A perplexidade é grande ao abordar se a questão de uma
reforma de unidade ortográfica não realmente proposta em termos de
unidade e quando se sabe que o Brasil nunca cumpriu, além do mais, as
reformas ortográficas que assinou. A perplexidade é grande, só
semelhante à de João de Araújo Correia em 1956, quando abordava temática
afim, sob o título "Nós e o Brasil", em apontamento que recolheu,
cerca de seis anos mais tarde, em Manta de Farrapos. Aí escreve João de
Araújo de Correia:
«Toco no Brasil com um dedo molhado para não o magoar.
Toco-lhe de olhos abertos para o amar como devo, isto é, vendo-o bem
visto em suas grandezas e seus defeitos. (...) Tem provado o Brasil,
desde 1911, que lhe é preferível morrer a concordar connosco em
Ortografia. Nós, pelo nosso lado, temo-nos afligido, desde 1911, com
esta discordância. Temos feito esforços para a remover. Mas tem sido o
mesmo que nada. O Brasil não quer. É caso para dizer, sem fazer troça:
não quer mesmo.»
Nenhum sistema ortográfico é perene e haveria, haverá
necessidade, – haverá idêntica disponibilidade dos espanhóis, franceses
e ingleses para os povos das suas línguas?, – de unificar a Ortografia
Portuguesa, em Portugal, no Brasil e nos PALOP. Mas poderá fazer-se isso
a todo o preço? Com profunda, gritante e autoritária falta de
transparência e/ou com acocorada submissão?
Todos nós lemos ou ouvimos que, em seu tempo, o
brasileiro Samey nomeou uma comissão especial que visitaria os países
africanos de Língua Portuguesa e Portugal, a fim de tratar das questões
relacionadas com a unificação ortográfica do idioma português. Depois,
realizar-se-ia um encontro, no Rio de Janeiro, entre Portugal, os cinco
países africanos de Língua Portuguesa e o Brasil. O Prof. Celso Cunha,
por exemplo, propunha um sistema gráfico uniforme nos países
falantes do Português, e outros, cá, por fás ou por nefas, seguiram
Celso Cunha. Aparentemente, tudo certo. Aparentemente tudo certo,
prouvera sido mantido o desideratum da unidade do sistema.
O Presidente Samey teria a intenção de contribuir para a
unidade ortográfica da Língua Portuguesa (e dos povos que a utilizam).
Mas, nestas matérias, que ultrapassam a Glossemática, têm que ver com
cenemas mas também com pleremas, com a Ortografia, a Ortofonia, a
Etimologia, etc., – por vezes conflituantes ou, pelo menos, dificilmente
redutíveis à unidade, – tudo é muito difícil de contornar, e não pode
estar sujeito a interesses, a teorias particulares, a ânsias
irredentistas ou pessoais de domínio, a círculos, a capelinhas, muito
menos a politiquices, mesmo que estas vistam a capa de grandes desígnios
patrióticos, a capa de grandes fins: nem sempre estes justificam os
meios, (e ainda é tempo de arrepiar caminho).
É cedo, é muito cedo, demasiado cedo, depois da reforma
de quarenta e cinco, – aliás não observada no Brasil, apenas observada
por Portugal e pelos países africanos em vertência, primeiro por razões
consabidas e, depois, de moto próprio, – para que se tentem mais do que
debates: os países africanos de Língua Portuguesa deparam-se com vários,
graves problemas de desenvolvimento que absorvem as energias dos seus
mais credenciados representantes em todos os sectores; o Brasil não
está, mesmo o Brasil intelectual, não está todo de acordo com o que se
propõem, nem fala ou escreve, todo ele, a mesma Língua nem a mesma
linguagem; Portugal estaria a violentar-se em pura perda, na medida em
que abdicaria de diacríticos com função fónica e/ou etimológica, em
favor do que lhe quer impor certo Brasil, quando há diferenças
acentuadas de pronúncia e de grafia no mesmo Brasil, até na simples
prolação e escrita da palavras, consoante falam ou escrevem, por
exemplo, juristas e professores, referindo-se respectivamente a matérias
jurídicas de facto ou a factos que não são propriamente vestuário.
Parenteticamente, diga-se que estamos a tempo um país não
sancionar, e há que pensar e repensar: uma reforma de unidade
ortográfica não deve fazer-se apenas por diplomas legais; depois, não
há, na proposta que visa 1944, – abortada a primeira fase e retomada
politicamente uma segunda, – não há,
/
19 / nessa proposta, uma real unidade
ortográfica, e, por outro lado, a haver imposições unilaterais, nós
estamos em Portugal, o Português da CEE é o de Portugal, um português
que os PALOP e o Brasil entendem, e, pelo visado para quarenta e quatro,
no Brasil as excepções continuarão excepções, enquanto em
Portugal e, em princípio, nos PALOP, com abdicação da etimologia e sem
quase interesse algum para a aprendizagem da leitura, teremos
exceções. Parenteticamente ainda, diga-se que há muita boa gente, –
tanta!, – que ainda não assimilou o mini-acordo do início dos anos
setenta que contempla a grafia dos advérbios de modo em –mente derivados
de adjectivos e dos diminutivos em –zinho e –zito. E, só
cá por coisas em que condições se assimilou, em Portugal, o acordo
(subserviente ao Brasil) de 1967, a propósito da Nomenclatura Gramatical
Portuguesa?
REFORMA DE UNIDADE SÓ A LONGO PRAZO
A pensar-se na reforma ortográfica, – atentória da
unidade e não sua fautora – por governantes (embora para ratificação dos
Parlamentos), estaríamos a pensar numa reforma a partir do telhado,
explique-se, – uma reforma a começar por cima, quando os políticos e os
universitários e/ou de formação universitária teriam de ouvir ou
deveriam ouvir muita gente. Seria preciso, antes de uma revisão ou
reforma, e a longo prazo:
1 – Elaborar inquéritos e pedir contribuições/sugestões
aos professores do Ensino Primário (digamos Primário, para
sermos exactos), sobre a dificuldade dos alunos na aprendizagem da
Ortografia, por exemplo sobre a necessidade ou não necessidade de
diferenciações prosódicas, ao nível da escrita, com consequências na
leitura e prolação, ou derivadas destas;
2 – Elaborar inquéritos e pedir contribuições/sugestões
aos Professores do Ciclo Preparatório e do Ensino Secundário, tal como
aos do Primário, – todos profissionalizados e com um mínimo de tempo de
exercício, sobre as questões, e outras, versadas em 1., e sobre as que
poderão pôr-se nos respectivos níveis de ensino;
3 – Consultar Escritores e Jornalistas por meio dos seus
órgãos próprios e/ou através das instituições oficiais, como Ministérios
da Cultura ou as que exerçam idênticas funções nos diversos países;
4 – Repensar todas as sugestões e formular hipóteses de
solução, tendo em conta, – o máximo possível, – os denominadores comuns
e reenviando aos consultados as hipóteses de solução, para reauscultar
as suas opiniões.
Então, e por aí, o grande encontro de todos os países em
causa. Então, sim, pois só então se poderia dizer, dirá que a reforma
não começou pelo telhado, que não foi apenas uma questão de
especiosidade e de caprichos.
Leio no Prof. Morais-Barbosa, meu antigo colega de
Faculdade:
«Como se sabe, a comunidade linguística portuguesa
encontra-se geograficamente dispersa e não é culturalmente homogénea, e
isso explica que nela se registem variedades (...) Deixando de parte os
crioulos, como deve fazer-se por se tratar de línguas independentes, as
variedades do Português no Continente, ilhas Adjacentes, em África, no
Oriente e no Brasil não são no entanto de natureza a comprometer a
unidade essencial da língua, isto é, a intercompreensão de todos os que
pertencem à comunidade linguística portuguesa (...) Quando se pensa na
batalha de prestígio que tanta tinta já fez correr entre as variedades
de Lisboa e Coimbra, cada uma com seus defensores de ser o melhor
português, – quando na realidade não há uma só diferença fundamental
entre os dois usos, mas apenas, no plano fónico, algumas variantes na
realização de certos fonemas, que muitas vezes passam despercebidas e
que quase todas se atestam em usos lisboetas, – não surpreende que, no
Brasil e em Portugal, pequenos intelectuais se guerreiem, proclamando os
de lá a existência da língua brasileira, distinta da portuguesa, e os de
cá uma distinção entre a nobreza da língua portuguesa e a vulgaridade do
dialecto brasileiro, – e sabe-se como o termo dialecto, que em
linguística se emprega com perfeita objectividade, se reveste então de
matizes terrivelmente pejorativos.»
É o prof. Morais-Barbosa quem cita, a propósito, e em
nota de fundo de página, os depoimentos dos Profs Serafim da Silva Neto,
Silva Elia e do agora tão pressuroso Celso Cunha, – depoimentos de 1960,
concordantes com o seu ponto de vista. Aqui ao lado, certo
borla-e-capelo quererá insistir em distinções entre Língua, prolação,
escrita, etc., etc., mas como, mutatis mutandis, todos nos
estamos a entender e se têm em conta divergências fónicas e ortográficas
na mesma Língua e uma proposta que
/
20 / não unifica nem a Ortografia nem a
Língua, antes corrompe esta, nem vale a pena ligar, ou ligar-lhe tanto
como lhe ligou, – embora com ligeira hesitação perante o catedratismo
saloio, – o Esteves Cardoso, num encontro na RTP.
Nós e o Brasil
Antes de mais nada, seria bom que os políticos, os
governantes dos países de Língua Portuguesa, enfim, toda a gente lesse,
em Manta de Farrapos, "Nós e o Brasil", de João Araújo Correia.
Que os empenhados, num lado, noutro, nos vários lados, reparassem na
maneira como foi posta de parte no Brasil, a reforma de 1911, a que
estão ligados Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Cândido de
Figueiredo, Borges Grainha, Gonçalves Viana, José Joaquim Nunes; na
maneira como foi posto de lado, pelo Brasil, o Acordo Ortográfico
Luso-Brasileiro de 10 de Agosto de 1945, aprovado no Brasil pelo
Decreto-Lei de 5 de Dezembro e em Portugal pelo decreto 35 228, de 8 de
Dezembro do mesmo ano. Bom seria que fosse lido Ribeiro Couto, no seu
prefácio ao Tratado de Ortografia do Prof. Doutor Rebelo
Gonçalves. De outro modo, não. Não e renão. Até porque nada adianta
impor nas escolas o que se não poderá impor na rua.
Mas passemos a João de Araújo Correia:
«Pensam alguns brasileiros bons em nova tentativa de
acordo ortográfico. Mais uma reforma? Deus nos acuda. Cada reforma
ortográfica é uma convulsão no idioma. Admite-se de século a século. De
oito em oito dias, é demais... Antes brincar com o fogo ou com bombas
atómicas.
"Não há reforma ortográfica tão subtil, que possa
satisfazer qualquer inteligência. Todas têm defeitos. São obras humanas,
eivadas de paixão, tocadas de bairrismos, não podem servir todos os
intelectos. A de 1911, para mim, é a menos defeituosa. As seguintes,
querendo corrigi-la, pioraram-na, principalmente a da mãi. A de
1945... Portugal perde nela, ainda hoje, o seu carácter. Mas, Deus a
conserve. Outra que venha será porventura a mortalha da Língua
Portuguesa. Deus tenha de sua mão a de 1945. Mal por mal, antes Pombal.
Considero insolúvel o problema ortográfico
luso-brasileiro. Se assim o considero, faço votos por que ninguém lhe
toque. Se lhe tocar, agrava-o. Continuem os Brasileiros com as suas
seleções, que nós nos remediaremos com as nossas selecções. O c
não se pronuncia, mas abre o segundo e. Precisamos dessa relíquia
do Latim de Horácio. Se, por qualquer motivo glótico, há quem emudeça o
c, a escrita não tem culpa. Em Portugal, há lisboetas que
pronunciam retite. No entanto, escrevem rectite, dando a
quem os lê um grande exemplo de disciplina gráfica. Ponham nele os olhos
os Brasileiros. Se os quiserem pôr... Se não quiserem, paciência.
(...) Mas, aqui para nós... o Brasil não tem culpa. Quem
manda no Brasil não é o Brasil. Quem manda no Brasil é o Bràsiu...
O Brasil cultiva, com mais esmero do que nós, o idioma comum. É ver como
redigem mensagens o Dr. Kubitschek de Oliveira e outros vultos. O Brasil
não tem culpa. O Brasil ama Portugal como pátria velha. O Bràsiu
é que não o deixa grafar portuguesmente o Português. É pena... Mas, que
lhe havemos nós de fazer? Escrever Seleções? Prepararmo-nos para
escrever Òvidô? Antes morte que tal sorte.»
JOSÉ DE MELO |