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Sob o olhar
de Eça de Queirós |
Episódios da vida urbana
Como convém a uma boa turma da nossa tão cosmopolita e moderna
Pátria, a concentração, à entrada do Bar, demorou a acontecer. E
como todos os bons portuguesinhos, eles partiram para a sua
visita à cidade, no mínimo, uns vinte minutos atrasados.
Era uma manhã agradável de Sexta-feira e esta
turma de Humanidades propunha-se deixar as interrogações e
sonetos de Antero, para iniciar o dia com uma caminhada pela
cidade. Tal facto tornava-se digno de registo e a ocasião não se
prestava a menos! Era afinal o "Dia Europeu sem Carros”.
– Um apelo à participação activa de todos os
cidadãos urbanos para deixarem a comodidade dos seus veículos
particulares, com ar condicionado e, em vez disso, fazerem as
suas deslocações diárias em autocarros, juntamente com uma pilha
de personagens surreais e realmente fantásticas, que teimam em
transportar sacos de compras e objectos malucos, insistindo em
que o desodorizante é ainda um cosmético verdadeiramente
dispensável.
Mas o insólito instalou-se mesmo antes de
desbravarem caminho na selva urbana.
– «És o meu papá! Papá, gosto tanto de ti...»
Era a voz castiça de um miúdo vivaço, de ar
reguila, cabelo curtinho e da cor do mel, olhos cativantes,
dentinhos de leite desalinhados e roupa descuidada que decidira
engraçar com o Ricardo que, para pai, ainda lhe falta idade,
sobretudo maturidade.
A risota generalizou-se e foi a custo que esta
criança, aparentemente órfã ou com jeito para a comédia, decidiu
ir brincar para outro sítio. Que alívio para o já corado
Ricardo! Coitado! Ainda ontem tinha ido ver o "Tarzan" ao cinema
e hoje já lhe chamavam pai...
Enfim, era tempo de se porem a caminho.
Sobre a cidade pairava uma calma aparente que, ao
longo das ruas, se tornava cada vez menos aparente, mais
inexistente.
No meio dos pedestres, passeavam-se uma ou outra
bicicleta e até o urban game decidiu sair da
clandestinidade e aproveitar as ruas desertas para os skaters
imporem o seu domínio entre manobras e quedas aparatosas.
Subitamente, a avenida recebia-os – e que
admirável vista! – a sinfonia das buzinas tinha dado lugar à
animação de rua, e o silêncio era apenas convidado a dançar pela
música que ecoava num palco de cimento, onde os bailarinos
habituais tinham agora ficado fora de cena.
Vislumbrava-se pouca gente, talvez porque muitos,
receando o grande apocalipse que seria a civilização, sem a
tecnologia francesa dos Peugeot ou nipónica dos
Mitsubishi, tinham decidido
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juntar o útil ao agradável, que é como quem diz, ficar em casa e
auto-decretar o «Dia Europeu sem Carros» como o «Dia Nacional
sem Trabalho»!
Todavia, nem todos tinham decidido simplesmente
desligar o telemóvel e ir passear descansadamente para a
província; aqui e acolá juntavam-se os grupos da terceira idade
que, ao fazerem o seu habitual passeio matinal, se confrontavam
com mais um “fenómeno" a dominar os temas de conversa. Assim
seria possível ouvir o sr. Manuel comentar as coisas realmente
mudarem e no tempo dele, não haver nada daquilo...
Contudo, as modernices do ambiente pareciam
agradar a alguns. E que cómico era ver passar os mais distintos
executivos, de fatinho engomado e gravatinha ao vento,
desenferrujando as pernas numa buga para chegar a horas
ao emprego! O luxo dos carros a gás não estava ao alcance de
todos e, como tal, permaneciam estacionados ao lado da
Biblioteca Municipal, onde também os alunos fizeram uma paragem
para consultar o programa dos eventos.
As Marias e as Idalinas passeavam, ora vaidosas,
sentindo-se o centro das atenções pela avenida deserta, ora
muito apressadas, cumprimentando as pessoas alto, como fazem
habitualmente parecendo não notar a ausência dos carros. As
Marias e as Idalinas andam sempre de bata, porque são donas de
mercearias, empregadas de pastelarias, peixarias, talhos ou
funcionárias das lavandarias e cabeleireiros. Cruzavam-se com
outro espécime da nossa sociedade: as tias. Estas andavam de
fatinho Rodier cor-de-rosa, com lenços italianos que o
marido trouxera quando visitara o país em negócios, falavam com
a boca quase fechada e diziam coisas inteligentíssimas em frases
meio histéricas, meio abestalhadas, que terminavam sempre com um
"tá a ver?". Achavam o dia "chique a valer" mas não tinham o bom
senso de deixar as carteiras e sapatos de pele em casa e
intoxicavam o ambiente com os cosméticos caríssimos que usavam e
os CFC's que libertavam todos os dias para a atmosfera a fim de
manterem o cabelo devidamente armado.
Ao Rossio, que se fazia tarde!
À medida que a manhã ia avançando, a confusão nas
ruas e a adesão ao dia fora de portas aumentava, gerando-se
mesmo filas de pessoas e buzinadelas de velhas relíquias do
ciclismo do século passado num congestionamento humano só
comparado com a festa de S. Gonçalinho há vinte anos ou o
concerto dos da Weasel no Enterro do ano passado.
A coisa estava internacional e englobava todas as
idades. Era vê-los: os pequenitos dos Infantários e Escolas
Primárias, de bibes aos quadradinhos e chapéus iguais, que, de
mãos dadas e com cartazes apelativos, se manifestavam a favor do
Ambiente, cantando canções alusivas. Os ilustres avôzinhos
optavam por passar o dia de uma maneira mais descansada: afinal
a idade já não permitia grande cantoria e sempre era mais
agradável sentar-se na lancha e ir dar um passeio pela ria.
– "Yeah, Portugal is nice" – dizia uma senhora
cuja pele esbranquiçada, a fugir para o avermelhado, cabelo
louro a fugir
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para o branco, cavas em pleno final de Setembro e sandálias
abertas com meias por dentro, não enganavam: era, com toda a
certeza, ainda uma estrangeira a aproveitar os últimos raios de
sol do nosso país e fugindo dos primeiros ventos nórdicos. E,
diga-se de passagem, não tinha sido a única a ter essa ideia.
Como tal, Aveiro transformara-se numa autêntica República das
Bananas, onde não faltavam inclusivamente as/os "bananas"!
E para a salada de fruta ficar completa: os
condutores dos autocarros pediram à patroa a gravata do Domingo
e trouxeram o pente no bolso de trás, só para o caso de a TV
aparecer com alguma jornalista esganiçada a querer saber o
orgulho que era ser condutor de autocarros, preparando-se estes
para tirar da carteira, de pele genuína made in Taiwan,
as fotos de quando tiraram a carta e já agora, os retratinhos da
Cátia Rute e Vanessa Micaela na 1.ª comunhão. Afinal, não se
tinham enganado. Eles tinham também chegado finalmente. Flashes
e cliques, por entre câmaras e objectivas, com mais ou menos
impacto, lá estavam ao longo da ria, tentando guardar para a
posteridade o modo como Aveiro se estava a dar com os ténis e o
fato de treino. O menu era diversificado: desde os repórteres
regionais de papel e caneta, aos senhores da rádio com os seus
gravadores, passando pela elite dos média, consigo só trazem um
microfone e um camaraman e normalmente até têm bom
aspecto.
O senhor condutor dos autocarros pára mesmo ao
lado da louraça da televisão e esboça o seu melhor sorriso
(aquele em que só se notam três cáries em estado avançado e uma
falta de dentes) mas: "Faxavori, vai para Eixo?" tinha de abalar
que já se fazia tarde. À medida que os autocarros apanhavam o
seu rumo, os helicópteros faziam voos meios floreados no céu,
procurando planos aéreos favoráveis da nossa pequena Veneza em
pleno Carnaval de Setembro.
Mas o espírito aventureiro e curioso, próprio dos
jovens estudantes – a geração do "desenrasca" – levava-os a
querer viver novas experiências. Rodeada de acção por todos os
lados, a própria ria queria também fazer parte desta história.
Ainda antes da rodagem do filme "Portugueses à
conquista da ria", a turma, calma e ordeiramente, na companhia
da professora de História – a anfitriã – foi visitar as
instalações da Rota da Luz, talvez para apanhar o rumo certo no
passeio de moliceiro que se aproximava.
"Luzes, câmara, acção", que é como quem diz:
embora lá dar uma voltinha de barco. Contudo, a rodagem deste
suposto documentário tranquilo começou logo por uma disputa
aguerrida pelo papel de protagonista: por um lado, a professora
Amélia na porta da Rota da Luz a gritar "Boa Viagem" e a acenar
de maneira efusiva; por outro, o senhor do moliceiro que andava
ali de graça, que isto um dia não são dias, etc., etc., e para
ajudar à festa...
– "Eu não entro nessa droga! Não tem jeito!" –
era a Manu, que, como vê demasiados filmes, ainda estava com a
paranóia do Titanic e, sem Leo di Caprio por perto, não estava
com intenções de naufrágio. Mas, depressa se lembrou da grande
cruzada dos portugueses rumo ao
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Brasil e, por isso, como já começava a dar demasiado escândalo,
lá entrou, contrariada, para aquela que se adivinhava como a
grande saga contra a tormenta e monstro marinho dos nossos dias:
a poluição da ria.
"O pior são as comportas: não estão a funcionar
em condições e assim o nível das águas não se mantém... É uma
tristeza…" –reclamava o senhor do barco com um casal que
acompanhava a turma neste passeio.
"Eu queria era que isto fizesse um pouco de
ondulação... Embora lá agitar isto..." "Quer parar, Ricardo?
Você vai apanhar quando chegar na escola!"
Entre uma e outra conversa, depois de terem
passado o Fórum sem poderem parar no Mc Donald's para comer um
sun-day e de terem ido à margem buscar uma senhora e
respectivo rebento para uma boleia até ao Rossio, a turma
parecia estar a gostar da aventura. Nesta altura, a Manu já
tinha uma companhia para tremelicar dos pés à cabeça. Claro que
não fica bem dizer que era um miúdo de quatro anos. Maldade era
já acrescentar o pormenor da cor de cabelo da brasileira mais
famosa e desejada da Escola Secundária José Estêvão.
Terminada
que estava a visita, foram então para o largo da Câmara
Municipal, cruzando-se já pelo caminho com diversas turmas das
escolas da cidade, que tinham trocado as paredes gélidas e
rabiscadas da instituição de ensino por uma cidade invadida de
pessoas e sol.
Lá encontraram muita acção: escalada, xadrez
vivo, escolas de música a actuar e o excelentíssimo Presidente
da Câmara.
Deixaram-se envolver tanto pelo ambiente que uma
hora pareceu-lhes pouco para desfrutarem de tudo o que a cidade
tinha para oferecer e, como o caminho para a escola ainda era um
pouco longo e não podiam pedir boleia...
– «Ó malta, e se não fôssemos ao resto das aulas?
Isto um dia não são dias...»
TRABALHO DE GRUPO 12.º I
Ana Rita Sá, Diana Reis, Elisa Silveira, Hugo
Ribeiro,
Manuela Escobar, Maria Manuel Azevedo, Ricardo
Dias, Sónia Santos
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