baixo da já referida mini-exposição são bem
ilustrativos do que se acabou de dizer. (Não se pense que se estão a
tomar todos os pais como polícias declaradamente castradores, mas na
verdade também o Santo Ofício actuava de boa fé em nome do
misericordioso Deus e conhece-se muito bem tudo o que daí decorreu.)
Por outro lado, dos alunos "terríveis" tudo se pode
esperar, embora nalguns casos seja surpreendente a quase voluntária
colaboração destes com os professores, devido ao receio de que um
simples dedo para lá da linha de risco os condene irremediavelmente.
Também sobre a espantosa facilidade que alguns alunos apresentam em
mentir (aos adultos/professores ou muito simplesmente a quem quer que
seja) leva a reflectir até que ponto a educação familiar (e também da
sociedade em geral) leva a que muitas vezes os indivíduos jovens no
presente caso) concluam que mais vale mentir e continuar a fazer o que a
(in)consciência ordena do que dizer simplesmente dizer a verdade, embora
essa verdade possa não ser do agrado do interlocutor. Mente-se tão
facilmente que por vezes se duvida se o clássico "peso na consciência"
resultante do acto de mentir ocorra na mente de quem o faz.
Resumindo: em alguns lares, de há muitos séculos para
/ 15 / cá,
anda-se a criar "monstrinhos sociais" que quando em sociedade não irão
fazer outra coisa que não seja contribuírem para a manutenção da já
podre ordem de "manter as aparências, porque isso é mais fácil do que
assumir o que se é e o que se faz". E a nós professores é pedido que
desses monstrinhos sejam feitos cidadãos civilizados e solidários,
quando em casa se continua a "bater nas mulheres" e etc. [Será que já
disse suficientes barbaridades para poder ser acusado de "Inimigo do
Sistema Educativo" ou será que afinal se podem dizer verdades num jornal
de escola?]
Um outro comentário que importa fazer acerca da referida
Visita de Estudo a Paris é a de que na verdade não há nenhuma razão
válida que justifique o facto as referidas turmas não terem ido
acompanhados por professores das mesmas (pelo menos um) uma vez que,
como já foi demonstrado ao longo de todo este longo artigo, as
vicissitudes das Visitas de Estudo têm virtudes que não podem ser
desperdiçadas. Se é verdade que muitas das vezes as nossas vidas
familiares não possibilitam uma grande disponibilidade para este tipo de
actividades, que implicam o afastamento do lar durante alguns dias,
também não deixa de ser igualmente verdade que muitas vezes um simples
comodismo nos faz afastar a hipótese de abdicarmos um pouco da nossa paz
de espírito em favor da possibilidade de podermos mostrar aos nossos
alunos, dum modo um pouco mais concreto, o Mundo tal como ele é para lá
das grades da Escola, ou mesmo para além das fronteiras do nosso
país/cultura, (Por exemplo, para alguns alunos esta visita a Paris
possibilitou-lhes a "espantosa" – porque não? – e simples experiência de
andarem em escadas rolantes). Dormir num autocarro durante uma viagem de
24 horas pode não ser nada cómodo, mas talvez nos ajude a reequacionar a
nossa perspectiva do que é o sentido real da vida: se a comodidade da
rotina se o maravilhamento da aventura das descobertas. (E não é sobre
os "500 anos" que estou a falar,)
Não
gostaríamos de terminar estas reflexões acerca da Visita de Estudo a
Paris sem referir, mais uma vez, que a mesma decorreu em termos
organizativos da melhor maneira e que valeu a pena participar nela por
todos os motivos (excepto os financeiros, mas pedir que o Ministério
financie este tipo de actividades extracurriculares? – é uma utopia cuja
razão de ser talvez o Senhor nos explique quando chegarmos ao Céu...).
Quem lá não foi é que ficou a perder.
Por Fim:
Como metodologia de apresentação deste artigo tomou-se
cada uma das referidas Visitas de Estudo como ponto de partida para
reflexão sobre determinada(s) questão(ões) em particular. Deste modo
julgámos ter ilustrado com os exemplos apresentados que todas as Visitas
de Estudo têm as suas virtudes. Quer a nível de aquisição de conteúdos
científicos – questão que achámos desnecessário realçar neste artigo –
quer a nível de desenvolvimento de capacidades de convivência social
(alunos-colegas, alunos-professores, alunos-sociedade, etc.). Defeitos,
ou inconvenientes, a nosso ver quase nem existem.
Inconvenientes somos nós ■
Paulo Moreira
P.S.
–
Soube
agora da morte de um singular amigo. Mais uma vez ousou desrespeitar a
voz da razão dos outros com quem se encontrava e encontrou a morte na
última ravina da sua vida. Perdeu-se de vez. Se aqui trago o assunto é
porque o mesmo era um espécime exemplar do que atrás foi dito acerca da
educação paternal que deseja moldar os filhos à sua imagem e semelhança
(ou aceitabilidade). Muito haveria a dizer acerca da sua excentricidade,
mas da sua atribulada existência dou unicamente um exemplo: mudar de
roupa cada vez que se sai ou se entra em casa é coisa que não deveria
passar pela cabeça de ninguém, mas pela dele passava, pois que não lhe
era permitido andar vestido como desejava. Ridículo, não é? Pois é assim
mesmo que se continuam a educar muitos filhos por aí. Até que a morte os
colha estupidamente num dos carreiros da vida, A nós unicamente nos
resta um sorriso irónico e a certeza de que também por lá passaremos
amanhã. Por isso vivemos (como ele o fazia) com a alegria de
acreditarmos que todos os dias existem coisas novas a (inocentemente)
descobrir ou inventar. Que ao menos para exemplo nos sirva a sua extinta
vida.
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