O
"Prémio Literário de José Estêvão" é uma aventura pela cidade de Aveiro
à descoberta das suas gentes e tradições. Em prosa ou em verso, o
retrato compõe-se de quadros sugestivos, captados em momentos de orgulho
épico, fantasia lírica ou exaltação dramática.
A alma da cidade desperta no altruísmo de sabor lendário
de Santa Joana Princesa e postura exemplar do patrono do prémio
literário, homenageada no epitáfio de Feliciano Castilho, gravado na
obra:
«Viúvas a eloquência, a Pátria e a Esposa, / choram a
alma egrégia aos céus volvida. / Ganhou a eternidade em curta vida. /
Aqui, de amar, seu coração repousa.»
Também o coração simples do povo palpita com muita força.
Num postal do seu quotidiano, por um instinto secular, a pele tisnada
dos homens do mar desafia cada batida das ondas. E em cada despedida, as
mulheres murmuram preces condoídas, fustigadas pelo vento. Num texto de
Rosa Maria Oliveira, cheio de sonoridades aliterantes, esta vocação
salina assume mesmo um tom profético:
«Jamais deixaremos o peito desta terra / à beira-mar /
Por nada trocaremos a luz dos canais / o sussurro do mar / o voo das
aves marinhas / à volta das pirâmides femininas. / Jamais deixaremos o
peito desta terra / prometida: / Ora dócil ora amarga / descobrimos o
oráculo de Jamais / na brisa salgada.»
A criatividade do povo aveirense molda-se, por vezes, de
uma feição telúrica: a partir do pó, entre as mãos do oleiro, e ao rubro
das caldeiras. Num texto de João de Mancelos, em verso de redondilha,
perfilam-se as vocações das gentes de Aveiro, numa síntese de gosto
popular:
/ 15 /
«Vimos um pouco de tudo: / Desde a arte do moliceiro
/até ao ventre bojudo / D'algum cântaro de oleiro. // E não parámos
contudo, / Falámos do salineiro / E do pescador barbudo / Qu'ao mar é
sempre o primeiro. // Seguiu-se o orador sisudo / A princesa e o
conselheiro / Desfilaram neste Mundo / Qu'é a cidade de Aveiro.»
Aveiro é também palco de festa. Por exemplo, a entrega
dos ramos e a festa de S. Gonçalinho iluminam a alma aveirense no
capricho dos mordomos em romaria e no fervor do cumprimento das
promessas. E a água transparece de novo nas festas do mar, nos
camaroeiros e redes sob a chuva das cavacas. Esta é uma das faces da
cidade que figura, de um modo muito expressivo, num trabalho em prosa de
Emília Oliveira: «Aqueles homens que ontem andavam de proa, a remar
ou a deitar as redes ao mar, de ceroulas pelo joelho, de peito nu e
cobertos de escama, vão, no dia de festa, todos bem postos e engomados,
de sapatos a reluzir, de gravata e de luvas brancas, contrastando com
fato preto que envergam, envolvidos na opa de seda com o cordão e borlas
de ouro. Os andores são verdadeiros exemplos de ornato,
irrepreensivelmente belos, tendo cada coisa o seu lugar próprio!»
Um nota constante da obra é o sentimento de nostalgia que
se transmite em muitos títulos desta compilação: "Requiem pela memória
de ti", "Doces recordações", "Recordar é viver", "Reviver", "A ria que
outrora sorria", "Oh, Doce Ria, o que é que te aconteceu?" e "Apelo ao
tempo que passa". Perpassa o medo que a cidade perca a sua alma e as
tradições se afundem no lodo ou se estilhacem no esquecimento.
Há um trago amargo no desfecho de vários trabalhos como o
de Cláudia Santos: «Hoje o marnoto procura uma profissão mais bem
remunerada e menos incerta; as marinhas, cada dia mais ao abandono, são
invadidas por vegetação aquática e o lodo alastra... Os moliceiros
escasseiam e maranha verde e sedosa asfixia a ria... A draga substitui o
moliceiro. / Painéis de azulejo feitos por artesãos aveirenses forram
paredes da cidade, embelezando-a com figuras simples das gentes
aveirenses. Marnotos, arrais, peixeiras, apanhadores de moliço,
pescadores artesanais e tricanas preenchem lacunas e tornam-se
memorandos.»
No fim do primeiro volume da colectânea, esta mesma
realidade é denunciada num conto de Teresa Sofia Pereira. É a história
de um velho pescador que vivia num barco com o sugestivo nome de
Ulisses. Esta figura marcou a infância de uma criança, inspirando nela o
fascínio pelo mar, colorido pelas façanhas do aventureiro de "Odisseia".
Com a morte do dono, o barco Ulisses esperou também a sua hora, junto ao
cais, gasto pelo mar, num tempo que também já não lhe pertencia. A
mensagem do conto é esclarecida nestas palavras: «A morte do Velho
(...) era um sinal oculto do princípio da extinção de uma raça de
homens, que dentro de poucos anos só poderão ser vistos em
gravuras, ou eternizados em histórias que as crianças ouvirão dos mais
velhos, mas que lhes soarão tão fantásticas quanto as
epopeias dos heróis antigos. / O barco-casa era já apenas um
vulto longínquo, em breve juntar-se-ia
ao Velho e tudo estaria terminado, ou tudo iria começar; atrás de mim
estava a cidade, onde o Tempo, impiedoso com o passado e com as coisas
do Homem, insiste em continuar o seu desgaste e em construir um novo
Mundo.»
Os quadros sugeridos são apenas alguns pontos de paragem
de um itinerário muito mais vasto que promete uma visão polifacetada da
cidade de Aveiro, à descoberta dos leitores.
Aveiro, 18 de Dezembro de 1991
Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi. |