Escola Secundária José Estêvão, n.º 7, Jun.- Jul. de 1992

Intro:

Ao longo do presente ano lectivo o autor das presentes linhas participou em diversas Visitas de Estudo, o que o levou a reflectir acerca das virtudes e limitações desse tipo de actividades e a desejar fazê-lo "em voz alta", isto é, por palavras escritas, que como se sabe é o pior que se pode fazer, porque facilmente tais coisas podem ser anexadas a processos do tipo de "Inimigo do Sistema Educativo". São essas reflexões o que ireis ler.

Contudo, antes de começar a divagar sobre tão interessante assunto, o autor gostaria de pedir desculpa aos eventuais leitores deste jornal pelo facto de, por vezes, passar a escrever na primeira pessoa – evitando assim malabarismos afectados de quem está a expressar as suas opiniões, mas não quer dar a impressão de "parecer que só ele é que sabe". Posta esta introdução, comecemos então.

 

1. Porto:

A propósito da problemática da Poluição e Reciclagem de Lixos que, como já foi noticiado no Aliás n.º 4, motivou a participação dum estudante alemão em aulas de Física e Química da nossa Escola, realizou-se uma Visita de Estudo das turmas B e E do 8.º ano à região do Porto, onde, para além de outros locais, foi visitada uma Fábrica de Reciclagem de Lixos, que produz um fertilizante agrícola.

Sobre as virtudes da realização deste tipo de actividades escolares melhor – e mais elucidativo – será ficarmos com as palavras de um dos alunos que nela participou:

"(...) Pela viagem, conversámos, ouvimos música e, alguns de nós, os alunos, confraternizámos. E digo alguns, porque a confraternização era, em certos casos, impossível devido a um puto qualquer que resolveu levar para a camioneta uma aparelhagem e a pôs a tocar em altos berros, submetendo os outros que até, para não chatearem alguém, tinham levado os seus "Walkman". Mas lá chegámos, após duas horitas de viagem, à Lipor, que me surpreendeu por não cheirar tão mal como eu pensava, talvez por não estar a laborar na altura.

(...) Depois, estava prevista uma visita às instalações fabris, mas, devido às más condições atmosféricas, tal não foi possível, pelo que apenas vimos descarregarem o lixo de uma camioneta numa enorme piscina, não de água mas de lixo.

Sendo assim, embarcámos na nossa camioneta e seguimos em direcção do Zoo de Maia para almoçarmos, o que constituiu uma surpresa dos organizadores, pois estava previsto irmos comer a um parque perto da Exponor. Esta deslocação foi rápida e mais agradável, sem o barulho infernal da aparelhagem; e, quando parámos, apressámo-nos a tirar as mochilas das prateleiras e a correr para ocupar uma mesa solarenga e limpinha à entrada do Zoo.

Entre muitas risadas e "calotices" acabámos de almoçar e, como tínhamos tempo, fomos visitar os animais que por lá existiam, que realmente eram mais que suficientes para fazer as delícias de qualquer zoologista ou curioso que por lá aparecesse. (...) Hoje em dia é cada vez mais importante defender as mais diversas espécies animais e vegetais, e os animais encontram nos Zoos um apoio dos grandes. O bonito disto tudo é o sacrifício que algumas pessoas fazem para manter os Zoológicos, que muitas vezes vivem de ofertas monetárias simbólicas que mal chegam para o gasto total.

Bom, mas deixando a bicharada para trás, partimos em direcção à lsar-Rakoll.

A lsar-Rakoll é uma fábrica de colas pouco conhecida no mercado e que vive sobretudo de contratos em grande escala com empresas. A primeira vez que ouvi falar nesta indústria foi através do matutino "O Público", numa altura em que este jornal publicava todos os domingos uma cidade para construir, iniciativa na qual a lsar-Rakoll participava fornecendo cola aos leitores, só que esse contrato foi desfeito, segundo o que me disse um dos nossos guias, porque "O Público" pedia muito dinheiro.

(...) As colas que são produzidas na Isar-Rakoll são utilizadas na indústria sapateira, mobiliária, do papel, na construção civil para fixar tacos, alcatifas, azulejos, corticite, etc. [Segue-se uma descrição da visita às instalações fabris.] O que eu achei mais curioso foi a utilização, para / 13 / esses testes, de fibrocimento em substituição do cimento tradicional: O que a química não pode fazer hoje!

Após uma visita um pouco longa, regressámos para a camioneta. Todos nós pensávamos que não haveria tempo para o lanche e pusemo-nos a comer e a beber no interior da viatura, mas fomos surpreendidos pela notícia de que iríamos lanchar ao pé do Castelo do Queijo, na Foz do Douro. Esta paragem foi-me particularmente favorável, pois pude tirar fotos ao cargueiro que na noite anterior tinha encalhado a escassos metros da costa, ao lado do Castelo.

Embora tenha sido uma paragem rápida, foi muito agradável e a viagem de regresso a Aveiro ainda mais. Naquela altura as duas turmas tinham-se dividido: na frente da camioneta, o 8.º E, na parte de trás, nós, o 8.º B. Cantámos, jogámos, isto é, divertimo-nos e... o pior foi quando chegámos... queríamos continuar! Mas tudo o que é bom acaba e a nossa visita de estudo tinha chegado ao fim.

         André Pinheiro Moreira, n.º 25 da turma B do 8.º ano"

 

2. Lisboa:

No mês de Abril, após um doloroso processo de cartas, telefonemas e contactos pessoais, conseguiu-se finalmente concretizar uma Visita de Estudo das turmas F e G do 9.º ano a Lisboa.

Da parte da manhã, os desportistas do 9.º F foram visitar o Estádio da Luz, enquanto os artistas do 9.º G [os mesmos que passaram todo o Dia da Escola a pintar um enorme painel na Sala de Alunos] deslocaram-se até à zona do Chiado para visitarem as instalações da Faculdade de Arquitectura e da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (vulgo ESBAL). De tarde, o programa para ambas as turmas consistiu numa visita às instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, nomeadamente ao seu Centro da Arte Moderna (cuja visita provocou algumas discussões sobre Arte e Estética em relações às quais o professor de Arte e Design teve de "descalçar a bota"...).

Para muitos destes jovens (nomeadamente os do 9.º G, pois que os da turma F haviam ficado com a camioneta para se poderem deslocar também até às instalações da Faculdade de Motricidade Humana na Cruz Quebrada) esta visita a Lisboa possibilitou-lhes a oportunidade de viajarem de Metropolitano (enquanto aos professores acompanhantes era proporcionada uma dor de cabeça adicional devida à sua preocupação em não perder ninguém pelo caminho...) e, por outro lado, proporcionou a todos – alunos e professores – uma oportunidade de confraternização que poderei ilustrar da melhor forma. À chegada a Aveiro, um dos alunos que durante os dois primeiros períodos lectivos havia demonstrado uma atitude de quase hostilidade para com a minha pessoa, e com quem inclusivamente não havia confraternizado especialmente durante a viagem, virou-se para mim estabelecendo-se o seguinte diálogo:

– Oh Professor, como é que se chama?

– Paulo...

– Não se importa se o tratar pelo seu nome?

– Não...

– Então Paulo, vamos daí tomar um café?

Não sei se o meu rosto terá deixado transparecer espanto ou mesmo quase pânico pelo alcance de tão curto diálogo, mas o facto é que aceitei o convite, embora – discernimento (ou receio de excessos?) "oblige" – tenha delicadamente dissertado acerca da problemática de tratar os professores por "tu", no que fui aparentemente entendido pelo aluno em questão. (Confesso que não resisti depois a provocá-lo, confrontando-o com o facto de até aí nunca ter demonstrado especial consideração pela minha pessoa mas, passados os seus embaraços iniciais, julgo poder dizer que, após esse café, "ficámos amigos".) / 14 /

Importará ainda referir que a turma em questão (9.º G) caracterizara-se até pouco tempo antes da referida Visita de Estudo por um comportamento bastante problemático que, inclusivamente, levara à realização de um Conselho Disciplinar. Por esse motivo a realização da Visita de Estudo preocupara os professores nela envolvidos, embora na verdade o comportamento dos alunos durante a mesma tenha demonstrado que afinal os rapazes (e raparigas) sabem comportar-se dum modo civilizado e responsável. (Diga-se em abono da verdade que os mesmos sabiam que estariam "fritos" se assim não se comportassem. Infelizmente, a massificação do nosso Ensino obriga a que a o processo Educativo não possa abdicar de recorrer bastantes vezes à clássica técnica do "crime e castigo".)
 

3. Paris:

Já depois de ter sido dada como frustrada a intenção das turmas A e B do 11.º de se deslocarem em Visita de Estudo a Paris, mais concretamente a La Villette (Cité des Sciences et de I'Industrie), realizou-se finalmente no mês de Maio a referida Visita de Estudo.

Tentando ilustrar o modo como decorreu esta viagem a terras de França (e Espanha), já esteve patente nos corredores da nossa escola uma mini-exposição,         assim como no Dia da Escola esteve em exibição o documentário vídeo "Memórias de uma viagem" (exibido nas duas únicas sessões com "casa cheia" que a actividade "Non Stop Vídeo Ciência" registou).

Cabendo os louros da organização desta Visita de Estudo especialmente aos alunos (ajudados pelas Directoras de Turma), a mesma decorreu da melhor maneira. De qualquer modo, sobre tudo o que se passou nesses 6 dias muito haveria ainda a dizer, devendo-se contudo avisar os mais curiosos que não será aqui nestas linhas que se irão desvendar os "segredos" dessa viagem (que aliás não serão muito diferentes dos de qualquer Visita de Estudo de duração superior a um dia). Não sendo assim objectivo principal deste artigo descrever as aventuras dessa viagem, julgamos porém que não deixa de ser esta uma boa oportunidade para efectuar algumas reflexões acerca da Escola (no seu sentido lato) e das suas virtudes e limitações.

Pegue-se numa Escola espartilhada por curricula e horários rígidos e dê-se aos alunos uma oportunidade de, sob a orientação da mesma instituição, saírem do recinto escolar para a rua. Como se poderá calcular, os resultados poderão ser explosivos, embora esse carácter explosivo se refira na maior parte das vezes ao comportamento emocional dos intervenientes, alunos e professores (já agora, para quando a inclusão dos Auxiliares da Acção Educativa nestas actividades?) e não a explosões propriamente ditas como as que assolaram as ruas de Los Angeles ainda há bem pouco tempo.

"Quando o mar bate na rocha... quem se lixa é o mexilhão". Lá diz o povo e é verdade. Mas mais verdadeiro se tornará o ditado em causa se entendermos a(s) rocha(s) como representação figurada dos filhos/alunos, o(s) mexilhão(ões) como símbolo dos professores (pateticamente agarrados aos alunos, sua principal razão de existência ou no mínimo de sobrevivência) e o mar possante como representação dos pais (membros, como todos nós, da sociedade que pretende através da Educação, nomeadamente a Escolar, moldar os seus elementos à sua imagem e semelhança, por vezes numa perspectiva demasiadamente umbiguista e incompatível com a contínua mudança das regras de convivência social).

Na verdade constata-se que – e esta Visita de Estudo a Paris é bem disso demonstrativa – muitas vezes os jovens "mais santinhos" se excedem em experiências vivenciais, quando se encontram longe da vigilância e controle apertado de seus pais. Os objectos expostos na prateleira de baixo da já referida mini-exposição são bem ilustrativos do que se acabou de dizer. (Não se pense que se estão a tomar todos os pais como polícias declaradamente castradores, mas na verdade também o Santo Ofício actuava de boa fé em nome do misericordioso Deus e conhece-se muito bem tudo o que daí decorreu.)

Por outro lado, dos alunos "terríveis" tudo se pode esperar, embora nalguns casos seja surpreendente a quase voluntária colaboração destes com os professores, devido ao receio de que um simples dedo para lá da linha de risco os condene irremediavelmente. Também sobre a espantosa facilidade que alguns alunos apresentam em mentir (aos adultos/professores ou muito simplesmente a quem quer que seja) leva a reflectir até que ponto a educação familiar (e também da sociedade em geral) leva a que muitas vezes os indivíduos jovens no presente caso) concluam que mais vale mentir e continuar a fazer o que a (in)consciência ordena do que dizer simplesmente dizer a verdade, embora essa verdade possa não ser do agrado do interlocutor. Mente-se tão facilmente que por vezes se duvida se o clássico "peso na consciência" resultante do acto de mentir ocorra na mente de quem o faz.

Resumindo: em alguns lares, de há muitos séculos para / 15 / cá, anda-se a criar "monstrinhos sociais" que quando em sociedade não irão fazer outra coisa que não seja contribuírem para a manutenção da já podre ordem de "manter as aparências, porque isso é mais fácil do que assumir o que se é e o que se faz". E a nós professores é pedido que desses monstrinhos sejam feitos cidadãos civilizados e solidários, quando em casa se continua a "bater nas mulheres" e etc. [Será que já disse suficientes barbaridades para poder ser acusado de "Inimigo do Sistema Educativo" ou será que afinal se podem dizer verdades num jornal de escola?]

 

Um outro comentário que importa fazer acerca da referida Visita de Estudo a Paris é a de que na verdade não há nenhuma razão válida que justifique o facto as referidas turmas não terem ido acompanhados por professores das mesmas (pelo menos um) uma vez que, como já foi demonstrado ao longo de todo este longo artigo, as vicissitudes das Visitas de Estudo têm virtudes que não podem ser desperdiçadas. Se é verdade que muitas das vezes as nossas vidas familiares não possibilitam uma grande disponibilidade para este tipo de actividades, que implicam o afastamento do lar durante alguns dias, também não deixa de ser igualmente verdade que muitas vezes um simples comodismo nos faz afastar a hipótese de abdicarmos um pouco da nossa paz de espírito em favor da possibilidade de podermos mostrar aos nossos alunos, dum modo um pouco mais concreto, o Mundo tal como ele é para lá das grades da Escola, ou mesmo para além das fronteiras do nosso país/cultura, (Por exemplo, para alguns alunos esta visita a Paris possibilitou-lhes a "espantosa" – porque não? – e simples experiência de andarem em escadas rolantes). Dormir num autocarro durante uma viagem de 24 horas pode não ser nada cómodo, mas talvez nos ajude a reequacionar a nossa perspectiva do que é o sentido real da vida: se a comodidade da rotina se o maravilhamento da aventura das descobertas. (E não é sobre os "500 anos" que estou a falar,)

 

Não gostaríamos de terminar estas reflexões acerca da Visita de Estudo a Paris sem referir, mais uma vez, que a mesma decorreu em termos organizativos da melhor maneira e que valeu a pena participar nela por todos os motivos (excepto os financeiros, mas pedir que o Ministério financie este tipo de actividades extracurriculares? – é uma utopia cuja razão de ser talvez o Senhor nos explique quando chegarmos ao Céu...).

Quem lá não foi é que ficou a perder.

 

Por Fim:

Como metodologia de apresentação deste artigo tomou-se cada uma das referidas Visitas de Estudo como ponto de partida para reflexão sobre determinada(s) questão(ões) em particular. Deste modo julgámos ter ilustrado com os exemplos apresentados que todas as Visitas de Estudo têm as suas virtudes. Quer a nível de aquisição de conteúdos científicos – questão que achámos desnecessário realçar neste artigo – quer a nível de desenvolvimento de capacidades de convivência social (alunos-colegas, alunos-professores, alunos-sociedade, etc.). Defeitos, ou inconvenientes, a nosso ver quase nem existem.

Inconvenientes somos nós ■

Paulo Moreira

 

P.S. Soube agora da morte de um singular amigo. Mais uma vez ousou desrespeitar a voz da razão dos outros com quem se encontrava e encontrou a morte na última ravina da sua vida. Perdeu-se de vez. Se aqui trago o assunto é porque o mesmo era um espécime exemplar do que atrás foi dito acerca da educação paternal que deseja moldar os filhos à sua imagem e semelhança (ou aceitabilidade). Muito haveria a dizer acerca da sua excentricidade, mas da sua atribulada existência dou unicamente um exemplo: mudar de roupa cada vez que se sai ou se entra em casa é coisa que não deveria passar pela cabeça de ninguém, mas pela dele passava, pois que não lhe era permitido andar vestido como desejava. Ridículo, não é? Pois é assim mesmo que se continuam a educar muitos filhos por aí. Até que a morte os colha estupidamente num dos carreiros da vida, A nós unicamente nos resta um sorriso irónico e a certeza de que também por lá passaremos amanhã. Por isso vivemos (como ele o fazia) com a alegria de acreditarmos que todos os dias existem coisas novas a (inocentemente) descobrir ou inventar. Que ao menos para exemplo nos sirva a sua extinta vida.
 

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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