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        Em terrenos minados 
        
        Relativamente perto vejo vir na estrada um jipe a 
        grande velocidade, levantando nuvens de poeira. Fiquei na expectativa. O 
        jipe entra de rompante no acampamento. O Lisboa, que o conduzia, grita 
        para mim: 
        
        – Meu Furriel, fomos atacados na subida do Rio Luvo. 
        Acudam depressa aos nossos irmãos se não eles morrem lá todos.  
        
        E não conseguiu dizer mais nada. Ficou bloqueado, com 
        a boca a espumar! Tentámos obter contacto via rádio, mas não havia 
        resposta. Depressa se arranjaram três Unimogues e um jipe com rádio, que 
        saíram imediatamente do acampamento ao encontro da coluna de 
        reabastecimento.  
        
        – Digam o que se passa! 
        
        Foi o pedido dos que ficaram. 
        
        Passados uns tempos o rádio informou o que se havia 
        passado: o jipe que vinha à frente da coluna pisou uma mina anti-carro. 
        Dois dos ocupantes estavam mortos, um terceiro que com o rebentamento 
        tinha ido parar longe, recuperou os sentidos e começou a gritar, e o 
        quarto, o Sargento que vinha ao lado do condutor, ainda não tinham dado 
        com ele. 
        
        Fomos na direcção dos gritos que cada vez se ouviam 
        menos. O soldado estava a esvair-se em sangue. Na mão direita a arma que 
        nunca largara, na esquerda um punhado da terra de Angola, dura, gretada. 
        Estava a entregar a alma a Deus. Ainda lhe ouviram as suas últimas 
        palavras: “Oh minha mãe…” 
        
        Chegados ao jipe acidentado reparámos numa figura que 
        parecia grotesca. O apontador da “Breda”, que estava montada no jipe, 
        ainda se mantinha agarrado aos punhos da arma, como se fosse fazer fogo. 
        Com o jipe inclinado a metralhadora ficou apontada para o céu. 
        
        O apontador estava morto. O terceiro militar estava 
        também morto, perto do veículo. Foram transportados em macas para o 
        acampamento. 
        
        O Sargento ainda não tinha aparecido. Continuaram as 
        buscas, já ao lusco-fusco, sempre com o ouvido à escuta, chamando por 
        ele. Ouve-se um respirar apressado. Era ele. Respirava mas deitava 
        sangue pelos ouvidos e pela boca. Foi rapidamente – tanto quanto se 
        podia – transportado numa maca para o acampamento era já noite. O médico 
        ia fazendo o que podia tentando prolongar-lhe a vida.  
        
        – Se me mandassem um helicóptero ainda podia 
        salvar-se! – Desabafa o médico. 
        
        Mas àquela hora os helicópteros já não voavam e 
        estavam longe, em Luanda. Nós estávamos no fim do mundo… Foi quando 
        tomámos consciência de como estávamos afastados de tudo e de todos … 
        
        Numa altura destas compreendemos como é necessário 
        termos confiança em nós próprios. Uma Companhia, com cerca de cento e 
        cinquenta homens, não pode contar com mais ninguém. Isto cria entre os 
        seus componentes um espírito de entreajuda, de sacrifício mútuo. Não 
        sabemos porquê mas nos momentos difíceis é assim. E esse espírito 
        prolongou-se até a Companhia ser dissolvida. 
        Chegada a hora de jantar, já tardia, cada um foi buscar a sua comida. 
        Sentámo-nos à mesa, calados, tristes. A primeira colherada de comida foi 
        posta na boca, mas não passava na garganta, entalava-nos. 
        
        – Merda, não consigo comer esta porcaria! – Disse um, 
        tentando justificar o não conseguir comer – Vou levar isto à cozinha. 
        Serve para amanhã, se não se estragar. 
        
        Uns atrás dos outros, em silêncio, foram fazendo o 
        mesmo. 
         
        Segurança reforçada 
         
        O nosso pelotão era, como disse, o que estava de serviço de segurança ao 
        acampamento. Resolvemos que as sentinelas fariam o serviço dobradas – 
        duas a duas – para que não houvesse “esquecimentos”, não fosse alguma 
        adormecer. As rondas seriam também feitas por dois Sargentos, não só por 
        um, como era habitual. Tudo ficou preparado para que não houvesse 
        surpresas e a malta pudesse dormir descansada. Nesse dia já bastava a 
        surpresa da mina. 
        A noite ia passando. Íamos conversando com o pessoal que estava de 
        vigia, enquanto fazíamos as rondas. Nisto, apercebo-me do vulto de um 
        soldado, acocorado, fora da caserna. Dirigi-me a ele, pois poderia ter 
        algum problema. 
        
        – O que se passa? 
        
        – Porquê a nós meu Furriel? Porque nos havia de 
        calhar a nós?!  
        
        Chorava convulsivamente. Ele era da mesma terra e 
        muito amigo do Valente, o apontador da metralhadora. Numa altura destas 
        o melhor era ficar calado. Ainda consegui dizer-lhe:  
        
        – Chora à vontade, não tenhas vergonha de chorar. 
        Estás a chorar por um amigo, que todos nós perdemos.  
        
        O relógio parecia não andar. Quando eu e o Miranda 
        fazíamos a ronda, passámos perto do Comando, junto à cantina e parámos. 
        Ouvimos a respiração difícil do nosso colega, na enfermaria. Ficámos à 
        escuta. De repente ouviu-se a voz do médico dando rapidamente uma ordem 
        ao Sargento Enfermeiro. Depois, nada mais. A respiração acabou, mas o 
        médico estava a fazer qualquer coisa. Sentimos vontade de entrar na 
        enfermaria mas só iríamos atrapalhar. Fomos para a nossa caserna, 
        acendemos uma vela. Eu acendi mais um companheiro de todas as horas, “o 
        fiel cigarro”, e fiquei a pensar. O Miranda disse que ia descansar um 
        pouco, para eu o chamar quando fosse fazer a ronda seguinte e deitou-se. 
        
        Fiquei a olhar tempos infindos para o fumo do cigarro 
        que se sumia na escuridão deixada nos locais onde a luz da vela não 
        chegava. Lembrei-me então das palavras do soldado antes de exalar o 
        último suspiro “Oh, minha mãe!” como que a pedir ajuda àquela que nunca 
        nos abandona! Mas ela estava longe! 
        A mente tentava andar por longe, fugir a tudo aquilo, ir à mocidade. 
        Veio-me à memória um poema chamado “Alguém” que lera no livro de 
        Português da Escola Comercial. Não me lembro quem era o autor mas há 
        duas quadras que nunca esqueci: 
        
        Para alguém sou o lírio entre os abrolhos 
        E tenho as formas ideais de Cristo 
        Para alguém sou a vida e a luz dos olhos 
        E, se na Terra existe é porque existo. 
         
        Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora 
        Por mim além dos mares! Esse alguém 
        É dos meus olhos a esplendente aurora; 
        És tu, doce velhinha, ó minha mãe! 
        
        Ouço passos. Aguardo e vejo o médico entrar na nossa 
        caserna, com a camisola de lã da tropa vestida, cabeça baixa. “Estará 
        frio? – pensei – não tinha dado por isso” 
        
        – O David morreu – disse-me. Não conseguimos 
        salvá-lo. Ainda fizemos uma traqueotomia. De nada valeu... 
        
        Falou baixo. Só eu estava sentado à mesa junto da 
        vela. O médico desapareceu na noite em direcção à enfermaria. Não se 
        ouviu uma palavra. Senti o Miranda levantar-se e sentou-se à mesa, junto 
        da vela. Depois começámos a ouvir o pessoal a mexer-se. Acende-se um 
        cigarro aqui, outro ali, até que todos estavam sentados nas suas camas. 
        Afinal ninguém dormia, pensei! Não ouvi uma palavra sequer, até que o 
        Miranda me disse:  
        
        – Vamos fazer mais uma ronda!  
        
        E lá fomos. As sentinelas estavam alerta. 
        Dissemos-lhe o que se tinha passado com o nosso camarada. 
        
        – Nós já sabemos. O maqueiro que estava de serviço na 
        enfermaria veio dizer-nos. Já somos menos quatro...  
        
        A noite ia passando e ao raiar da aurora já toda a 
        companhia estava de pé, o que não era habitual. Embora o café estivesse 
        pronto, poucos se chegaram à cozinha. Eu estava mesmo com fome. Peguei 
        numa caneca de café, sem açúcar, e num naco de pão. O café passou pela 
        garganta. O pão… não consegui engoli-lo. Tínhamos saído de serviço e 
        todos nos sentíamos muito cansados. A noite tinha sido por todos os 
        motivos arrasadora! Agora iríamos descansar, se o conseguíssemos. 
         
        Terríveis momentos 
         
        Pouco depois chega à nossa caserna o Alferes Miranda, Comandante do 
        nosso pelotão. Chamou-nos, aos três Sargentos do pelotão:  
        
        – Fomos destacados para levar os mortos a São 
        Salvador e dar-lhe uma sepultura condigna.  
        
        – Meu Alferes – disse eu – acabámos de sair de 
        serviço e estamos muito cansados. E porquê nós se há um pelotão que 
        esteve de descanso ontem? É a ele que pertence esse serviço. 
        
        O Sargento Miranda calou-se. O Costa Pereira, como 
        sempre, refilou e disse: 
        
        – Eu não vou!  
        
        Chamei a atenção ao CP de que não poderíamos dizer 
        essas coisas em frente dos soldados, sob pena de eles deixarem também de 
        nos obedecer, num caso difícil como este. Conferenciámos e resolvemos 
        fazer como o Alferes tinha dito. 
        
        Sabíamos que o Alferes, como operacional, era cinco 
        estrelas. Mas guardava respeito demais aos galões do Capitão, sem 
        ripostar. E o nosso pelotão é que as pagava. Era a segunda vez que isto 
        acontecia! (A primeira foi quando recebeu ordem para ir desmantelar a 
        casa de um branco e trazer as loiças sanitárias para o serviço dos 
        Senhores Oficiais). 
        
        Pedimos ao Sargento mecânico Lino para nos arranjar 
        uns ferros afiados na ponta, para nós, à frente das viaturas, irmos 
        picando a estrada, tentando detectar alguma mina. Assim se fez. O medo 
        era muito. Poderiam as viaturas não ter pisado alguma mina, ou poderá o 
        inimigo, ao ver o bom resultado obtido com a experiência, ter 
        armadilhado a estrada com mais minas. Enfim, seja o que Deus quiser!  
        
        Era a primeira vez que se tinha dado um acidente 
        daqueles! 
        
        Prepararam-se três Unimogues para a tropa e uma GMC, 
        que levaria as quatro macas com os cadáveres. A coluna saiu do 
        acampamento cerca das dez horas. Ainda ouvi o Primeiro-Sargento gritar: 
        
        – Não se esqueçam de trazer as macas e os 
        cobertores...!  
        
        Pareceu-me um ser desprezível. Só consegui 
        berrar-lhe: 
        
        – Cala a boca, Fidalgo! 
        
        Avançámos em marcha lenta. Enquanto a estrada era 
        barrenta, sabíamos que se uma mina tivesse sido enterrada se notaria a 
        terra mexida. Mas era preciso ter sempre muito cuidado. A qualquer 
        dúvida descia um homem da viatura e com o ferro picava o terreno. Nada. 
        
        Quando chegámos à descida para o rio onde a mina 
        tinha rebentado, desceram seis homens. Houve ordem para cada viatura 
        seguir o rasto da que lhe ia à frente. O terreno era grainha de cobre. 
        Se sentíssemos algo mais duro, tínhamos que cavar para ver o que era. Os 
        seis homens iam picando a estrada, três em cada rodado. As viaturas 
        prosseguiam atrás em marcha lenta. Como era um trabalho muito penoso, 
        substituíam-se os homens de vez em quando. Estava sempre na nossa mente 
        o caso de ser uma mina e rebentar quando fosse picada! 
        
        Levámos cerca de 3 horas a chegar ao rio, coisa que 
        normalmente se fazia em menos de uma hora! 
        
        Atravessámos a ponte e estávamos agora na área da 
        companhia do Batalhão do “Spínola”. A subida do outro lado do rio era do 
        mesmo género, pelo que tivemos voltar a aplicar o sistema: o “picanço”, 
        como passámos a chamar-lhe. Sempre lentamente, até que chegámos ao 
        acampamento da Companhia nossa vizinha. Parámos para colher informações. 
        Eles tinham ido nessa manhã a São Salvador e dali para diante não tinha 
        havido problemas. Ficámos mais aliviados. Dentro de uma hora, ao 
        anoitecer, estaríamos em São Salvador. Eles já sabiam o que se tinha 
        passado com a nossa Companhia. 
        
        Alguns homens, por pura curiosidade (ou masoquismo, 
        não sei!) subiam à GMC e destapavam os corpos para ficarem a olhá-los, 
        apalermados! Depois voltavam a tapá-los e desciam da viatura. 
        Seguimos viagem, agora um pouco mais descansada e ao anoitecer estávamos 
        em São Salvador. O Alferes iria tratar na sede do Sector, dos termos 
        legais para os funerais. O pelotão regressaria no dia seguinte, depois 
        dos funerais. Os corpos foram levados para a casa mortuária e nós 
        ficámos por ali, respondendo às perguntas que nos eram feitas pelos 
        nossos companheiros, aquartelados em São Salvador: “ Como tinha sido?” 
        Era a primeira vez que apareciam minas anti-carro na zona. A curiosidade 
        era muita, e o interesse ainda mais:  
        
        – Hoje foram vocês, amanhã podemos ser nós.  
        
        Comemos uma bucha que nos foi fornecida pela tropa de 
        São Salvador, e andámos por ali ao Deus dará. Tal como no dia anterior, 
        a comida custava a passar para o estômago! Meu Deus, foram logo quatro 
        dos nossos! 
        
        Era já tarde quando vieram chamar um Sargento do 
        nosso pelotão para identificar os cadáveres antes de serem colocados nos 
        caixões. Dirigiram-se, logo por azar, a mim. Não fui capaz. Pedi ao 
        Miranda que o fizesse. Ele foi. Eu não tinha coragem de ir outra vez ver 
        aqueles corpos dilacerados pela explosão.  
        
        Alguns deitaram-se nas camas que nos dispensaram mas, 
        passado pouco tempo, levantavam-se. Ninguém conseguiu dormir. No dia 
        seguinte, de manhã, tínhamos de ir enterrar os nossos companheiros e 
        prestar-lhes as devidas honras militares. Depois era o regresso. Os 
        mesmos pressupostos. Haver ou não haver minas! 
        
        Encosto-me a uma cama a pensar no que nos tinha 
        acontecido. Afinal tinha sido um acto de guerra! Pois, foi um acto de 
        guerra e nós ainda não tínhamos sequer conseguido pôr a vista em cima do 
        IN! A eles era mais fácil detectar-nos e eliminar-nos enquanto nós 
        andássemos nas viaturas. Conheciam bem o terreno. E começavam a 
        conhecer-nos também. Tínhamos de deixar as viaturas no acampamento. 
        Andar a pé era a solução! 
        
        Pois era. E o reabastecimento? Teríamos de utilizar 
        as viaturas quando houvesse que fazer o reabastecimento! “Deixa-te disso 
        pá”, pensei para comigo. Logo teremos de tentar chegar todos e inteiros 
        a Pangala, e depois se vê! 
        
        Chegou a hora de darmos sepultura aos mortos. Os 
        caixões foram transportados pelos tropas encarregados dos funerais. 
        Saímos para o lado sul da cidade e num descampado havia quatro covas 
        abertas, a par umas das outras. Era ali que iríamos deixar os nossos 
        companheiros. Naquela encosta, ligeiramente inclinada para sul, não 
        havia sinal de qualquer sepultura. Os nossos companheiros seriam os 
        primeiros a ficar ali. 
        
          
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        Sepulturas  | 
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        Feitas as rezas pelo Capelão Militar, com o Pelotão 
        em sentido, foram disparadas as três salvas de tiros da ordem, de G3. A 
        última homenagem. O ruído dos tiros pareceu-nos tão fraquinho, e 
        rapidamente desapareceu no espaço. 
        
        Àquela hora, no “Puto”, os seus familiares 
        continuariam nos seus afazeres, sem suspeitarem do que se tinha passado 
        lá longe, muito longe! Possivelmente, uma avó, uma mãe, uma noiva, 
        sabe-se lá, logo à noite irá à igreja da sua terra rezar uma oração, 
        fazer uma prece: Que regresse bem e depressa… 
        
        Páginas que o império tece 
        Jaz morto e apodrece 
        O menino de sua mãe! 
        
        Meu Deus, como Fernando Pessoa veio até mim só para 
        me torturar! 
        
        Tínhamos partido de S. Salvador havia quase uma hora. 
        Tempo quente, a marcha lenta, a atenção que se dispensava à estrada, 
        amolecia-nos os nervos. A viatura deu uma guinada.  
        
        – É pá, calma – digo para o condutor.  
        
        – Desculpe meu Furriel. Distraí-me… 
        
        – Não pode ser! – Disse eu – Vais cansado? Eu conduzo 
        um bocado. Até pensei que tinhas visto uma mina! 
        
        – Não, meu Furriel. A minha cabeça voltou por 
        momentos a São Salvador. Agora já acabou. Não me distraio mais. 
        
        – Cuidado que vamos a chegar à estrada “fraca”. 
        
        Ao passar o acampamento da companhia do Spínola, 
        acenámos à sentinela que estava junto das instalações da companhia, que 
        correspondeu com outro aceno, sinal de que não havia “azar”. 
        
        Atravessámos a ponte sobre o rio e entrámos na zona 
        da nossa Companhia. A subida até lá acima, era a zona mais perigosa. 
        Novamente o “picanço”. Não podia haver descuidos. Passámos junto do 
        local onde a mina nos havia feito as quatro baixas. Parámos um momento. 
        A memória dos companheiros sempre presente. O jipe já tinha sido 
        retirado para o acampamento. Seguimos viagem e, por fim, chegámos às 
        nossas instalações. O lugar mais seguro do mundo!  
        
        Tínhamos que esquecer o que se passou. Não podíamos 
        mostrar ao IN o nosso medo. 
        
          
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        O Jipe minado  | 
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        Durante cerca de um mês esquecemos as viaturas. As 
        operações eram todas feitas a pé, o que as tornava cada vez mais 
        penosas. Pois é, não havendo viaturas não havia reabastecimento, e não 
        havendo reabastecimento não havia comida fresca. Durante todo esse tempo 
        comemos das reservas que tínhamos no acampamento. Um dia era feijão com 
        salsichas, no dia seguinte era arroz com salsichas. Era o que havia. 
         
        Sacos de areia – salva-vidas 
         
        Um dia resolvemos que aquilo não podia continuar. Preparámos as viaturas 
        cobrindo o tablado com sacos de areia. Até o condutor da viatura tinha 
        direito a um saco junto aos pedais. Tinha que conduzir quase com a 
        biqueira das botas. 
        
        Assim era mais seguro, se uma mina rebentasse, não 
        poderia causar muito prejuízo no pessoal, pensávamos nós. E assim fomos 
        para S. salvador fazer o reabastecimento, com todos os cuidados. Optámos 
        por três Unimogues (deixámos de utilizar os jipes por serem a gasolina e 
        que em caso de mina causavam mais prejuízos; tivemos a prova no nosso 
        primeiro acidente com homens queimados), e uma GMC. 
        
        Chegados lá, abastecemos, carregando a viatura até 
        mais não poder, ou se calhar, mais do que ela podia. Ele era farinha, 
        ele era feijão, era massa, e especialmente bebidas – 7Up e muita 
        cerveja. Nesse dia o “Barriga de Ginguba” não tinha vindo de Luanda, 
        pelo que não havia alimentos frescos. Enfim, o que tínhamos carregado 
        era melhor do que nada. 
        
        Pelo meio da tarde estávamos conversando sobre as 
        nossas “Marias” – eu e o Sargento Tendeiro, das transmissões. Éramos os 
        únicos Sargentos milicianos casados.  
        
        A conversa derivou para as leituras. Ele gostava 
        muito de literatura policial. Quando saia novidade no “Puto”, a esposa 
        mandava-lha imediatamente. Era professor primário, este rapaz um tanto 
        reservado. Não gostava de emprestar os seus livros. Eu também nunca lhe 
        pedi nenhum, pois não apreciava aquele tipo de leitura, mas sei de 
        companheiros nossos que lhe pediam um determinado livro e esse nunca 
        estava disponível na altura:  
        
        – Estou a relê-lo – respondia o Tendeiro! 
         
        Outra mina 
         
        O tempo estava encoberto, o calor era sufocante, prenúncio de trovoada. 
        Dirigíamo-nos para a caserna, quando ouvimos o Cabo-cifra: 
        
        – Meu Furriel, meu Furriel!  
        
        Parámos. Então ele entregou uma mensagem ao Furriel 
        Tendeiro. 
        
        – Que há?! – Pergunto.  
        
        Ficaram os dois calados a olhar um para o outro.  
        
        – Ó Ribau, eu já venho – disse o Tendeiro. 
        
        E enquanto ele se dirigia para o Comando, o 
        Cabo-cifra dirigiu-se apressadamente para o seu posto, certamente para 
        que eu não repetisse a pergunta a que ele não poderia responder. Era 
        segredo militar. 
        
        Mau há arroz queimado! -Pensei. A coluna de São 
        Salvador ainda não chegou. Que diria a mensagem? O que for soará. Eu já 
        estava por tudo! E continuei a dirigir-me para a caserna, onde contei ao 
        Sargento Carvalho o que se tinha passado. 
        
        – Mau. Há merda! – Diz ele. 
        
        Nisto aparece o Alferes do primeiro pelotão, dizendo 
        para os seus Sargentos:  
        
        – Preparar o pelotão para sair imediatamente. Mais 
        uma mina rebentou debaixo da GMC. Avisem o Sargento mecânico para 
        preparar a viatura de desempanagem e seguir atrás de nós. 
        
        – Há feridos? – Perguntámos quando o Alferes o 
        permitiu, já que tinha falado de rajada. 
        
        – Só o homem que vinha ao lado do condutor foi 
        cuspido para fora da viatura mas tem só ferimentos ligeiros. 
        
        – Valha-nos ao menos isso – dissemos.  
        
        Os sacos de terra resultaram. Era o que se ouvia. Até 
        que chegou a GMC rebocada pelo Unimog. Parecia um monstro rebocado por 
        uma ovelha. Foi encostada à oficina e descarregada. 
        
        Tinha pisado a mina com a roda da frente do lado 
        direito. Embora forte, toda aquela área tinha sido destruída. Parte da 
        carga que vinha à frente ficou inutilizada. A maior desgraça foi a 
        cerveja, que vinha à frente. Mais de metade das garrafas partiram-se. 
         
        Cerveja ao preço dos olhos da cara... 
         
        Chamei a atenção do Sargento Lino, que observava a viatura, pensando 
        talvez numa possível reparação.  
        
        – Olha, a cerveja foi quase toda embora. 
        
        O Lino olhou-me, e disse:  
        
        – E eu que, quando estava a amarrar a GMC ao Unimog, 
        reparei no líquido e pensei que fosse a água do radiador que ficou 
        destruído! 
        
        Sobre os mantimentos que tinham sido inutilizados e 
        que se destinavam à alimentação do pessoal, foi feita uma participação 
        da ocorrência, e o assunto ficou resolvido. 
        
        Mais tarde, iam chegando as viaturas. “Pôrra, os 
        sacos de areia fazem na verdade jeito!” – pensei. 
        Quanto à cerveja e outras bebidas destinadas à cantina, nada a fazer, a 
        cantina teria de pagar. O responsável pela cantina, um soldado da 
        companhia, deitava as mãos à cabeça: 
        
        – Não pode ser. A cantina não tem dinheiro. Vende 
        tudo ao preço de custo. O único lucro que eu tiro disto é ter sido 
        dispensado de ser operacional!  
        
        E já não é pouco, pensei com os meus botões! 
        
        O Soldado lá resolveu com o Capitão que o custo total 
        das bebidas seria dividido pelo número das bebidas que ficaram 
        operacionais, não havendo assim prejuízo para a cantina! 
        
        O pior era quando alguém ia para tomar uma bebida 
        fresca. Custava o dobro do preço e só a cantina tinha frigorífico. Havia 
        reclamações que passando pelo Primeiro-Sargento, chegaram ao Capitão. 
        Nada feito. Estava decidido; era assim e não havia nada a fazer! 
        
        Nessa altura fiquei convencido de que, além do 
        encarregado da cantina, também os dois mamavam na mesma teta, pois havia 
        outras possibilidades de resolver o problema. E assim as bebidas da 
        viatura minada levaram imenso tempo a ser consumidas. 
        
        Sacanas dos “turras”. A primeira mina foi um acto de 
        guerra. Levou-nos quatro companheiros! Nada podemos fazer. Agora mais 
        uma mina... filhos da puta! Não perderão pela demora. O dia há-de 
        chegar! 
        
          
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        GMC minada  | 
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        Uma escola! 
         
        No dia seguinte foi o nosso pelotão fazer uma patrulha diurna. Em vez de 
        tomarmos a estrada para São Salvador, resolvemos tomar a estrada que 
        dava para Cuimba. Seguimos caminho, passámos a sanzala destruída onde 
        tínhamos feito a primeira emboscada. Por ali nunca tinha sido feito 
        patrulhamento fora da estrada. O soldado que ia à frente parou:  
        
        – Que há? – Perguntou o Alferes chegando-se à frente 
        do pelotão.  
        
        – Uma picada que segue para a esquerda, não parece 
        muito utilizada, nem ter sido utilizada há pouco tempo – diz o Soldado.  
        
        – Vamos explorar essa picada – retorquiu o Alferes. 
        
        Seguimos com cuidado. A picada nunca mais tinha fim, 
        como era natural. Possivelmente ia dar ao Congo. Procurámos indícios de 
        utilização. Nada. Seguimos e mais adiante notamos uma árvore frondosa 
        para a qual nos dirigimos com cuidado. Ao aproximarmo-nos, notamos uma 
        coisa extraordinária: em volta do tronco e dispostos em círculo, havia 
        bancos corridos. Eram feitos de estacas espetadas no chão com tábuas 
        pregadas. 
        
        – Ali era uma escola! – Digo eu. Por perto deve haver 
        uma sanzala, ou uma Missão. 
        
        Fiquei a olhar a árvore. Um belo exemplar dos muitos 
        que existiam por estas bandas. Noto, pendurado por um fio, um pedaço de 
        ferro. Toco-lhe com o cano da minha arma e dele sai um som puro, 
        estridente, que se propagou e fez ouvir com certeza a quilómetros de 
        distância. Era a sineta para chamar os alunos! Todos ficámos espantados 
        com a escola. 
        
        O Alferes repreendeu-me por eu ter feito aquilo. 
        Podia ter “acordado” o IN. Sentámo-nos depois de ter posto alguns homens 
        de sentinela, todos de gargalo no ar. Uma escola! Devia haver sanzalas 
        por perto e o missionário viria de bicicleta de São Salvador do Congo. 
        Eram uns bons 60Km. Ou viria de outro lado! Quando chegava, tocava a 
        sineta e os alunos iam aparecendo, conjecturei eu! 
        Quando nos dirigíamos de Luanda para o Norte, notámos que nas povoações 
        mais desenvolvidas havia Missões que serviam de apoio aos missionários, 
        prestando assistência moral, médica e material, quando possível, aos 
        moradores dessas zonas. 
        
        Seguimos caminho e quando demos por isso era quase 
        noite. Voltar para trás era perigoso, pois a picada com a noite não se 
        via. Podíamos perder-nos ou ter um mau encontro quando menos o 
        esperássemos. Embora sem comer, pois só tínhamos levado uma bucha que 
        serviu de almoço (em operação apeada, quanto mais leves melhor), 
        resolvemos avançar até se ver, e depois montar emboscada. 
         
        Tendo por quarto o cemitério 
         
        Mais adiante, apareceu-nos ao lado da picada, um cemitério. Eram campas 
        em adobe, com uma altura de cerca de cinquenta centímetros. Algumas 
        tinham o nome das pessoas lá sepultadas. Resolvemos montar aí a 
        emboscada, embora com a relutância de muitos. Era uma falta de respeito 
        para com os mortos.  
        
        – Pois é – disse eu – mas as campas em caso de 
        necessidade, podem servir-nos de abrigo. 
        
        Foi comunicada a situação à base, via rádio – desta 
        vez funcionou – e que no dia seguinte, quando chegássemos à estrada 
        comunicaríamos a nossa posição para as viaturas nos irem buscar.  
        
        Entalado entre duas campas, nessa noite fiquei 
        descansado. Também nada aconteceu, a não ser um ataque de formigas, que 
        deviam ter os ninhos nas próprias campas. 
         
        De regresso a “Casa” 
         
        Ao romper da manhã regressámos à estrada; comunicámos à Companhia a 
        nossa posição e aguardámos. Sentei-me num talude à beira da estrada, a 
        olhar o ambiente, como eu costumava dizer. Capim. Matas e mais matas. 
        Ah! E ao longe a Serra da Canda, famosa pelo arvoredo e onde no 
        princípio da guerra, em 1961, se acoitaram os “turras” que depois 
        desceram para as fazendas do café (e para tudo quanto fosse de branco), 
        matando e destruindo sem dó nem piedade. 
        
        Lá estava a famosa cascata que, segundo diziam, tinha 
        350 metros de altura. Na base dessa maravilha da natureza havia uma 
        fazenda de citrinos da CUF que, diziam os que lá passaram, era um mundo. 
        Nem electricidade faltava vinte e quatro horas por dia. Aproveitaram a 
        força da água da cascata, fizeram um desvio e montaram um gerador 
        eléctrico que era movido pela água. Havia a casa do encarregado, um 
        engenheiro agrícola, e casas para os trabalhadores. Havia! Agora foi 
        tudo destruído pela fúria assassina. Não compreendo como se fizeram 
        tantas barbaridades, materiais e humanas! Doutrinados pelos que queriam 
        o poder, foram convencidos de que tudo o que era dos brancos ficaria 
        para eles, incluindo as mulheres. Muitos pagaram com a vida a sua 
        inocência ou a sua fúria de destruição. 
        
        Nunca pude ir àquela fazenda. Gostaria de a ter 
        conhecido mas não ficava na zona da nossa Companhia e as pontes estavam 
        destruídas. 
        
        Fui acordado daqueles pensamentos pelo ronronar das 
        viaturas, que chegavam vagarosamente. Toca a subir. Vamos ao café. A 
        fome, uma necessidade natural, desperta-nos a vontade de ter algo para 
        comer! E lá regressámos a casa, como nós dizíamos.  
        
        Os dias iam passando, uns a seguir aos outros… Nada 
        de novo, felizmente. Era uma pasmaceira. Patrulhas diurnas eram o 
        pão-nosso de cada dia. Por vezes, lá acontecia alguma coisa! 
  
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