Verdemilho

Daniel Paiva Martins, Verdemilho. Memórias de um cidadão comum, 1ª ed., Aveiro, 2007, 184 pp.

I

APRESENTAÇÃO

 

Vivam!

Não serão muitos, mas penso que haverá leitores que já me conhecem. Não obstante, para que esse conhecimento seja geral, vou apresentar-me: sou o Luís, um vosso criado! Luís Augusto, de Verdemilho, nascido em 1938.

Sobretudo dentre os que nasceram nesse ano, há quem diga que a geração de 38 foi a melhor safra de Portugueses do Século XX. Assim uma espécie de Vintage, ou seja, uma colheita de qualidade excepcional – como nos vinhos. A dica parece simpática para o ego da malta, mas não passa duma "boutade". À guisa de exemplo, diria que na rapaziada de Verdemilho dessa era, comigo incluído, nada vejo de particularmente notável. A não ser, claro, a circunstância de essa geração ter tido uma experiência de vida excepcionalmente rica, devido à inusitada profundidade e rapidez com que, durante a sua existência, surgiram e se multiplicaram transformações sociais tão fundas, tão radicais que viraram o mundo do avesso. Nunca geração alguma pôde anteriormente experimentar situação semelhante.

Repare-se então – e vou citar só factos objectivos.

Em crianças, sofremos as vicissitudes decorrentes da 11 Grande Guerra, que começou quando tínhamos apenas um ano. Embora Portugal não tivesse entrado nela como beligerante, ao contrário do que acontecera na primeira, / 12 / as suas consequências, sobretudo no plano económico e social, foram mesmo assim um longo, penoso e duríssimo calvário para o nosso povo: o racionamento de bens essenciais, cujo comércio livre não era permitido, a somar à miséria que a sua vida já era mesmo sem isso, trouxe a fome a grande parte da população. Cada família, segundo o número das pessoas que constituíam o seu agregado, recebia umas senhas que lhe davam direito a comprar na mercearia, mensalmente, uma determinada quantidade de bens alimentares essenciais. Essa quantidade era tão diminuta, face às suas necessidades, que nem mesmo passando muita fome as pessoas poderiam sobreviver assim. Coisas tão básicas como pão, açúcar, arroz, massa, manteiga, feijão, eram dificílimas de arranjar. Nas cidades, provavelmente ainda terá sido pior do que nas aldeias, porque nestas, pelo menos aqueles que tivessem um pedacito de quintal, podiam plantar batatas e couves para comer. Na nossa região não se produz azeite. Mesmo no mercado negro, naquele tempo, esse era porventura o produto mais difícil de encontrar aqui. Valia ouro. Quando o meu pai conseguia comprar algum, no mercado negro, a minha mãe dava-nos a escolher como queríamos o escorrido da ceia: ou se acompanhavam as batatas e couves com um peixinho, comendo-­as a seco; ou com um fiozinho de azeite, misturado num pouco da água de cozer as couves, para parecer mais, mas sem peixe. As duas coisas ao mesmo tempo – azeite e peixe – é que não podia ser. Aliás, uma simples sardinha, quando havia, era repartida por duas ou três pessoas. Nós – eu e os meus irmãos – gostávamos muito mais do fiozinho de azeite do que do peixe.

Contudo, mesmo na aldeia as coisas não se passavam do modo pacífico que à primeira vista possa parecer. O Governo do Estado Novo – ou seja, Salazar! – obrigava os lavradores a declararem as suas produções, que teriam de entregar nos Grémios da Lavoura, a preços que o próprio Governo determinava. Era o chamado Manifesto. Esses produtos essenciais eram depois vendidos pelo Governo aos países beligerantes, para alimentar os exércitos em luta. Se pensarmos que, nessa altura, toda a Europa não passava dum imenso campo de batalha, sem qualquer agricultura possível, está a ver-se o valor elevadíssimo que o preço dos alimentos produzidos pelos nossos lavradores atingia! Era isso o que, acima de tudo, interessava ao Governo de Salazar, que aproveitava para encher de ouro os cofres do Banco de Portugal – ainda que à custa da fome generalizada da população portuguesa, coisa que aparentemente pouco o incomodava.

É evidente que, face a esse quadro, os lavradores aprenderam prontamente a defender-se: se produzissem cem, manifestavam só sessenta ou setenta. / 13 / Tratavam assim de garantir não serem obrigados a entregar toda a produção, ficando eles próprios com o mínimo indispensável ao sustento da família e mais algum que pudessem vender à socapa, para melhorar um pouco a sua pobre condição financeira. Era isso o mercado negro – no fundo, uma verdadeira pobreza: um dia, a minha mãe escapou por pouco de ser presa pela GNR, ao vender na feira da Palhaça cinco quilos de milho que levara de casa, escondidos no meio da hortaliça.

No início da década de oitenta, quando era Primeiro-Ministro o Dr. Mário Soares, aconteceu uma coisa curiosa: a certa altura, o Governo apercebeu­ se de que estaria iminente uma rotura do stock de batata existente no circuito comercial. Para evitar os graves problemas de abastecimento público que adviriam dessa rotura, foi decidida uma importação urgente duns largos milhares de toneladas de batata, proveniente da Holanda. Quando, pouco tempo depois, essa batata importada chegou ao País, caiu o Carmo e a Trindade, com os jornais a anunciar, em grandes parangonas, que os lavradores do Nordeste Transmontano estavam com os armazéns atulhados de milhares de toneladas de batata de consumo que não tinha saída. Foi um problema tremendo. Ninguém entendia. Deu-me certa vontade de rir, porque a explicação era simples: os lavradores, que são pessoas que trabalham no campo de sol a sol e não lêem jornais, não vêem televisão e olham os políticos com desconfiança, andaram perto de meio século a esconder do Governo a produção real – para poderem assegurar a sua própria sobrevivência. A situação política mudou em 25 de Abril de 1974 – mas os hábitos, profundamente arreigados em meio século de prudência extrema, não se perdem dum dia para o outro. Conclusão: Trás-os-Montes estava cheia de batata... mas o Governo não sabia, porque esse facto lhe tinha sido escondido. E somaram-se dois prejuízos: foi a batata da produção nacional que se estragou e a batata desnecessariamente importada, que teve de se pagar.

O mau passadio dessas décadas, de trinta a cinquenta, e a falta de condições de higiene eram um convite à proliferação das mais variadas doenças. Com as pulgas, os piolhos e as lêndeas vinham o tifo e outras maleitas; com a fome grassava a tuberculose, que fez autênticas razias, dizimando famílias inteiras, algumas bem numerosas, cujos membros foram morrendo um a um até não restar ninguém. Porque, numa época em que ainda não havia antibióticos, mesmo a mais simples das infecções de hoje era uma doença muito difícil – por falta de medicamentos eficazes para a combater. Este panorama tenebroso só começou a ser revertido, pouco a pouco, a partir de / 14 / finais dos anos cinquenta com o aparecimento da estreptomicina no combate à tuberculose.

Era assim a nossa vida naquele tempo!

Mais tarde, na juventude, fomos nós que, em África, combatemos nas guerras coloniais. O primeiro indício dessas guerras deu-se com os ataques do MPLA, na noite de 4 de Fevereiro, às esquadras de polícia, em Luanda; e o seu início efectivo ocorreu, logo a seguir, com a matança generalizada dos colonos brancos, em todo o norte de Angola, na manhã de 15 de Março de 1961, matança longamente programada e organizada pela UPA (União dos Povos de Angola), de Holden Roberto, com o apoio dos EUA, que na época eram presididos por John Fitzgerald Kennedy. Em consequência disso, a nossa juventude foi enviada para Angola, como eu próprio; posteriormente, outros foram para Moçambique e depois para a Guiné. Houve também os que, em vez de irem para África, sofreram a experiência dolorosa de ficar prisioneiros de guerra na Índia, abandonados à sua sorte pelo Governo de Salazar (que os considerava traidores, por não se terem deixado matar, e não os queria reconhecer como prisioneiros de guerra), durante seis longos meses, aquando da tomada dos territórios de Goa, Damão e Diu pelas tropas da União Indiana, em Dezembro de 1961. Tudo experiências traumatizantes, que deixaram um rasto doloroso de sofrimento profundo na nossa sociedade. E não só na minha geração. Em muitos casos, as funestas consequências desse trauma ainda hoje persistem, no sofrimento de muitos ex-combatentes e suas famílias.

Já adultos, vivemos e temos acompanhado a evolução do nosso País nestes últimos cinquenta anos, desde uma sociedade maioritariamente rural, miserável e analfabeta, manietada pela Ditadura, até à sociedade dos nossos dias, aberta, moderna e democrática, que luta contra o analfabetismo e as desigualdades sociais. Quase apetece dizer que o mundo em que vivemos hoje não é mais aquele em que nascemos e crescemos!

Porém, nem tudo são rosas. Ultimamente, assiste-se a uma perda terrível das referências tradicionais. Os valores morais e sociais estão em crise; mais do que isso, estão a ser objecto de ataques sistemáticos. Permanentemente. Uma grande maioria do povo continua a não ler livros, nem jornais ou revistas sérias. Só "vê" as revistas "cor-de-rosa", cujas tricas se apraz a comentar. Aliás, certo número de órgãos da comunicação social, e em particular algumas televisões, que exibem uma programação de nível / 15 / baixíssimo, numa falta de qualidade que chega a parecer ofensiva, de tanto apelar só ao superficial mais fútil, promovem objectivamente a mediocridade. O resultado tangível desse quadro é vermos grassar à nossa volta um número, cada vez mais avassalador, de pessoas que, sabendo formalmente ler e escrever, são incapazes de interpretar e entender uma mensagem escrita, por simples que seja. É uma pena!

Mas não é só isso. São os impostos opressivos; é a Segurança Social em risco; é a saúde cada vez mais difícil, sobretudo para os mais pobres e que vivam nas aldeias (ou mesmo vilas e cidades) do interior, que vêem as Urgências, as Maternidades e os Centros de Saúde a fechar; são as falências que se multiplicam, com empresários a encerrarem empresas de forma selvagem, deixando o pessoal com salários em atraso e sem perspectivas de vir a receber o quer que seja dos seus direitos naturais – sem que a eles, empresários, ninguém peça contas; e as multinacionais a desactivar as suas fábricas aqui e a transferi-las para outras paragens – tudo isto tantas vezes em atropelo às regras mais elementares, sem quaisquer consequências... porque a Justiça que temos(?) parece que só funciona contra os pequeninos: os grandes e poderosos, curiosamente, vêm ficando sempre impunes ­independentemente da gravidade dos crimes de que porventura sejam acusados.

Não fora este quadro dramático, e o desemprego que grassa no País como uma nódoa negra que aumenta todos os dias, fonte de desgraça e miséria generalizada, a fazer lembrar os tempos da nossa infância... poder-se-ia dizer que hoje somos um povo feliz.

Através de historietas simples, ao falar-lhes da minha vivência pessoal, vou também referir o viver quotidiano das gentes da minha terra, com enfoque particular nos meados do Século XX. Afinal, essas histórias caracterizam, e de algum modo definem, o meio social e humano em que nasci e cresci, que constituiu sempre o pano de fundo em que se projectou o filme da minha vida.
 


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