Escola Secundária José Estêvão, n.º 4, Jul. - Set. de 1991

A perplexidade é grande ao abordar se a questão de uma reforma de unidade ortográfica não realmente proposta em termos de unidade e quando se sabe que o Brasil nunca cumpriu, além do mais, as reformas ortográficas que assinou. A perplexidade é grande, só semelhante à de João de Araújo Correia em 1956, quando abordava temática afim, sob o título "Nós e o Brasil", em apontamento que recolheu, cerca de seis anos mais tarde, em Manta de Farrapos. Aí escreve João de Araújo de Correia:

«Toco no Brasil com um dedo molhado para não o magoar. Toco-lhe de olhos abertos para o amar como devo, isto é, vendo-o bem visto em suas grandezas e seus defeitos. (...) Tem provado o Brasil, desde 1911, que lhe é preferível morrer a concordar connosco em Ortografia. Nós, pelo nosso lado, temo-nos afligido, desde 1911, com esta discordância. Temos feito esforços para a remover. Mas tem sido o mesmo que nada. O Brasil não quer. É caso para dizer, sem fazer troça: não quer mesmo.»

Nenhum sistema ortográfico é perene e haveria, haverá necessidade, – haverá idêntica disponibilidade dos espanhóis, franceses e ingleses para os povos das suas línguas?, – de unificar a Ortografia Portuguesa, em Portugal, no Brasil e nos PALOP. Mas poderá fazer-se isso a todo o preço? Com profunda, gritante e autoritária falta de transparência e/ou com acocorada submissão?

Todos nós lemos ou ouvimos que, em seu tempo, o brasileiro Samey nomeou uma comissão especial que visitaria os países africanos de Língua Portuguesa e Portugal, a fim de tratar das questões relacionadas com a unificação ortográfica do idioma português. Depois, realizar-se-ia um encontro, no Rio de Janeiro, entre Portugal, os cinco países africanos de Língua Portuguesa e o Brasil. O Prof. Celso Cunha, por exemplo, propunha um sistema gráfico uniforme nos países falantes do Português, e outros, cá, por fás ou por nefas, seguiram Celso Cunha. Aparentemente, tudo certo. Aparentemente tudo certo, prouvera sido mantido o desideratum da unidade do sistema.

O Presidente Samey teria a intenção de contribuir para a unidade ortográfica da Língua Portuguesa (e dos povos que a utilizam). Mas, nestas matérias, que ultrapassam a Glossemática, têm que ver com cenemas mas também com pleremas, com a Ortografia, a Ortofonia, a Etimologia, etc., – por vezes conflituantes ou, pelo menos, dificilmente redutíveis à unidade, – tudo é muito difícil de contornar, e não pode estar sujeito a interesses, a teorias particulares, a ânsias irredentistas ou pessoais de domínio, a círculos, a capelinhas, muito menos a politiquices, mesmo que estas vistam a capa de grandes desígnios patrióticos, a capa de grandes fins: nem sempre estes justificam os meios, (e ainda é tempo de arrepiar caminho).

É cedo, é muito cedo, demasiado cedo, depois da reforma de quarenta e cinco, – aliás não observada no Brasil, apenas observada por Portugal e pelos países africanos em vertência, primeiro por razões consabidas e, depois, de moto próprio, – para que se tentem mais do que debates: os países africanos de Língua Portuguesa deparam-se com vários, graves problemas de desenvolvimento que absorvem as energias dos seus mais credenciados representantes em todos os sectores; o Brasil não está, mesmo o Brasil intelectual, não está todo de acordo com o que se propõem, nem fala ou escreve, todo ele, a mesma Língua nem a mesma linguagem; Portugal estaria a violentar-se em pura perda, na medida em que abdicaria de diacríticos com função fónica e/ou etimológica, em favor do que lhe quer impor certo Brasil, quando há diferenças acentuadas de pronúncia e de grafia no mesmo Brasil, até na simples prolação e escrita da palavras, consoante falam ou escrevem, por exemplo, juristas e professores, referindo-se respectivamente a matérias jurídicas de facto ou a factos que não são propriamente vestuário.

Parenteticamente, diga-se que estamos a tempo um país não sancionar, e há que pensar e repensar: uma reforma de unidade ortográfica não deve fazer-se apenas por diplomas legais; depois, não há, na proposta que visa 1944, – abortada a primeira fase e retomada politicamente uma segunda, – não há, / 19 / nessa proposta, uma real unidade ortográfica, e, por outro lado, a haver imposições unilaterais, nós estamos em Portugal, o Português da CEE é o de Portugal, um português que os PALOP e o Brasil entendem, e, pelo visado para quarenta e quatro, no Brasil as excepções continuarão excepções, enquanto em Portugal e, em princípio, nos PALOP, com abdicação da etimologia e sem quase interesse algum para a aprendizagem da leitura, teremos exceções. Parenteticamente ainda, diga-se que há muita boa gente, – tanta!, – que ainda não assimilou o mini-acordo do início dos anos setenta que contempla a grafia dos advérbios de modo em –mente derivados de adjectivos e dos diminutivos em –zinho e –zito. E, só cá por coisas em que condições se assimilou, em Portugal, o acordo (subserviente ao Brasil) de 1967, a propósito da Nomenclatura Gramatical Portuguesa?
 

REFORMA DE UNIDADE SÓ A LONGO PRAZO

A pensar-se na reforma ortográfica, – atentória da unidade e não sua fautora – por governantes (embora para ratificação dos Parlamentos), estaríamos a pensar numa reforma a partir do telhado, explique-se, – uma reforma a começar por cima, quando os políticos e os universitários e/ou de formação universitária teriam de ouvir ou deveriam ouvir muita gente. Seria preciso, antes de uma revisão ou reforma, e a longo prazo:

1 – Elaborar inquéritos e pedir contribuições/sugestões aos professores do Ensino Primário (digamos Primário, para sermos exactos), sobre a dificuldade dos alunos na aprendizagem da Ortografia, por exemplo sobre a necessidade ou não necessidade de diferenciações prosódicas, ao nível da escrita, com consequências na leitura e prolação, ou derivadas destas;

2 – Elaborar inquéritos e pedir contribuições/sugestões aos Professores do Ciclo Preparatório e do Ensino Secundário, tal como aos do Primário, – todos profissionalizados e com um mínimo de tempo de exercício, sobre as questões, e outras, versadas em 1., e sobre as que poderão pôr-se nos respectivos níveis de ensino;

3 – Consultar Escritores e Jornalistas por meio dos seus órgãos próprios e/ou através das instituições oficiais, como Ministérios da Cultura ou as que exerçam idênticas funções nos diversos países;

4 – Repensar todas as sugestões e formular hipóteses de solução, tendo em conta, – o máximo possível, – os denominadores comuns e reenviando aos consultados as hipóteses de solução, para reauscultar as suas opiniões.

Então, e por aí, o grande encontro de todos os países em causa. Então, sim, pois só então se poderia dizer, dirá que a reforma não começou pelo telhado, que não foi apenas uma questão de especiosidade e de caprichos.

Leio no Prof. Morais-Barbosa, meu antigo colega de Faculdade:

«Como se sabe, a comunidade linguística portuguesa encontra-se geograficamente dispersa e não é culturalmente homogénea, e isso explica que nela se registem variedades (...) Deixando de parte os crioulos, como deve fazer-se por se tratar de línguas independentes, as variedades do Português no Continente, ilhas Adjacentes, em África, no Oriente e no Brasil não são no entanto de natureza a comprometer a unidade essencial da língua, isto é, a intercompreensão de todos os que pertencem à comunidade linguística portuguesa (...) Quando se pensa na batalha de prestígio que tanta tinta já fez correr entre as variedades de Lisboa e Coimbra, cada uma com seus defensores de ser o melhor português, – quando na realidade não há uma só diferença fundamental entre os dois usos, mas apenas, no plano fónico, algumas variantes na realização de certos fonemas, que muitas vezes passam despercebidas e que quase todas se atestam em usos lisboetas, – não surpreende que, no Brasil e em Portugal, pequenos intelectuais se guerreiem, proclamando os de lá a existência da língua brasileira, distinta da portuguesa, e os de cá uma distinção entre a nobreza da língua portuguesa e a vulgaridade do dialecto brasileiro, – e sabe-se como o termo dialecto, que em linguística se emprega com perfeita objectividade, se reveste então de matizes terrivelmente pejorativos.»

É o prof. Morais-Barbosa quem cita, a propósito, e em nota de fundo de página, os depoimentos dos Profs Serafim da Silva Neto, Silva Elia e do agora tão pressuroso Celso Cunha, – depoimentos de 1960, concordantes com o seu ponto de vista. Aqui ao lado, certo borla-e-capelo quererá insistir em distinções entre Língua, prolação, escrita, etc., etc., mas como, mutatis mutandis, todos nos estamos a entender e se têm em conta divergências fónicas e ortográficas na mesma Língua e uma proposta que / 20 / não unifica nem a Ortografia nem a Língua, antes corrompe esta, nem vale a pena ligar, ou ligar-lhe tanto como lhe ligou, – embora com ligeira hesitação perante o catedratismo saloio, – o Esteves Cardoso, num encontro na RTP.
 

Nós e o Brasil

Antes de mais nada, seria bom que os políticos, os governantes dos países de Língua Portuguesa, enfim, toda a gente lesse, em Manta de Farrapos, "Nós e o Brasil", de João Araújo Correia. Que os empenhados, num lado, noutro, nos vários lados, reparassem na maneira como foi posta de parte no Brasil, a reforma de 1911, a que estão ligados Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo, Borges Grainha, Gonçalves Viana, José Joaquim Nunes; na maneira como foi posto de lado, pelo Brasil, o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 10 de Agosto de 1945, aprovado no Brasil pelo Decreto-Lei de 5 de Dezembro e em Portugal pelo decreto 35 228, de 8 de Dezembro do mesmo ano. Bom seria que fosse lido Ribeiro Couto, no seu prefácio ao Tratado de Ortografia do Prof. Doutor Rebelo Gonçalves. De outro modo, não. Não e renão. Até porque nada adianta impor nas escolas o que se não poderá impor na rua.

Mas passemos a João de Araújo Correia:

«Pensam alguns brasileiros bons em nova tentativa de acordo ortográfico. Mais uma reforma? Deus nos acuda. Cada reforma ortográfica é uma convulsão no idioma. Admite-se de século a século. De oito em oito dias, é demais... Antes brincar com o fogo ou com bombas atómicas.

"Não há reforma ortográfica tão subtil, que possa satisfazer qualquer inteligência. Todas têm defeitos. São obras humanas, eivadas de paixão, tocadas de bairrismos, não podem servir todos os intelectos. A de 1911, para mim, é a menos defeituosa. As seguintes, querendo corrigi-la, pioraram-na, principalmente a da mãi. A de 1945... Portugal perde nela, ainda hoje, o seu carácter. Mas, Deus a conserve. Outra que venha será porventura a mortalha da Língua Portuguesa. Deus tenha de sua mão a de 1945. Mal por mal, antes Pombal.

Considero insolúvel o problema ortográfico luso-brasileiro. Se assim o considero, faço votos por que ninguém lhe toque. Se lhe tocar, agrava-o. Continuem os Brasileiros com as suas seleções, que nós nos remediaremos com as nossas selecções. O c não se pronuncia, mas abre o segundo e. Precisamos dessa relíquia do Latim de Horácio. Se, por qualquer motivo glótico, há quem emudeça o c, a escrita não tem culpa. Em Portugal, há lisboetas que pronunciam retite. No entanto, escrevem rectite, dando a quem os lê um grande exemplo de disciplina gráfica. Ponham nele os olhos os Brasileiros. Se os quiserem pôr... Se não quiserem, paciência.

(...) Mas, aqui para nós... o Brasil não tem culpa. Quem manda no Brasil não é o Brasil. Quem manda no Brasil é o Bràsiu... O Brasil cultiva, com mais esmero do que nós, o idioma comum. É ver como redigem mensagens o Dr. Kubitschek de Oliveira e outros vultos. O Brasil não tem culpa. O Brasil ama Portugal como pátria velha. O Bràsiu é que não o deixa grafar portuguesmente o Português. É pena... Mas, que lhe havemos nós de fazer? Escrever Seleções? Prepararmo-nos para escrever Òvidô? Antes morte que tal sorte.»

JOSÉ DE MELO

Aliás, Escola Secundária José Estêvão

 

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