| 
              
                | É
                  MESMO MACACA, O RAIO DA VIDA! |  Dois jovens, um rapaz e uma rapariga, aparentando uns doze ou treze
            anos, sentaram-se numa mesa ao lado da minha. Mandaram vir um
            refrigerante e uma tosta mista. Devorado com apetite o que tinham
            pedido, tiraram os cadernos e livros das pastas e propuseram-se
            estudar ou rever conhecimentos, Parece que iam ter um teste a uma
            dada disciplina, se não no dia seguinte, pelo menos durante a
            semana em curso.
            
             Como tinha mais com que me entreter, deixei de prestar atenção
            aos dois que estavam ao meu lado, Se eles iam estudar, eu tinha uma
            revista científica que comprara, para me informar sobre as últimas
            descobertas e inovações da ciência.
            
             Estava embrenhado na minha leitura quando a voz da mocita me trouxe
            de novo à realidade. Ela falava alto e não podia deixar de ouvir a
            sua voz cristalina e vibrante de energia:
            
             — Tive um azar dos diabos em ter calhado numa turma tão fraca.
            Por mais que os professores se esforcem, os meus colegas não
            prestam a menor atenção. São barulhentos, desinteressados e não
            deixam que as aulas tenham rendimento. Alguns parecem-me parvos!
            Querem continuar ignorantes e, para cúmulo, prejudicam os poucos
            que querem aprender. Ao menos tu, foste cá um felizardo! Calhaste
            numa das melhores turmas da escola!
            
             — De facto, tive mais sorte do que tu. As aulas são o máximo.
            Estamos já muito mais adiantados do que vós.
            
             — É chato porem todos os alunos repetentes na mesma turma. Uns
            pagam pelos outros sem terem culpa nenhuma!
            
             — De facto, tens uma certa razão. Eu cá, nesse aspecto, tive
            uma sorte incrível. Os alunos são bons e nalgumas disciplinas
            temos actividades interessantes. Olha, por exemplo, temos
            bibliotecas de turma nas línguas, com livros trazidos pela malta; e
            quinzenalmente até temos um clube. Tenho até alguns colegas que se
            inscreveram nos Clubes de tempos livres da nossa escola, Dois deles
            andam até num clube de jornalismo.
            
             — Por acaso, na minha turma, o professor de Português também
            fez uma biblioteca de turma. Mas os meus colegas são uns grandessíssimos
            parvalhões! Não permitem que ela funcione normalmente. O professor
            bem tentou algumas vezes, mas o pessoal não soube aproveitar: era
            uma balbúrdia dos diabos. Aquilo era o fim da macacada e ele
            resolveu suspender a actividade até que a malta se porte melhor. E
            eu é que me lixo! Trouxe livros emprestados, gostava de poder levar
            outros para ler e assim fico a ver navios.
            
             — O que é que vocês andam a dar no Português?
            
             — Andamos há vários dias com as linguagens mistas. Neste
            momento andamos a falar de textos publicitários há montes de
            aulas, mas a turma não deixa avançar quase nada.
            
             — O quê?! Vocês ainda só aí vão?! Nós já demos isso há
            montes de aulas!
            
             — O que é que tu queres? A malta não tem juízo e o professor lá
            faz o que pode. Há tipos na turma que não fazem os trabalhos e nem
            livros nem cadernos têm. Só lá andam para prejudicar os que
            querem trabalhar. Há dias fizemos um trabalho de grupo e só alguns
            fizeram alguma coisa. Muitos baldaram-se e ainda prejudicaram os
            que queriam trabalhar.
            
             — Olha, tenho de concordar que tiveste um grande galo com a
            turma. Mas já desabafaste e agora é melhor estudarmos.
            
             O jovem casalinho caiu novamente no silêncio, mergulhando na ciência
            dos livros. Eu voltei à minha revista. Restava-me pouco tempo
            livre. Daqui a pouco, tinha de ir abrir a loja para mais uma tarde
            monótona a atender clientes. Pelas duas e meia, levantei-me e saí
            para o malfadado balcão. E, pelo caminho, vieram-me à lembrança
            as palavras da mocita. E pensei: o raio da vida é mesmo macaca! Eu,
            que tinha gosto pelos estudos, fiquei amarrado a um balcão para o
            resto da vida, porque os meus pais não tinham dinheiro para me
            porem a estudar. Estes jovens de agora têm todos os meios para
            virem a ser alguém na vida e não sabem aproveitar o que têm! É
            mesmo macaca, o raio da vida!
            
             Henrique J. C. de Oliveira, Registos da minha pena, 07/02/1993
           |