RAMALHEIRA VAZ NA ÁRVORE –
UM OLHAR
Um grupo de alunos (área de design) e de professores
deslocou-se ao Porto. Fomos ver dois consagrados (Amadeo Souza Cardoso e
Eduardo Viana) e uma promessa a cumprir-se – Ramalheira Vaz, o nosso
colega da Escola.
Dos primeiros já tudo foi dito (mais, seria demais e não
era o bastante) e já os conhecíamos. Mas do Zé Vaz só sabíamos por ouvir
dizer, da sua qualidade, mas faltava-nos olhar e ver. E ficou logo o
projecto de fazer Aveiro ver, também. A não perder. Temos direito a algo
mais que moliceiros de bilhete postal ou outros quejandos, reservados
para consumo interno e impróprios para adultos alfabetizados. As
excepções reconhecem-se e anotam-se.
O que vimos, em a" Árvore", foi uma exposição síntese de
dez anos de trabalho sério, conseguido – é dizer pouco –, em que o menos
bom foi sistematicamente eliminado: trabalho que solicita, não apenas o
olhar, mas a inteligência, em que por trás do visível se adivinha o
invisível, muita experimentação, muita destruição, muito nervo, muita
recusa, muita busca, muita força, muito querer.
Sente-se, também, a exigência do diálogo do longe com o
perto: a distância para aperceber o plano (? ou acaso? ou intuição?) de
conjunto, as grandes linhas de força; o próximo para apreender o
complexo labiríntico de geometrismos, numa teia construída camada sobre
camada, que quase pede para ser vista "à lupa". Que quase pede: "Apaguem
a luz para ver melhor. Deitem abaixo as paredes, preciso de horizonte!"
E, por trás de tudo, uma marca – Zé Vaz – um E.T., como
disse alguém. Um E.T., como "um observador em Sírius" (diria Moran), a
nos olhar e à nossa cultura e às nossas raízes, um olhar que vem de
algures, ao mesmo tempo fora e dentro do tempo e do espaço nossos,
levando-nos a penetrar noutra dimensão onde reina a luz e apetece ir
tela dentro, pelas suas camadas mais profundas, pelos corredores da
memória, numa quase quarta dimensão que, em certos momentos quase parece
obra de engenharia e é, sempre e sobretudo, espaço plástico de forte
presença, a impor-se e a impor-se-nos.
Mas, numa obra toda ela contenção, rigor, laboratório, há
que ter contenção e rigor no que dela falamos. Porque todo o empolamento
é aqui descabido, é preciso conservarmos a medida. Saber calar o que não
cabe ser dito, porque não pode exprimir-se em palavras.
E, porque
E os que "lêem" o que "escreve"
Na dor "lida" sentem bem.
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm.
O artista é um fingidor. ■
Ermelinda Campos
OUTRO OLHAR
A consolidação, enraizamento e consequente assimilação de
um novo dado cultural é tarefa árdua e por vezes intemporal. A
coisificação de um artefacto é resultante de conhecimento científico e
da praxis. É também reflexo de muito labor.
São estes os elementos que à priori todos possuímos para
assistirmos à apresentação de um conceito inédito, seja qual for a
ciência sobre a qual se constrói qualquer premissa.
Fruto de dez anos de trabalho, Ramalheira Vaz
apresentou-se na cooperativa Árvore no Porto com uma mostra de trabalhos
titulada "Em torno de um espelho do arcaico". Este título permite à
partida encontrar dados para uma breve reflexão.
Partindo apenas da representação inversa e da dependência
da luz que a superfície reflectora apresenta, assume a conotação
intrínseca das bases sobre as quais a cultura ocidental assenta –estamos
à boa maneira platónica perante imagens projectadas, sinais de um "mundo
sensível" irreal e falseado no entanto, dependente da luz, o sol,
símbolo do verdadeiro e real "mundo inteligível". Poder-se-á afirmar que
Ramalheira Vaz apresenta imagens lúcidas, individuais e enérgicas, onde
se detecta uma extrema sintonia entre a cumulação do saber e a poética
expressão do elemento plástico "luz" como dado fundamental de
visualização e racionalização do universo.
Consciente da representação num plano bidimensional,
raramente recorrendo a uma representação tridimensional, realça
energicamente formas de duas dimensões, com o seu saber fazer, a partir
da inteligente colocação de matéria e modelação da luz por subtis
transparências, para além da capacidade intuitiva da organização das
superfícies em ritmos sincrónicos, harmonizando linhas temporalmente
ordenadas e assumidas com técnica distinta a grafite, suportadas por
traço rigoroso que, pela matéria, cor e ordenação se transforma em
forma, convicta da limitação ambígua de espaço que a grade conota.
Insaciável, num só suporte Ramalheira Vaz
desenfreadamente investiu ao longo dos dez anos, mastigando imagens,
digerindo actos, propondo por fim trabalhos em cada trabalho. Assume,
consciente (ou inconscientemente?) a constante capacidade de mutação de
ideias, acto racional ou não (?), a capacidade de definir um ideário
próprio, hábitos e vivências pessoais. São também imagens em que
Ramalheira Vaz se projecta projectando um universo social onde estamos
inseridos.
A obra de Ramalheira Vaz tem a dignidade consequente de
quem se assume como veículo comunicador e responsável pela apresentação
de valores inéditos na cultura artística portuguesa, que por certo não
ficará creditada em mãos alheias. ■
Joaquim Pimenta
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