Até que o miúdo
se pusesse em cima dela e começasse a ter o prazer de uns passeios,
apesar da desproporção de idades, digo, de tamanhos entre um
simples fedelho e uma bicicleta inglesa, adulta e experiente, houve
uma lenta progressão.
Ainda
se recordam como começou esta relação que acabou mal? Ainda se
lembram que os primeiros apelos partiram dela, ajudada pelas
carícias do sol daquelas tardes de Inverno?
Naqueles
momentos do fim do dia em que o miúdo não tinha companheiros com
quem brincar, refugiava-se naquela enorme sala de aula, de carteiras
vazias e com estreitas avenidas entre elas.
Ao
princípio, começou o namoro por simples carícias. O miúdo
limitava-se a acariciar a bicicleta, a apalpar-lhe os pneus
vazios, para ver se ainda estavam capazes de se encherem do ar da
vida, a fazer girar os pedais, para ver se não estavam perros e
prontos a imprimir o impulso acelerador, a apertar os travões, para
ver o que realmente faziam, e a admirar-lhe os cromados e as letras
douradas, que lhe lembravam aqueles toques de beleza com que a mãe,
antes de sair, procura melhorar ainda mais a sua bela aparência
física.
Depois,
muito sub-repticiamente, começou a medir as diferenças de
proporções entre eles. E da esticadela dos braços para medir a
altura passou a agarrar nas pegas do guiador e a experimentar
apertar as alavancas dos travões, procurando avaliar o resultado da
força daqueles deditos ainda jovens. E quase sem dar por isso,
estava a bicicleta desencostada da parede e em posição bem erecta,
bem equilibrada. E quando começava a fazê-la passear por entre as
filas das carteiras, como se fossem estreitas avenidas, e a ganhar
cada vez mais confiança, lá surgia imprevistamente a mãe a
ralhar-lhe:
-
Já te disse para deixares a bicicleta sossegada no sítio onde
está! Andas a ver se te aleijas?
Ouvido
o ralhete, às vezes seguido de um ligeiro tabefe
que não lhe fazia desviar os pensamentos, a bicicleta voltava
contrariada para o local de descanso e o miúdo saía da sala,
embeiçado e com vontade de regressar.
Estas
cenas de namoro contrariado foram-se repetindo e ligando cada vez
mais profundamente o miúdo à bicicleta.
Em
breve, o miúdo já não se contentava em andar a passear de mão
dada com ela pelo meio das carteiras. Adquirida completamente a
confiança, pretendia saltar-lhe para cima, aproveitando aquele
largo selim de coiro e com molas, que mais parecia um sofá. Ela era
grande demais para as pernas dele. Mas o desejo era maior que elas e
capaz de fazer vencer todos os obstáculos. Tal como todas as
paixões acesas, também esta fez girar as engrenagens inventivas do
catraio.
Colocando
a bicicleta no meio das carteiras, é fácil saltar-lhe para cima, de rabo bem assente no selim. E com um pouquito de esforço,
esticando os braços curtos, torna-se possível agarrar o guiador. E
apoiando os pés nas carteiras, é fácil dar um mínimo de impulso
para manter o equilíbrio, mesmo que os pés tenham dificuldade em
chegar aos pedais.
Em
breve a bicicleta estava dominada pelo fedelho. Após alguns dias de
treino, estava um ás do pedal, mesmo sem chegar-lhes com os pés.
Colocava a bicicleta no meio das filas de carteiras, sentava-se no
selim após subir para os bancos das carteiras, dava balanço e lá
ia ele em gincana acelerada por entre as filas,
transformando a sala de aula numa pista de corridas.
E
os dias foram-se sucedendo sem qualquer azar, até ao dia daquele
funesto acontecimento que não conseguiu apagar-lhe a paixão que
ainda hoje perdura, apesar dos muitos anos já passados. >>> |