Henrique J. C. de Oliveira

VII - REFLEXÕES CICLÍSTICAS E NÃO SÓ...
ou
DA DIALÉCTICA AMOROSA ENTRE UM MIÚDO E UMA BICICLETA

Ciclismo

Um namoro nunca começa de repente e de maneira avassaladora, mesmo tratando-se de um miúdo e de uma bicicleta. Como todos os namoros, começa aos poucos, conquistando-se pouco de cada vez.

Até que o miúdo se pusesse em cima dela e começasse a ter o prazer de uns passeios, apesar da desproporção de idades, digo, de tamanhos entre um simples fedelho e uma bicicleta inglesa, adulta e experiente, houve uma lenta progressão.

Ainda se recordam como começou esta relação que acabou mal? Ainda se lembram que os primeiros apelos partiram dela, ajudada pelas carícias do sol daquelas tardes de Inverno?

Naqueles momentos do fim do dia em que o miúdo não tinha companheiros com quem brincar, refugiava-se naquela enorme sala de aula, de carteiras vazias e com estreitas avenidas entre elas.

Ao princípio, começou o namoro por simples carícias. O miúdo limitava-se a acariciar a bicicleta, a apalpar-lhe os pneus  vazios, para ver se ainda estavam capazes de se encherem do ar da vida, a fazer girar os pedais, para ver se não estavam perros e prontos a imprimir o impulso acelerador, a apertar os travões, para ver o que realmente faziam, e a admirar-lhe os cromados e as letras douradas, que lhe lembravam aqueles toques de beleza com que a mãe, antes de sair, procura melhorar ainda mais a sua bela aparência física.

Depois, muito sub-repticiamente, começou a medir as diferenças de proporções entre eles. E da esticadela dos braços para medir a altura passou a agarrar nas pegas do guiador e a experimentar apertar as alavancas dos travões, procurando avaliar o resultado da força daqueles deditos ainda jovens. E quase sem dar por isso, estava a bicicleta desencostada da parede e em posição bem erecta, bem equilibrada. E quando começava a fazê-la passear por entre as filas das carteiras, como se fossem estreitas avenidas, e a ganhar cada vez mais confiança, lá surgia imprevistamente a mãe a ralhar-lhe:

- Já te disse para deixares a bicicleta sossegada no sítio onde está! Andas a ver se te aleijas?

Ouvido o ralhete, às vezes seguido de um ligeiro tabefe que não lhe fazia desviar os pensamentos, a bicicleta voltava contrariada para o local de descanso e o miúdo saía da sala, embeiçado e com vontade de regressar.

Estas cenas de namoro contrariado foram-se repetindo e ligando cada vez mais profundamente o miúdo à bicicleta.

Em breve, o miúdo já não se contentava em andar a passear de mão dada com ela pelo meio das carteiras. Adquirida completamente a confiança, pretendia saltar-lhe para cima, aproveitando aquele largo selim de coiro e com molas, que mais parecia um sofá. Ela era grande demais para as pernas dele. Mas o desejo era maior que elas e capaz de fazer vencer todos os obstáculos. Tal como todas as paixões acesas, também esta fez girar as engrenagens inventivas do catraio.

Colocando a bicicleta no meio das carteiras, é fácil saltar-lhe para cima, de rabo bem assente no selim. E com um pouquito de esforço, esticando os braços curtos, torna-se possível agarrar o guiador. E apoiando os pés nas carteiras, é fácil dar um mínimo de impulso para manter o equilíbrio, mesmo que os pés tenham dificuldade em chegar aos pedais.

Em breve a bicicleta estava dominada pelo fedelho. Após alguns dias de treino, estava um ás do pedal, mesmo sem chegar-lhes com os pés. Colocava a bicicleta no meio das filas de carteiras, sentava-se no selim após subir para os bancos das carteiras, dava balanço e lá ia ele em gincana acelerada por entre as filas, transformando a sala de aula numa pista de corridas.

E os dias foram-se sucedendo sem qualquer azar, até ao dia daquele funesto acontecimento que não conseguiu apagar-lhe a paixão que ainda hoje perdura, apesar dos muitos anos já passados.    >>>

 

 

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