Escola Secundária José Estêvão, n.º 5, Out. - Dez. de 1991

No dia 18 de Dezembro foram finalmente apresentados ao público os dois volumes do Prémio Literário de José Estêvão – um de Prosa, outro de Poesia. Essa edição só foi possível graças ao esforço dos responsáveis do Projecto Global/Local e responde aos objectivos e ao prometido em vários regulamentos do Prémio Literário. A edição acabou por ser feita pela Editora Estante sobre originais produzidos no Projecto Global/Local e com capa de José António Moreira, professor de Artes Visuais e autor dos primeiros cartazes de divulgação do Prémio em 1985 e 86.

Para além dos prémios pecuniários, esta publicação constitui seguramente o melhor prémio e incentivo aos jovens autores das escolas secundárias e superiores de Aveiro. As obras encontram-se à venda nas livrarias e constituem, com certeza, boa leitura para os jovens (e não só) e bom material para estudiosos da produção literária juvenil.

Na sessão de lançamento, pouco concorrida, estiveram presentes algumas individualidades ligadas à escola e à educação: o Dr. José Luís Malaquias, Coordenador da Área Educativa, acompanhado de outros membros da CAE e Dr.ª Fernanda Neves, da Inspecção Geral de Ensino, representando instâncias do Ministério. Também esteve presente o Presidente da Associação de Pais.

O Presidente do Conselho Directivo, António Luís Matos dos Santos, usou da palavra para se referir à iniciativa e ao Prémio e Ana Paula Cabrita Tribuzi, professora de Português e membro de vários júris do Prémio, apresentou a obra. (A.M. – Redacção)

 

O "Prémio Literário de José Estêvão" é uma aventura pela cidade de Aveiro à descoberta das suas gentes e tradições. Em prosa ou em verso, o retrato compõe-se de quadros sugestivos, captados em momentos de orgulho épico, fantasia lírica ou exaltação dramática.

A alma da cidade desperta no altruísmo de sabor lendário de Santa Joana Princesa e postura exemplar do patrono do prémio literário, homenageada no epitáfio de Feliciano Castilho, gravado na obra:

«Viúvas a eloquência, a Pátria e a Esposa, / choram a alma egrégia aos céus volvida. / Ganhou a eternidade em curta vida. / Aqui, de amar, seu coração repousa.»

Também o coração simples do povo palpita com muita força. Num postal do seu quotidiano, por um instinto secular, a pele tisnada dos homens do mar desafia cada batida das ondas. E em cada despedida, as mulheres murmuram preces condoídas, fustigadas pelo vento. Num texto de Rosa Maria Oliveira, cheio de sonoridades aliterantes, esta vocação salina assume mesmo um tom profético:

«Jamais deixaremos o peito desta terra / à beira-mar / Por nada trocaremos a luz dos canais / o sussurro do mar / o voo das aves marinhas / à volta das pirâmides femininas. / Jamais deixaremos o peito desta terra / prometida: / Ora dócil ora amarga / descobrimos o oráculo de Jamais / na brisa salgada.»

A criatividade do povo aveirense molda-se, por vezes, de uma feição telúrica: a partir do pó, entre as mãos do oleiro, e ao rubro das caldeiras. Num texto de João de Mancelos, em verso de redondilha, perfilam-se as vocações das gentes de Aveiro, numa síntese de gosto popular: / 15 /

«Vimos um pouco de tudo: / Desde a arte do moliceiro /até ao ventre bojudo / D'algum cântaro de oleiro. // E não parámos contudo, / Falámos do salineiro / E do pescador barbudo / Qu'ao mar é sempre o primeiro. // Seguiu-se o orador sisudo / A princesa e o conselheiro / Desfilaram neste Mundo / Qu'é a cidade de Aveiro.»

Aveiro é também palco de festa. Por exemplo, a entrega dos ramos e a festa de S. Gonçalinho iluminam a alma aveirense no capricho dos mordomos em romaria e no fervor do cumprimento das promessas. E a água transparece de novo nas festas do mar, nos camaroeiros e redes sob a chuva das cavacas. Esta é uma das faces da cidade que figura, de um modo muito expressivo, num trabalho em prosa de Emília Oliveira: «Aqueles homens que ontem andavam de proa, a remar ou a deitar as redes ao mar, de ceroulas pelo joelho, de peito nu e cobertos de escama, vão, no dia de festa, todos bem postos e engomados, de sapatos a reluzir, de gravata e de luvas brancas, contrastando com fato preto que envergam, envolvidos na opa de seda com o cordão e borlas de ouro. Os andores são verdadeiros exemplos de ornato, irrepreensivelmente belos, tendo cada coisa o seu lugar próprio!»

Um nota constante da obra é o sentimento de nostalgia que se transmite em muitos títulos desta compilação: "Requiem pela memória de ti", "Doces recordações", "Recordar é viver", "Reviver", "A ria que outrora sorria", "Oh, Doce Ria, o que é que te aconteceu?" e "Apelo ao tempo que passa". Perpassa o medo que a cidade perca a sua alma e as tradições se afundem no lodo ou se estilhacem no esquecimento.

Há um trago amargo no desfecho de vários trabalhos como o de Cláudia Santos: «Hoje o marnoto procura uma profissão mais bem remunerada e menos incerta; as marinhas, cada dia mais ao abandono, são invadidas por vegetação aquática e o lodo alastra... Os moliceiros escasseiam e maranha verde e sedosa asfixia a ria... A draga substitui o moliceiro. / Painéis de azulejo feitos por artesãos aveirenses forram paredes da cidade, embelezando-a com figuras simples das gentes aveirenses. Marnotos, arrais, peixeiras, apanhadores de moliço, pescadores artesanais e tricanas preenchem lacunas e tornam-se memorandos.»

No fim do primeiro volume da colectânea, esta mesma realidade é denunciada num conto de Teresa Sofia Pereira. É a história de um velho pescador que vivia num barco com o sugestivo nome de Ulisses. Esta figura marcou a infância de uma criança, inspirando nela o fascínio pelo mar, colorido pelas façanhas do aventureiro de "Odisseia". Com a morte do dono, o barco Ulisses esperou também a sua hora, junto ao cais, gasto pelo mar, num tempo que também já não lhe pertencia. A mensagem do conto é esclarecida nestas palavras: «A morte do Velho (...) era um sinal oculto do princípio da extinção de uma raça de homens, que dentro de poucos anos só poderão ser vistos em gravuras, ou eternizados em histórias que as crianças ouvirão dos mais velhos, mas que lhes soarão tão fantásticas quanto as epopeias dos heróis antigos. / O barco-casa era já apenas um vulto longínquo, em breve juntar-se-ia ao Velho e tudo estaria terminado, ou tudo iria começar; atrás de mim estava a cidade, onde o Tempo, impiedoso com o passado e com as coisas do Homem, insiste em continuar o seu desgaste e em construir um novo Mundo.»

Os quadros sugeridos são apenas alguns pontos de paragem de um itinerário muito mais vasto que promete uma visão polifacetada da cidade de Aveiro, à descoberta dos leitores.

Aveiro, 18 de Dezembro de 1991

Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi.

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

Página anterior Índice de conteúdos Página seguinte

14-15