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        Queimada 
        
        Desta vez, numa patrulha diurna, avistámos ao longe o 
        IN. Atravessava a estrada de Norte para Sul. Eram meia dúzia deles. Não 
        valia a pena fazer fogo àquela distância, eram poucas as possibilidades 
        de os atingirmos. Avançámos pela estrada para o local onde tinham 
        penetrado no capim; seguimo-los de perto, tentando apanhar alguns “à 
        unha”. Vinham do Congo e interrogados poderiam fornecer-nos elementos 
        preciosos, podendo trazer mesmo documentação com informações valiosas. O 
        capim estava ressequido. Eles deviam estar por perto. O vento soprava do 
        Sul e sentia-se o odor a “catinga”. Íamos apanhá-los. Avançámos à 
        confiança.  
        
        De repente vimos a cerca de uns duzentos metros à 
        nossa frente, começarem a aparecer chamas. Sacanas! Eles é que nos 
        tinham caçado! Lançaram fogo ao capim e quanto mais o capim ardia, mais 
        o vento aumentava de intensidade. As chamas avançavam para nós a tal 
        velocidade, que só tivemos uma solução: fugir! Corríamos à frente das 
        chamas conforme podíamos, com o lume a lamber-nos as botas. O capim era 
        alto e dificultava a nossa progressão. Nisto o municiador da Basuka, 
        gritou:  
        
        – Meu alferes, a granada da Basuka caiu-me. 
        
        – Puta que pariu a granada – diz o Alferes – foge se 
        não queres aí ficar! 
        
        Embora tivéssemos chegado à estrada, as chamas não 
        paravam. Tivemos de continuar a correr. Ao longe notámos árvores verdes. 
        Ali deve passar o rio.  
        
        – Vamos para lá – gritei para o Alferes. 
        
        Continuámos a correr, alguns já vinham sem fôlego. As 
        chamas continuavam a perseguir-nos. Quando chegámos à mata verificámos 
        que era mesmo o rio, onde nos metemos atabalhoadamente na água até ao 
        pescoço, só com os braços no ar para segurar a arma fora de água. Ali 
        ficámos, na esperança que as chamas se extinguissem. Mas qual quê, as 
        labaredas eram de tal intensidade que estavam a trepar até à copa da 
        árvores. Se isto continuasse assim, o incêndio passava o rio para a 
        outra margem. 
        
        Ouvimos guinchos e olhámos para cima: um espectáculo 
        dantesco! Dezenas de macacos pequenos tentavam a todo o custo fugir. 
        Saltavam das copas das árvores, para escapar para a outra margem do rio, 
        orientando o salto com os seus rabos compridos. Pouco depois este 
        espectáculo acabou. Felizmente as chamas não atravessaram o rio. Ainda 
        bem, safa! 
        
        Na margem oposta vi qualquer coisa a mexer-se no 
        capim. Olá, o que será aquilo?!  
        
        – Meu alferes, gritei – crocodilos! 
        
        Fugimos todos da água como que movidos por uma mola.  
        
        – Pôrra, hoje é o nosso dia de azar! – Exclama o 
        Rossas.  
        
        Aguardámos na margem mais uns tempos, até as chamas 
        desaparecerem quase por completo. Depois regressámos à estrada. A terra 
        estava quente, aqui e acolá viam-se ainda pequenas chamas. Procurámos a 
        granada da Basuka que encontrámos e balizámos. Por azar o calor não a 
        tinha feito rebentar. No dia seguinte iria ser bonito para a recuperar. 
        Sabíamos que era disparada por ignição eléctrica e com o impacto 
        rebentava. E agora? Os fios eléctricos estavam queimados! Recuperá-la 
        assim, trazendo-a ao ombro, era estarmos a pôr a nossa vida em risco! 
        Porra, porra... 
        
        Ouvido o relatório do Alferes, o Capitão deu ordem 
        para o pelotão ir no dia seguinte recuperar a granada perdida, não sem 
        primeiro criticar o Rossas, por a ter deixado cair. “Nabo! Se lá 
        estivesses naquela aflição eu sempre gostava de ver o que fazias!”, 
        pensei.  
        
        Eu não gostava nada daquele Capitão. Tinha tanto de 
        petulante como de incompetente.  
         
        A estrela polar 
         
        Imaginem que numa noite em que estávamos a fazer instrução nocturna no 
        Batalhão de Caçadores 5, apareceu esta alma de Deus: 
        
        – Então nosso Furriel, qual é a instrução que estão a 
        dar? 
        
        – Orientação nocturna, meu Capitão. Mas está difícil 
        porque o reflexo das luzes da cidade não deixa ver bem as estrelas – 
        respondi. 
        
        Dirigiu-se então a um soldado e perguntou-lhe do alto 
        dos seus galões: 
        
        – Ouve lá, como é que tu encontras a estrela polar?  
        
        – Ainda não sei bem meu Capitão – foi a resposta. 
        
        – Pois é, vocês são umas bestas, pá. Estamos quase a 
        embarcar para Angola e ainda não sabem encontrar a estrela polar. Quando 
        lá tiverem de andar de noite eu quero ver como é. Depois dizem que se 
        perdem, suas abéculas! 
        
        Eu ainda retorqui, a medo: 
        
        – A estrela polar no hemisfério sul, meu Capitão…? 
        
        Quando o Capitão se retirou, o Alferes Miranda 
        alertou-me:  
        
        – Ó Ribau, você qualquer dia ainda leva uma porrada. 
        Lá vão uns finzitos de semana p’ró galheiro! 
        
        – Meu Alferes. Acha que devia ficar calado? O que é 
        que o Senhor faria se a pergunta fosse dirigida a um seu instruendo? 
        
        – Olha, virava-lhe as costas para que o gajo não me 
        visse a rir.  
        
        – Mas eu estava de frente e se lhe virasse as costas 
        era ainda pior. 
        
        O Alferes Miranda tratava-me por você. Eu era o único 
        Sargento casado no pelotão e ele tinha vindo havia pouco tempo para o 
        comandar. Veio substituir o Alferes Silva que, por não “concordar” com a 
        guerra no Ultramar, se pirou. 
         
        Com a granada ao colo... por castigo! 
         
        Deixando para trás aqueles pensamentos, voltemos à granada. No dia 
        seguinte, lá fomos. Ao chegar ao local que tínhamos assinalado, lá 
        estava “ela”, como a tínhamos deixado no dia anterior. Nem se dignou 
        rebentar para nos deixar em paz. Parecíamos hienas à volta de peça de 
        caça abatida mas com cuidado! Podia ainda estar viva! 
        
        Pensámos fazer fogo de longe sobre ela, tentando que 
        com o impacto o percutor actuasse e a granada explodisse! Mas e se não 
        resultasse? Não estávamos preparados para um caso destes! 
        Conferenciámos, os três Sargentos e o Alferes. 
        
        Os cabos eléctricos estavam queimados. A granada era 
        sempre transportada com as empenas para baixo para, no caso de cair, não 
        explodir. Confirmámos pelo municiador da Basuka que na altura da queda a 
        granada levava o “bico” para cima. 
        
        – Pôrra – diz o Alferes – isto já me está a cheirar 
        mal. Eu vou buscar a porcaria da granada!  
        
        Ele tinha visto como as coisas se passaram. Fora ele 
        que dera a ordem ao municiador para fugir! Compreendi. Era um desabafo, 
        tentando acalmar os nervos que sentia, que todos nós afinal sentíamos. 
        Tirou a pistola do cinto e atirou-a para o chão.  
        
        – Tudo p’ra longe! 
        
        Foi a ordem. Encaminhou-se vagarosamente para a 
        granada, andando à sua volta para analisar bem a situação. Hesitou um 
        pouco, coçou a cabeça mas depois, de forma resoluta, agarrou a granada 
        por baixo e trouxe-a com todo o cuidado! Como quem vai buscar um bebé ao 
        berço sem o querer acordar. Até aqui nada de anormal tinha acontecido, 
        felizmente. 
        
        – Municiador! – Chamou o Alferes – Toma. És tu que a 
        vais levar ao colo para o acampamento.  
        
        Antes de lha entregar apertou-a contra o peito, como 
        que a provar que não haveria perigo. 
        
        Apanhei a pistola do chão e entreguei-lha, notando 
        que as suas mãos tremiam como varas verdes.  
        
        – Calma meu Alferes, o perigo já passou – disse-lhe 
        eu.  
        
        – Pois passou. Quando mandei o pelotão afastar-se 
        estava com uma calma celestial. Agora é que estou assim, vá lá uma 
        pessoa saber porquê! 
        
        Problema de quem comanda e sabe comandar, pensei. 
         
        Marinheiros, Aviadores e Pára-Quedistas 
         
        Chegados ao acampamento, todos quiseram saber como se tinham passado as 
        coisas, pois os que tinham ficado sabiam o perigo que iríamos correr. 
        Foi-lhes contada a história do que se tinha passado. 
        
        – Vocês têm sorte com o Comandante de pelotão que 
        têm. Se fosse outro teria mandado um Sargento ou um Cabo fazer o serviço 
        que fez. 
        
        Que vida esta, pensa uma pessoa. Não sei como há 
        gente que segue a profissão da tropa, especialmente de infantaria. 
        
        – Os marinheiros andam no mar e têm tudo o que 
        necessitam a bordo. 
        
        – Os aviadores andam no ar, cumprem a sua missão e 
        regressam à base, que normalmente fica próximo de uma cidade. 
        
        – Os pára-quedistas, são lançados do ar para o 
        objectivo, cumprem a sua missão e são recolhidos pela infantaria, que os 
        transporta a local onde serão recolhidos por avião ou helicóptero. 
        
        – Os de infantaria estão num aquartelamento no meio 
        do mato e são-lhe dados objectivos que têm de alcançar, normalmente a 
        pé, por terrenos desconhecidos. Estão sempre em risco de lerpar. Quantas 
        vezes pensamos que vamos surpreender e somos surpreendidos pelo IN que 
        conhece os terrenos melhor do que nós, como foi o caso da granada da 
        Basuka há pouco acabado de narrar. Temos de tratar da nossa segurança e 
        do nosso abastecimento, por vezes por “estradas” minadas. 
        Quando há operações na nossa zona, ou até às vezes fora dela, além de 
        termos outras Unidades empenhadas na mesma operação, temos de proceder 
        ao transporte dos pára-quedistas nas viaturas de transportes colectivos 
        lá do sítio, o Unimog ou a GMC. E ainda temos de suportar a 
        incompreensão das altas esferas que estão no “ar condicionado”. 
         
        Vossas Excelências têm razão... 
         
        Imaginem que a nossa Companhia recebeu uma comunicação de Luanda, de que 
        os Unimog andavam a “gastar” muitos amortecedores. Foi indicado o 
        motivo: todas as viaturas estavam atapetadas com sacos de areia, por 
        causa das minas anti-carro e quando chovia os sacos ficavam mesmo muito 
        pesados. 
        
        Que não podia ser, que os amortecedores eram caros. 
        
        Segundo apurei mais tarde, foi-lhes respondido 
        sarcasticamente: 
        
        – Vossas Excelências têm razão. 
        
        Fiquei admirado com a resposta da Companhia. Eles 
        tinham razão! Os amortecedores eram caros! O Capitão passou-se... 
        
        O médico perguntou-me o que se tinha acontecido! 
        Contei-lhe. Ele riu-se. Fiquei desconfiado. O assunto já devia ter sido 
        discutido pelos oficiais durante a refeição. E todos os operacionais 
        concordaram em não tirar os sacos de areia, segundo vim a saber. 
        
        Eram as nossas vidas que corriam perigo... 
  
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