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        Primeiro Natal passado em Angola - 1962 
        
        Poucos dias antes do Natal de 1962, havia grande 
        azáfama na nossa Companhia. Tínhamos recebido informações de que o IN 
        iria aproveitar a época natalícia para meter grande quantidade de armas 
        e munições no território angolano. A passagem seria pela já nossa 
        conhecida picada do Quelo. 
        
        Ficámos admirados com tanta e concisa informação! 
        Seria mesmo verdade? Ou seria contra-informação? Pelo sim ou pelo não, 
        ficou resolvido pelas “altas esferas” da Companhia que até ao dia 23 
        haveria sempre dois pelotões em movimento fazendo emboscadas, 
        patrulhando as picadas prováveis para a passagem do IN. 
        
        No dia 23 houve que ir ao abastecimento a São 
        Salvador para a consoada! Que diabo de abastecimento seria esse? Batatas 
        havia… e o bacalhau? E as couves? 
        
        Para mim, uma boa feijoada com dobradinha brasileira 
        era o suficiente! Para quê sonhar tão alto. Não querias mais nada. 
        Bacalhau com couves!  
        
        – Estamos em África – dizia-me o Costa Pereira em ar 
        de gozo.  
        
        O nosso pelotão estava de serviço ao acampamento e 
        teve de ir à água e à lenha, pois dois estavam em operações e o outro 
        tinha ido ao abastecimento. Estávamos todos muito curiosos para saber o 
        que o nosso Vagomestre nos iria trazer para a noite de consoada. Traria 
        com certeza o que o “Barriga de Guinguba” tivesse trazido de Luanda. 
        Abastecimento local, não havia. 
        
        O pelotão chegou já um pouco tarde, e descarregou no 
        armazém. Os pelotões operacionais também haviam regressado. Pessoal 
        cansado. O que vale é que amanhã é dia de consoada, não haverá 
        operações! Pensava-se… Caminhava-se devagar, ao Deus dará, pela parada. 
        Um ou outro homem chegava-se à cantina para se dessedentar com uma 7Up 
        ou uma Cuca fresca. Que pensariam aquelas almas? Pensavam no mesmo que 
        eu, com certeza. 
         
         
        Dia de Consoada 
         
        No dia seguinte, depois do almoço, o Zé Cozinheiro começou a tratar da 
        ceia da consoada. O Furriel Cura, Vagomestre, convidou-nos a ir ver como 
        corriam as coisas pela cozinha. E lá fomos. Era um modo de passar o 
        tempo, de afastar as ideias que com a velocidade da luz teimavam em 
        lembrar-nos o que se passava lá longe! 
        
        Ao chegar à cozinha notei um amontoado de grades de 
        madeira.  
        
        – Eh Cura, o que é aquilo?! – Perguntei. 
        
        – Não sei! Vamos ver.  
        
        E pegou num martelo de orelhas e abriu uma grade. 
        Olhei e vi com espanto a inscrição na madeira: “Cod-Fish”.  
        
        – Meu Deus – disse eu – vamos ter bacalhau para a 
        consoada!  
        
        O Cura riu com satisfação e disse: 
        
        – Vamos ver! 
        
        Desmantelou a grade de madeira que protegia outra 
        embalagem hermética, feita de folha de zinco prateada, que dizia em 
        inglês: “Embalado na África do Sul”. 
        
        Não resisti e puxei na pega que servia para abrir a 
        lata, deparando com seis bacalhaus do tamanho crescido lá dentro. 
        Arranquei uma fêvera, meti-a à boca e ao tomar-lhe o sabor exclamei: 
        
        – É malta, é mesmo bacalhau! 
        
        Alguns riram com a minha admiração. Só fiquei com 
        pena de não ser bacalhau português, seco e embalado nas secas da Gafanha 
        da Nazaré. A embalagem seria de ráfia e o sabor seria, com certeza, bem 
        melhor do que este. 
         
        Preparando a Ceia 
         
        Arrumaram-se as camas de uma caserna e montaram-se mesas corridas. Nessa 
        noite toda a Companhia cearia junta, num sinal de união. 
        
        – Cura, como conseguiste arranjar o bacalhau? – 
        Perguntei. 
        
        – Olha, não contava! Mas às vezes “os tropas do ar 
        condicionado”, lá fazem destas coisas; e ainda mais, mandaram couves. 
        Estão todas murchas mas o Zé Cozinheiro há-de arranjar processo de elas 
        ficarem apetitosas.  
        
        O dia ia passando. O sol ia-se escondendo lá para os 
        lados de São Salvador do Congo! 
        
        Que será feito hoje dos meus dois irmãos que estão em 
        Angola? 
        
        Um, é Policia Militar, estará em Luanda; o outro 
        está, salvo erro, em Quibocolo, no coração dos Dembos. Ambos solteiros, 
        estarão a pensar na nossa família? O que está em Quibocolo, estará como 
        eu, tentando – só tentando – pensar no que nos rodeia.  
        
        O que está em Luanda, em serviço ou fora dele, ao ver 
        as montras e a alegria festiva dos passantes, deve ter muitos apertos no 
        coração! 
        
        O tempo estava quente, a azáfama no acampamento era 
        muita. O que me admirava eram os passeios isolados de muita gente pela 
        parada. Não se conversava. Mãos nos bolsos, embora a temperatura que se 
        fazia sentir fosse elevada (estávamos no verão), olhando para o além, 
        tentando descortinar o que se passaria lá longe. 
        
        Anoitecera. A noite estava escura. Fui fazer uma 
        ronda, conversando com este e aquele, a minha pergunta era sempre a 
        mesma:  
        
        – Então pá, tudo bem? 
        
        E a resposta era sempre a mesma: um encolher de 
        ombros e… 
        
        – Tudo bem! 
        
        Também nas sentinelas se notava aquela ausência do 
        espírito. O corpo estava ali mas o espírito andava muito por longe. Era 
        perigoso para quem estava de serviço. Disse aos sentinelas que não 
        queria ver ninguém sentado.  
        
        – Sempre de pé e a passear de um lado para o outro, 
        ouviram?!  
        
        E assim se ia passando a noite de consoada, à espera 
        da ceia. 
        
        Chegou a hora. O pessoal sentou-se. Tinha havido 
        ordem de o gerador trabalhar mais duas horas, até à 1H00 da madrugada! À 
        ordem de cear quase todas as bocas se calaram, executando outra função 
        mais útil: comer. O bacalhau era bacalhau também no sabor mas as couves, 
        embora com aspecto de verdes, tinham sabor a nada! Falámos, rimos, 
        esquecendo um pouco as nossas agruras. Mesmo com o estômago cheio, 
        faltava-nos qualquer coisa… 
        
        Era meia-noite. Fui fazer mais uma ronda, já que não 
        havia mais nada para fazer. Tudo estava bem. 
        
        Ao passar no último posto, dois sentinelas 
        conversavam e um dizia para o outro: 
        
        – A esta hora, na minha aldeia repenica o sino da 
        igreja a chamar os fiéis para a missa do galo. 
        
        Mais uma vez a minha mente voou à velocidade da luz, 
        para longe! 
        
        Repreendi-os, não pela sua conversa, que me comoveu 
        pela lembrança que me trouxe mas por estarem os dois fora dos seus 
        postos de vigia. 
        
        De regresso à caserna, passei palavra ao Sargento que 
        me ia render para me chamarem quando chegasse novamente a minha hora de 
        serviço, e estendi-me na cama... 
        
        Adormeci. Só acordei já dia. Levantei-me atrapalhado: 
        
        – Que diabo, e a minha ronda? 
        
        Fui então informado pelo meu colega, que, quando ia 
        para me acordar, eu dormia profundamente… e sorria! 
        
        – Não fui capaz de te acordar e fiz a ronda por ti – 
        disse-me o Miranda! 
  
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