Se consultarmos um
dicionário rapidamente concluímos o que a palavra «DIÁSPORA» significa:
«Do grego antigo (διασπορά
– 'dispersão'), a palavra define o deslocamento, normalmente forçado ou
incentivado, de grandes massas populacionais originárias de uma zona
determinada para áreas de acolhimento distintas».
Ílhavo é uma cidade
que, ao longo da sua extensa história, viveu sempre mergulhada nessa
situação, começando pelas suas origens tradicionais e continuando com
uma significativa redução da sua população na época das descobertas, a
qual de uma forma anónima participou nessa epopeia, morrendo e
colonizando as mais variadas partes do globo terrestre.
Também durante essas
e outras quebras recebeu povos de diversos locais, que para cá vieram
trabalhar e se foram adaptando aos nossos costumes e tradições,
possivelmente cruzando-se com o excesso de mulheres existentes e
permitindo que os seus filhos recebessem, via cordão umbilical, as
características dos Ílhavos.
Hoje parece, mais uma
vez, que se está a formar uma nova diáspora, constituída por um segmento
da sociedade, cultural e tecnicamente evoluído, que no exterior procura
trabalho de acordo com as suas capacidades intelectuais, porque,
infelizmente, não existe no seu município.
Uma diáspora
relativamente bem documentada é aquela que se espalhou pelos Estados
Unidos da América, porque, a partir de determinada data, o «amigo
americano» começou a controlar e a inspeccionar a entrada de
estrangeiros por Nova Iorque; e conheço, pelo menos desde 1906, listas
de entradas de ílhavos na mira do «sonho americano». Além das referidas
relações, a nossa diáspora americana pode ser confirmada pela existência
na terra do «Tio Sam» de nomes de família característicos da nossa
cidade. Os Ílhavos que foram para os USA participaram em todas as
vertentes da sociedade americana, havendo mesmo alguns que combateram
nos conflitos internacionais em que aquela Nação se tem envolvido.
Mas hoje venho aqui
lembrar aquela nossa diáspora que se espalhou ao longo do litoral
português, conhecida de um modo seguro há muito tempo, mas que alguns
nos tentam contar só agora, cheia de mitos e, segundo parece, baseada
num trabalho de casa muito ligeiro.
Os ilhavenses com
mais de meio século lembram-se de ler nos manuais escolares das décadas
de 1950/60 referências aos ílhavos e às suas migrações nacionais,
não havendo portanto dúvida que já era do conhecimento nacional e os
governantes de então tinham interesse que todos soubessem, pois os
nossos antepassados foram a origem de grande parte das populações do
litoral português.
Também, pelo menos ao
longo dos dois últimos séculos, houve escritores nacionais e locais que
se referiram de forma bem visível a essa diáspora espalhada um pouco por
todo o litoral, sendo de destacar, em 1846,
As viagens na minha terra
de Almeida Garrett; em 1876, a
Nouvelle Géographie Universelle
de Élisée Reclus;
em 1922, Os
pescadores de
Raul Brandão; em 1989, os
Varinos
de Micaela Soares; e em 1995, a
Safra
de Helena e Paulo Lopes.
Almeida Garrett, no
primeiro capitulo da obra referida, caracteriza bem os «Ílhavos»,
comparando-os com os autóctones do Tejo, referindo o aspecto físico, o
traje, as actividades e até o tempo que demoravam do Vouga ao Tejo, como
o excertos seguintes, retirados do texto original:
«–
Dou-lho eu, senhor...» – acode cortesmente outra figura mui diversa,
cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do moçárabe
ribatejano.
Em vez do calção
amarelo e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado,
estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado
siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, têm o cunho
da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e
móveis, a forma ágil…
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– «Não é
questão», tornou o Ílhavo: «mas, se este senhor fidalgo anda por
Almeirim, para Almeirim vamos nós que era uma charneca o outro dia, e
hoje é um jardim benza-o Deus! – mas não foram os campinos que o
fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e
fez terra das areias da charneca.
– «Não, não é!
Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que
é como quem semeia em manteiga. É uma lavoura que a faz Deus por Sua
mão, regar e adubar e tudo – e o que Deus não faz, não fazem eles, que
nem sabem ter mão nesses mouchões co plantio das árvores: só lá por cima
é que algumas têm metido, e é bem pouco para o rio que é, e as ricas
terras que lhes levam as enchentes.» – «Mas nós, pé no barco pé na
terra, tão depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por
aí abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar na areia por não
haver água... mas sempre labutando pela vida…»
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«– Pois nós que
brigamos com o mar, oito e dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a
Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais
força?...»
Mas deixemos os
escritores, que todos podem ser lidos se os procurarmos, e vamos a algo
mais difícil de atingir: os indícios históricos e o legado que eles
deixaram ao longo do país.
E a começar, vamos
lembrar um documento judicial de 1686 onde, entre outros, é referido
como participante «da Villa de
ilhauo, o lecenceado Manoel Francisquo»,
o qual refere a dado momento: «…estão
faltos por falta de dita terra noua que passou aos inglezes franqueza da
Barra que as áreas impediram, e habitaçam das embarcaçoens grandes que
em todo faltam, e outras particulares razoens que fazem falta o
Comercio…». E mais à frente o referido monumento continua: «…muitas
pessoas da ditta Villa pobres trabalhadores pescadores se auzentaram
para diuerças partes deste Reino, por não poderem tolerar e pagar as
fintas das ditas sizas…»
Como se pode
observar, já no fim do século XVII se tinha a consciência de que a pesca
do bacalhau tinha acabado, sendo mesmo referidas as razões; e havia
pescadores a partirem das povoações das margens Ria de Aveiro e, apesar
de ser um documento relativamente longínquo, é fácil encontrá-lo na «Colectânea
de DOCUMENTOS HISTÓRICOS»,
organizada por António Madail e publicada em 1959.
Mas não é só este
documento que nos alarga no tempo a colonização do litoral pelos Ílhavos.
Temos, por exemplo, o poeta Filinto Elísio, com o nome de baptismo
Francisco Manuel do Nascimento, que nasceu em Lisboa, em 1734, e que era
filho de um fragateiro e de uma peixeira, ambos de Ílhavo, que, como
muitos outros, foram procurar longe o pão que a terra mãe lhes negava.
Quanto à deslocação,
a pedido do Marquês de Pombal, de ílhavos para a recém-construída Vila
Nova de Arenilha, no Algarve, o trabalho de casa não foi muito, pois
Inês Amorim refere-a em 1996 no seu trabalho
Aveiro e sua
provedoria no séc. XVIII (1690-1814),
onde nos mostra que até os responsáveis do Reino de Portugal tinham
conhecimento da forte acção colonizadora dos nossos antepassados. Apesar
de alguns ílhavos terem na altura mudado, de armas e bagagens, para
aquele canto de Portugal, não viram com bons olhos a sua instalação numa
povoação que tinha grandes problemas sísmicos, ficando por Monte Gordo
e, quando lhes queimaram os palheiros que possuíam, preferiram partir
para Isla Cristina em Espanha a ocupar as casas novas da vila pombalina.
Também na pintura e
fotografia é possível encontrar indícios dos nossos movimentos ao longo
das praias de areias douradas de Portugal, havendo, por exemplo, no
Museu da Marinha, em Belém, e no museu Castro Guimarães, em Cascais,
pinturas de João Vaz, nascido em Setúbal em 1859, onde são claramente
visíveis duas ílhavas com as suas velas de pendão. Na já referida cidade
de Setúbal, no seu mercado, há várias painéis de azulejo com canoas de
tábuas; e um pouco por todo o lado há fotografias e postais bem antigos
com as nossas embarcações tradicionais, desde Matosinhos a Vila Real de
Santo António, geralmente em praias largas de areia, mas também em
locais mais agrestes como o Baleal, Peniche, Cascais e Sesimbra.
Continuando-se à
procura de indícios da nossa diáspora, a Internet é um local fácil para
a encontrar, pois na história de muitas das povoações litorais é,
geralmente, referida a instalação dos nossos antepassados com os seus
palheiros de madeira ou faxinagem local.
Apesar de todos os
indícios referidos, achei que seria interessante procurar as
descendentes das embarcações utilizadas e, logicamente, visitei essas
praias de areias douradas, tendo encontrado bateiras semelhantes às
nossas na Cova da Gala, no rio Tejo, no estuário do Sado, na Cascalheira,
e na caldeira de Tróia, na lagoa de Santo André e em Olhão. No Rio
Mondego ainda navega uma «barca serrana» muito semelhante à «ílhava»,
com uma vela muito característica, entre a redonda e o pendão; e na
Nazaré há duas embarcações que são canoas de tábuas com painéis de popa,
possivelmente por ali a passagem da rebentação ser mais fácil.
Foi interessante
percorrer o caminho da nossa diáspora e, felizmente, foram dissipados
muitos dos tais «mitos», mas ficaram duas dúvidas sem resposta:
Em primeiro lugar,
estranhei encontrar em alguns locais, como por exemplo Peniche e Olhão,
a «renda de bilros» no artesanato local, a qual também existe na Póvoa
de Varzim e nos Açores, enquanto em Ílhavo as nossas mulheres fazem
normalmente croché. A situação levanta-me uma dúvida sobre a passagem
por Ílhavo da dita renda e o seu possível abandono ou não por esta nova,
mais fácil de produzir e que não exige grande número de artefactos.
Segundo, também
encontrei na Caparica, Sesimbra e Setúbal a tradição de realizar umas
procissões fluviais a que chamam «Círios», referindo-se a sua origem em
Ílhavo; e também esta tradição da diáspora não existe já na nossa
cidade, sendo no entanto normal na Gafanha da Nazaré.
O REPÓRTER DO CNAI
António Angeja
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