No ano de 1928 e em tarde calmosa de Agosto, quando, após o modesto
jantar do estilo e da obrigação, e com o propósito de fazer os mil
gramas, — a maneira mais rigorosa de se dizer — o quilo — como opinava o
sábio Lerop Beaulieu, lente catedrático da cadeira de «Ciência e
Legislação Financeira» na Universidade de Coimbra, em saudosíssimos
tempos, (Vide O Livro do Doutor Assis, pág. 305, pelo Dr. Alberto
Costa, ex Pad-Zé) caminhávamos pachorrentamente por uma dessas lindas
estradas, que se desenrolam ao redor da nossa pitoresca terra,
sucedeu-nos deparar, à distância, com um pequeno grupo — cinco ou seis
pessoas, que não mais — no meio do qual dois ilustres e inflamados
desconhecidos, um deles homem richarte (baixo, gordo e rijo de aspecto)
pareciam invectivar-se.
À maneira que
prosseguíamos no passeio, mais aumentava o ruído das vozes dos dois
esgrimistas, o qual ruído, num crescendo sucessivo e importuno, fazia
vibrar insistentemente os tímpanos de nossos ouvidos.
Pelas atitudes e
gestos dos oradores, previmos que violentos, muito agressivos, haviam de
ser os doestos com que os adversários se mimoseavam.
Fomos, porém,
avançando, avançando, que voltar costas ao sítio, onde cheirava a
chamusco, seria imperdoável fraqueza.
Aproximados,
finalmente, do local do ingente prélio, verificámos que, como tínhamos
suposto, os mútuos apodos traziam no bojo veneno em barda, sendo as
frases usadas no tiroteio, pelos contendores, cheias, por vezes, de
engenhosas ironias em que se disfarçavam queimantes epítetos...
Naturalmente para um e outro dos gladiadores se porem ao abrigo dos
preceitos austeros e rígidos do Código Penal.
E diga-se, em boa
verdade, que razão às carradas tinham para ser cautelosos, porque se,
outrora, quem caía sob a alçada do tal diploma, e quejandos, ficava sem
a camisa, mesmo sem a pele, nos últimos anos, assim como hoje, só as
cinzas, quando muito, se lhe aproveitam.
É que imposto de
Justiça (com J em sinal de respeito) percentagens, preparos, defesa,
guias, contas, selos, papel selado, e mais tributos, constituem, não
haja dúvida, um verdadeiro forno crematório.
Sensatas, por isso,
são todas as cautelas e toda a ponderação é pouca para evitar-se
qualquer queda nas teias emaranhadas de D. Témis.
O conselho... aí fica
e gratuito. lntelligenti pauca, mas como de gustibus et
coloribus non disputandum, cada um que pense e proceda como melhor
entender, porque sua alma, sua palma...
As injúrias e
sarcasmos que, pois, lhes afluíam aos lábios e que, a seguir, eram
despedidos copiosamente, não se apresentavam duma forma nua, aberta e
franca, mas encapuzados.
«Você é muito
honesto...»
«Não tenho
pichelingues na família...»
«Sou homem de
testa lisa...»
Etc., etc., etc.
Nestes
dares-e-tomares, era dardo sobre dardo; frecha sobre frecha; alfinetada
sobre alfinetada.
Quando passámos rente
deste
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Parlamento (vá o dito sem remoque aos nossos antigos senadores e
deputados), a descomponenda serenou, como por encanto, e merecemos a
alta distinção das cortesias de todo o agrupamento, às quais
correspondemos, como era de boa civilidade.
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Um dos Pronto-Socorros
dos Bombeiros. |
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A calma foi, todavia,
amor de pouca dura, porquanto, a breve tardar, a altercação rompeu de
novo e, posto nos encontrássemos já algo afastado do campo da batalha,
ouvimos claramente, a certa altura, esta intimação soberana, arrogante e
imperiosa:
Sabe que mais? Vá
tratar das bombas, seu bombeiro de má-morte!...
E assim, com tal
granada, terminou a ingresía, desfazendo-se o núcleo formado pelos
heróicos combatentes e circunstantes, remando cada um para seu norte.
Fatigados, sentámo-nos
à sombra de viridentes e frondosos álamos, junto de cristalina fonte,
cujas águas murmurosas, depois de caírem num pequenino reservatório, iam
serpeantes, através duma funda aIcorca, juntar-se a outras que regavam
extenso vale, onde pompeavam esmeraldinas searas que se estendiam, ao
longe, até perder de vista.
Tirado o palhinhas,
limpas as bagas de suor, que nos inundavam a fronte; aspirado, com
força, um bafejo das brisas vespertinas, que então começavam a erguer-se
lascivas, entrámos a discorrer sobre as quatro palavras, remate daquele
dichote expectorado pelo brutamontes baixo, gordo e forte para,
indubitavelmente, vexar, reduzir a menos, no seu modo de ver, o outro
antagonista que, apesar de tudo, nos parecera um alma de Deus.
Bombeiro de má-morte!
É possível, dizíamos
com os nossos botões, que assim se procure menoscabar e ferir um homem
que, unicamente por filantropia, se impôs a obrigação de prestar à
Sociedade, aos seus semelhantes, os mais valiosos serviços?
Nas horas tétricas
dos sinistros, calamidades e infortúnios, sejam de dia ou de noite, quer
luarenta e cálida, quer negra, tempestuosa e fria, não é o bombeiro quem
sem garantias algumas (entre nós, pelo menos) mas tão somente por
abnegação e de si se desapossando, deixa pressuroso o trabalho, onde
moureja para ganhar o pão quotidiano, ou o tépido leito, em que repousa
das fadigas diurnas, que lhe quebrantaram o corpo, para, exercendo
altruisticamente a mais bela, a mais divina das virtudes, ir salvar a
vida e a propriedade alheias?
Bombeiro de
má-morte!...
Oh, maldade,
estupidez e ingratidão humanas!
Assim cogitávamos,
quando, de enxada ao ombro, nos apareceu do outro lado da estrada o Zé
de Bastos, tipo de camponês possante e espadaúdo, inculto, mas, de seu
natural, inteligente e bom.
Guarde-o Deus, Sr.
Dr., disse.
Obrigado, meu amigo,
respondemos.
E, logo, desejoso de
entabular colóquio, o Zé de Bastos acrescentou:
«Que diz Vossuria
daquela zaragata de há bocado?»
Que havemos de dizer,
amigo Zé?
Que sinceramente
lamentamos que os homens se maltratem e odeiem e, sobretudo, que entre
eles haja um que ouse chamar bombeiro de má morte a quem, nos
momentos do perigo e só por devoção, por humanidade, por grandeza de
alma, de si e dos seus se esquece, para, quantas vezes, à custa de
prodigiosos esforços e através de mil riscos, arrancar à mesma Morte a
vida do seu mais inconciliável inimigo?
E repetimos-lhe as
perguntas que,
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momentos antes, a nós próprio havíamos formulado.
O Zé de Bastos,
esbugalhando muito os olhos e lançando aos ares, no final de nosso
discurso, uma estridulante gargalhada, que no fez gelar o sangue nas
veias, explicou:
— O Sr. Dr. está
enganado...
Aquele bombeiro,
não é bombeiro.
— Não é bombeiro?!...
— Não Sr., confirma o
Zé de Bastos. Eu lhe conto:
— O António da
Cristina tem um poço. Querendo reformar a bomba, pois a antiga já não
prestava, chamou o Manuel Sardão, cujo ofício é fazer bombas para os
poços, brocando pinheiros com um enorme verrumão. A obra não ficou em
modo, segundo parece, e, daí, o banzé que Vossuria e eu
presenciámos, acolá em baixo.
Ficámos,
confessemo-lo, com o nariz que nem uma pistola, mas ao mesmo tempo
satisfeitos por sabermos (embora censurando em consciência o tal dichote)
que o António da Cristina não tivera intenção de deprimir essa Falange
do Bem, os bombeiros, que muito consideramos e estimamos...
Vá lá, vá lá, que o
homem não era tão mau como nós o pintávamos. O mesmo acontece com
Satanás — o príncipe das trevas...
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Esta a nossa
modestíssima colaboração para o número comemorativo do cinquentenário da
fundação da Associação H. dos Bombeiros Voluntários de Aveiro, à qual
rendemos as nossas humildes homenagens pelo seu passado brilhante,
fazendo votos por que, no futuro, continue conquistando os mais
assinalados triunfos, sentindo não lhe oferecer melhor, porque
A árvore, que dá
pilritos,
não pode dar coisa
boa
e
cada um dá o que tem,
consoante a sua
pessoa...
Aveiro, 30-1-1932 |