José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

13 - Sobre as exéquias do Conde de Cavour - 30/8/1861

 

 

SESSÃO DE 30 DE AGOSTO DE 1861

 

Tenho a palavra, e eu já usei dela ontem e hoje. Mas usarei ainda outra vês para ver se as explicações dos Srs. ministros me satisfazem.

Agora contento-me em perguntar quais são as causas por que nas igrejas portuguesas pertencentes ao patriarcado de Lisboa se não têm podido fazer sufrágios por alma do conde de Cavour? Quais são e donde têm provindo os obstáculos que uma comissão, encarregada deste louvável empenho, tem encontrado para realizar esse pensamento religioso e patriótico?

Depois dos Srs. ministros haverem por bem responder a estas perguntas, eu pedirei de novo a palavra, ou, por outra, continuarei no uso dela, para responder aos Srs. ministros, se assim o julgar conveniente.

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA (MORAIS CARVALHO): - Peço a palavra.

O SR. PRESIDENTE: - Tem a palavra.

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA:  - ……………........

O ORADOR: - Entristece-me e embaraça-me a narração que o Sr. ministro acaba de fazer das negociações que a comissão dos italianos se viu na necessidade de empreender, no reino de Portugal, onde caracteres públicos muitas vezes têm sido mal tratados pela cúria romana e sobre os quais têm caído excomunhões iguais, para que o governo, que deve ser respeitador destes caracteres e das épocas em que se ilustraram no serviço do país e da liberdade, satisfaça ao seu nobre pedido. E com mágoa vejo que o ministro da justiça de Portugal, tratando-se de um assunto em que ele deve ser o primeiro entendido, sobre o qual deve esclarecer todos os seus colegas, no qual deve entender mais do que todos os outros, o remete ao procurador geral da coroa a quem hoje se remete tudo, a quem o Sr. ministro particularmente envia negócios da sua especial competência, fazendo injustiça aos seus conhecimentos jurídicos e dando um triste documento da sua coragem governativa!

Ao procurador da coroa! Para quê? Que falta ao Sr. ministro da justiça para resolver este negócio? A ciência do direito canónico? O conhecimento da história? A notícia das exorbitâncias romanas, das intrigas que há nesta questão, do propósito de macular injusta e iniquamente de nódoas anti-religiosas um carácter que morreu abraçado à religião de seus pais? (Apoiados.)

Ao Sr. ministro da justiça não falta nada disto, e não lhe falta mesmo o ter padecido e emigrado para um país estrangeiro, mas amigo nosso, onde ganhou fortuna honrada por estes mesmos princípios, por estas mesmas ideias que vem agora tristemente renegar a troco de um poder efémero: e principalmente efémero quando é ocupado por homens sem coragem, nem religião - a religião das suas ideias e dos seus princípios.

Nem o cansaço da câmara, nem o estado dela e a altura da sessão permitiam que eu me deixasse inspirar por sentimentos que dominam todos os espíritos neste assunto, e fazem brotar do coração de todos os homens liberais e amigos do seu país um brado de indignação pelo procedimento mesquinho do governo a respeito dele.

Sinto que o Sr. ministro da justiça tendo notícia dos passos dados pela comissão dos italianos para conseguir que se façam sufrágios pela alma do conde de Cavour, começasse a sua história num certo ponto e não a tivesse referido desde o seu começo.

Antes que os italianos diligenciassem obter licença para se fazerem sufrágios pelo conde de Cavour na igreja de S. Luís, já tinham tentado obtê-la para que os sufrágios se fizessem na igreja do Loreto, procurando essa igreja, como era natural, por ser de origem italiana e de admiração italiana, e dando nessa escolha mais uma prova da firmeza do seu patriotismo.

Foram à igreja dos italianos e aí repeliram-nos, porque outra autoridade eclesiástica, mas que não oficia nessa igreja, nem tem jurisdição nessa paróquia, admoestara o pároco, director dela, para que negasse os sufrágios. E essa nega era fundada sobre o que dizia um jornal de Roma, cujo extracto o Sr. ministro da justiça aqui trouxe; sendo na verdade para admirar que S. Ex.a não tratasse de o ler como lhe competia, para não o vir citar erradamente, asseverando que nele se contêm asserções que lá não estão.

Se o jornal de Roma tivesse um carácter oficial, fosse uma espécie de manifesto eclesiástico do chefe da igreja católica, e encerrasse as asserções referidas pelo Sr. ministro da justiça, eu, como bom católico, curvava a cabeça; contudo esse jornal não diz que haja dúvida alguma sobre a sinceridade da fé católica dos últimos momentos do conde de Cavour, nem tão pouco que haja nenhum impedimento canónico para que Se façam os sufrágios.

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA: - Apoiado.

O ORADOR: - Mas S. Ex.a afirmou que o jornal dizia isto; e a consequência é que, ou houve grande temeridade da parte de S. Ex.a em citar um documento desta ordem sem lhe saber o texto, ou houve o propósito de lhe inserir asserções que lá não estão para sanar o seu inqualificável procedimento.

Eis aqui está o grande artigo que o Sr. ministro elevou a uma contestação canónica, e sobre o qual assentou que os párocos, que se haviam recusado a celebrar sufrágios públicos pelo conde de Cavour, tinham uma justificação pleníssima.

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA: - Nego.

O ORADOR: - Então S. Ex.a é o primeiro excomungado.

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA: - Nego que tal dissesse.

O ORADOR: - É excomungado na igreja católica, como está já sendo excomungado na igreja liberal. (Riso.)

O nobre ministro aludiu àquele artigo como fundamento da recusa a que na igreja do Loreto ou em qualquer outra se fizessem os sufrágios públicos pela alma do conde de Cavour e disse, como devia dizer infalivelmente, que aí se declarava haver dúvida a respeito desses sufrágios, e que portanto a corte de Roma não julgava puro o consentirem-se.

Vou ler o artigo. A recusa funda-se no seguinte:

«Muitos jornais têm falado de sufrágios que pretendem haver sido ordenados publicamente por sua santidade pelo eterno descanso do falecido conde de Cavour. Não admira que, entre tanta hipocrisia deste século, se haja estudado o meio de assim dar a entender que um homem que confessou em pleno parlamento haver conspirado por espaço de doze anos...»

Há cá mais altos criminosos: também nós temos conspirado por mais de doze anos e por muitas vezes. Isto não é denunciar ninguém especialmente, porquanto com todos nós se tem dado este caso, nem é porque deseje fora da igreja católica quem está nestas circunstâncias: é por me parecer que procedem tristemente os que sendo colegas em opiniões, princípios e tendências, e excomungados também, estendem o braço secular para reforçar essa excomunhão.

Continua o artigo:

«... haja concluído a sua carreira mortal com todas as aparências de um bom católico. Era conveniente mostrar por este modo que ele obrara justamente quando invadiu a propriedade alheia, e usurpava e desprezava os mais sagrados direitos...»

O conde de Cavour morreu com aparências de cristão Essas aparências foram julgadas leais, verdadeiras e significativas, especialmente pela única autoridade eclesiástica que as podia testemunhar e autenticar: pelo seu confessor. (Apoiados.) E naquele acto supremo da religião, consagrado por Deus e pela igreja, não pode intervir mais nenhum ser humano, mais nenhuma autoridade eclesiástica, sem destruir esse santo princípio e essa santa unção da igreja católica. (Apoiados.) Seria tirar toda a sublimidade do sacramento da penitência, que se compreende, porque todo aquele que tem espírito elevado e alma humana compreende quais são os seus destinos além da situação terrestre.

O segundo fundamento da recusa é o seguinte:

«Quanto, porém tem sido asseverado pelos sobreditos jornais acerca dos sufrágios públicos ordenados por sua santidade nesta capital do mundo católico é completamente falso. E ainda que o santo padre, enquanto aquele ministro foi vivo, não cessasse um só instante de orar a Deus para que lhe concedesse a graça de voltar ao bom caminho, contudo, se depois da sua morte ofereceu sufrágios por aquela alma, de certo o fez secretamente, e nunca da maneira que se pretende, pois o facto de se ignorarem as circunstâncias, que acompanharam os últimos momentos do falecido, impede que se façam quaisquer manifestações públicas.»

Pergunto: a dúvida sobre a sinceridade da fé católica impede o permitir-se que os sufrágios da religião se façam em público e só consente que se façam em segredo? Isto é que eu quero saber. O impedimento proveniente da dúvida sobre a sinceridade da fé católica em que morreu o conde de Cavour serve só para estorvar os sufrágios públicos e não os íntimos? (Apoiados.) A relação entre a alma do moribundo e Deus, que o há de julgar, os actos de consciência numa no último bocejo, não hão de ter o mesmo carácter espiritual que tem outros desta natureza?

Este ponto não sou capaz de discutir. Mas parece-me que a razão canónica, religiosa e espiritual pela qual sua santidade houve por bem, com aquela benignidade que o caracteriza, permitir sufrágios públicos por alma do conde de Cavour, estes mesmos princípios podiam levar as autoridades eclesiásticas a permitirem que nas igrejas de outro qualquer país esses mesmos sufrágios se celebrassem com a pompa que a religião manda. (Apoiados.) Suponho isso; mas não entro na questão, porque não me tinha proposto a tratá-la, nem mesmo saberia tratá-la.

Os pobres italianos... pobres aqui só, e pobres há bem poucos anos noutra parte, hoje ricos, mas ricos da maior riqueza que pode ter um homem de alma e de sentimentos, (apoiados) levantados de uma existência oprobriosa, desembaraçados dos sofrimentos seculares, que apesar de, por muitos trabalhos de espírito, ser tão gloriosa a sua nacionalidade, experimentaram, porque os calcavam os pés de ferro de uma geração que jamais seguiu o caminho liberal; esta nação, agora rica das suas tradições, do seu dia de emancipação, do seu futuro e dos sentimentos de simpatia de todas as nações que a antecederam no caminho da liberdade, que hão de seguir o seu exemplo e que hão de ir nesta senda infalível; (apoiados) estes pobres italianos foram primeiro à sua igreja, à igreja italiana, e, não obstante o maior e melhor acolhimento dos padres italianos, não obtiveram nada, talvez por sugestões diplomáticas, que deviam envergonhar os governos desta terra, e que não sei se foram conhecidas pelo Sr. ministro dos negócios estrangeiros e mereceram a sua aprovação.

Estes pobres italianos foram depois bater às portas da igreja de S. Luís, da igreja francesa. Andaram amigos nossos. filhos do nosso sangue, católicos como nós, num país como o nosso, na presença daquele governo (apontando para o banco dos Srs. ministros), andaram a mendigar uma igreja, não portuguesa, mas primeiro italiana, porque a escolheram, e depois francesa, porque só lá julgaram que podiam obter licença para fazer os sufrágios!

Destas duas escolhas a primeira é desculpável, e a segunda é ofensiva; e para um governo que tem tino e senso político, é contraria ao nosso timbre e aos interesses da nossa nacionalidade. (Apoiados.)

Foram à igreja francesa, e não sei se foi o pároco dessa igreja que pediu a licença... Creio que foi a comissão. Não sei, mas tenho aqui a licença.

Essa mata toda a questão diplomática e põe em relevo o triste e miserável expediente de remeter um negócio destes ao procurador da coroa, (apoiados) provando que o Sr. ministro, que eu considerei superior a esse empregado, nem procurador da coroa pode ser nomeado quando sair do ministério!

A licença é terminante, claríssima:

«Il.mo Sr. Capelão. - Dou o consentimento que V. S.a me pediu...»

Não conheço todos os regedores de paróquia da minha terra, mas, chamados a intervir nesta questão, não sei de nenhum a quem, mostrando-se este papel, não desse cheiro do modo como convinha proceder.

«... para que na igreja de S. Luís dos Franceses celebrem os italianos um ofício pelo repouso eterno do conde de Cavour. -  Manuel, cardeal patriarca.»

Este patriarca não é dos italianos, nem dos franceses. Dá o patriarca licença para que em Portugal, na igreja dos franceses, se façam ofícios por alma do conde de Cavour, que era italiano; quer dizer - põem-se fora as autoridades, o território português, não aparece o patriarca de Lisboa, nem sei mesmo a que país pertence Manuel, cardeal patriarca, que deu licença para que na igreja dos franceses façam os italianos sufrágios por alma de um italiano.

Já se vê que esta licença é obnóxia ao nosso carácter, contrária à nossa dignidade.

E depois disto, o facto de mandar todo este negócio para o procurador da coroa é completo, é miserável e vem provar que o Sr. ministro da justiça, na sua pasta, dentro das suas atribuições, sabendo muito bem até onde elas cegam, tem feito neste objecto (como em muitos) o suficiente para matar o nosso timbre e enxovalhar-nos à face da Europa!

Quero persuadir-me de que S. Ex.a não lhe deu este alcance. Era uma coisa fútil: enviou-a ao procurador da coroa, como quando está enfadado manda dizer às partes que não recebe ninguém.

Desta maneira ofende directamente os meus comitentes; o que não posso tolerar, e o que sinto, porque semelhante procedimento é indigno do carácter pessoal de S. Ex.a.

Se S. Ex.a declara que tudo estava preparado para se dizer a missa, que havia padre que se prontificava a dizê-la, que S. Ex.a o designou, e que não havia a menor dúvida em que se fizessem os sufrágios, houve então por certo outros motivos, outras circunstâncias que impediram a realização desse pensamento. Sinto dizer a S. Ex.a que isto é indigno da sua lógica, e está abaixo do seu carácter.

Os italianos, depois de um longo processo, de que não posso dar conta à câmara, foram expulsos do Loreto pelas insinuações do núncio e do jornal de Roma, - expulsos até! E ainda não o tinham sido da igreja de S. Luís, porque aí encontraram um clérigo que estava pronto a dizer a missa, e teve a franqueza de declarar: «Pertenço a uma ordem religiosa, e não julgueis que vou sacrificar o espírito dessa ordem a causa da Itália, que é excelente. Sou lazarista primeiro que tudo, e como tal obedeço a sua santidade. Digo a missa às sete horas da manhã sem convite nenhum, e de maneira que faça a menor bulha possível.»

Dizer uma missa como envergonhado do sufrágio dela, impondo a obrigação, a quem a manda dizer, de que não chame a orar a Deus aqueles que têm interesse pela alma de quem ela se diz, é uma condição humilhante que ninguém pode aceitar. A comissão rejeitou a missa, porque tal condição era contrária ao espírito do catolicismo e da cristandade.

O Sr. ministro disse à comissão, creio eu: «Entendam-se com o padre, que o governo não se opõe.» E fez isto como uma alta concessão! o governo, como liberal ousado nas suas opiniões e sentimentos, declarou que, havendo quem quisesse dizer uma missa por alma do conde de Cavour, não o mandava meter em processo! Chegaram até aqui as suas simpatias pela causa liberal!

Eles foram ter com o padre. Mas este disse que não queria, por saber que não lhe iria bem se ousasse contrariar as indicações, posto que secretas e disfarçadas, dos seus superiores. Parecia mais natural que o governo, que resume o pensamento público, que o governo, estando dentro das suas atribuições, o animasse com as suas ordens para se dizer a missa. Mas o que ele disse foi: «Digam lá a missa.»

De modo que os italianos alcançaram de um lazarista uma missa às sete horas, e o ministro da justiça era mais lazarista que o padre, porque o padre queria dizê-la, e o ministro comprometia-se a não obstar a que ela se dissesse.

Aqui está a quanto alcança a relação feita pelo Sr. ministro da justiça.

Os italianos, portanto, bateram primeiro à porta da igreja italiana, que lhes foi fechada: as razões já as disse. Bateram a porta da igreja francesa, e foi-lhes aberta, mas de um modo incivil e inconveniente, que não aceitaram. Bateram à porta de muitas igrejas portuguesas, e todas lhes foram fechadas: e o governo não lhes deu o menor auxílio moral nem oficial, porque os párocos, que estavam dispostos a fazer o ofício, temeram fazê-lo por causa das imensas admoestações que se lhes faziam.

Eu declaro que, se fosse padre, aprontava-me para dizer a missa por alma do conde de Cavour; mas agora depois do Sr. ministro mandar o negócio para o procurador geral da coroa, havia de recear um pouco. Com a censura canónica eu me haveria: mas com o braço secular e com o braço canónico havia de recear um pouco.

A comissão ainda tentou fazer o ofício na igreja da Encarnação.

Em todas estas tentativas tinha padrinho: quando foi para a igreja dos franceses, o padrinho não era francês e quando foi para a igreja portuguesa, o padrinho era português e esta presente.

Este padrinho tinha-se munido de declarações verbais amigáveis do Sr. patriarca de que na igreja da Encarnação se poderia dizer a missa, e dirigiu-se ao padre da Encarnação, que, como disse, declarou estar pronto para isso.

A comissão começou os seus trabalhos e preparativos para que o ofício ali se fizesse: mas quando foi depois conferenciar com o padre sobre o lugar em que a cerimónia devia ter lugar, disse-lhe o pároco que fora obrigado a reconsiderar, e que já não dava licença: que não o deixavam! O padre, creio eu, foi admoestado, e as admoestações puderam mais do que o padrinho: os italianos foram expulsos da igreja da Encarnação.

Voltaram de novo à igreja do Loreto e requereram outra vês ao patriarca, que disse: «Informe o pároco do Loreto.»

Souberam na igreja que o pároco estava nas Caldas. E portanto que não se podia informar o requerimento; e, como o vigário geral declarasse não haver inconveniente em que o pároco informasse das Caldas, fizeram o despacho para aí. O pároco informou: O quê, não sei eu, nem a comissão o sabe. O que sei é que, depois de tanta chicana, se dirigiram ao governo para resolver o negócio, visto que o Sr. patriarca lhes disse que lhe não pertencia a resolução dele por estar entregue ao governo.

Pergunto ao Sr. ministro da justiça: dúvida S. Ex.a (se o tem presente) de exibir já o ofício que o Sr. patriarca dirigiu ao governo sobre este negócio? Dar-me-ia muito gosto se, interrompendo-me, me quisesse responder...

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA: - Estou pronto a mandar à câmara todos os documentos a este respeito, não ocultando nenhum.

O ORADOR: - Bem. Hoje não pode ser, amanhã já não há lugar; fica a interpelação para Janeiro, e nesse tempo devido de que os sufrágios se celebrem.

Creio que o documento pelo qual o Sr. patriarca diferiu este negócio ao governo não compromete o ilustre prelado e prende consideravelmente a responsabilidade do governo. O prelado não podia dizer que negava a licença, porque essa estava dada por ele: os sufrágios são os mesmos, e o Sr. patriarca concedia que se fizesse ofício; e ofício supõe toda a pompa. As razões canónicas eram as mesmas, não tinha sobrevindo nenhuma circunstância extraordinária que fizesse determinar o prelado a negar aquilo que uma vês tinha concedido.

Portanto o patriarca não disse, porque não podia dizer: «Hoje concedo, amanhã não concedo.» E para poder suprimir a licença concedida, que casos se deram, que circunstâncias ocorreram?

O patriarca disse: «Este negócio é grave, porque é ao mesmo tempo um negócio eclesiástico e temporal, e eu não quero temerária ou precipitadamente dar uma licença, que possa por qualquer modo perturbar as relações do governo com a Santa Sé, que é também um poder temporal.» Isto da parte do Sr. patriarca denuncia não só delicadeza, mas conhecimento e compenetração do verdadeiro espírito do seu dever, como autoridade eclesiástica no estado civil de que faz parte.

O Sr. patriarca, antes de dar a licença comunicou ao governo os seus escrúpulos sobre se resultariam complicações entre o governo e a Santa Sé da licença para se celebrar o acto religioso numa igreja portuguesa. Se o Sr. patriarca dissesse que tinha escrúpulos canónicos para a concessão da licença, eu não discutia esta questão; mas os escrúpulos canónicos estão mortos depois da licença do Sr. patriarca para o acto religioso na igreja francesa.

A questão, desde aí, é toda civil e toda ministerial, e o governo escusa de se esconder atrás das vestes prelatícias do Sr. patriarca, nem de cobrir-se com elas, porque está a descoberto neste assunto, e a responsabilidade é toda dele.

Mas sempre me parece que neste ponto há uma responsabilidade especial, porque sei que há poucos meses estivemos e ainda estamos em perigos da maior gravidade, pela estonteada gerência da pasta dos negócios estrangeiros. Estivemos em perigos graves, ainda estamos e estaremos sempre, enquanto ela se conservar em mãos, não lhes chamo traidoras, mas por tal modo escravas da sua vaidade, que tudo lhe sacrificam.

No caminho que levou este negócio, cumpre-me subsidiar o governo do modo por que o posso fazer.

O Sr. ministro mandou ouvir o procurador da coroa. Muito bem: vamos auxiliar o procurador da coroa com um trabalho de outro procurador da coroa, também português e de grande reputação jurídica, porque sei quanto vale para um jurisconsulto o peso dos conhecimentos sancionados pelo maior peso dos factos.

Trata-se de uma excomunhão, e sobre este ponto não entendo senão que ela se deve temer e reverenciar, e que um bom católico deve trabalhar toda a sua vida por não a merecer. Pode. porém, vir injustamente, que na igreja católica são conhecidas as excomunhões injustas: há destas, e há-as válidas, assentes sobre um princípio religioso.

Estremeço de tocar neste assunto; e neste ponto não dou um passo senão escudado em fortíssimas autoridades.

A excomunhão a que aludo, segundo o próprio jornal de Roma, não versa sobre motivos espirituais, religiosos e canónicos; nem pode versar, porque neste ponto a religião é providente. Todo o católico, morte perventa, no caso de morte, se der sinais sensíveis, inequívocos, apreciados como tais pelo seu confessor, de que abjurou as doutrinas e erros em que andava, está absolvido da excomunhão; mas para a absolvição ser valida é preciso que seja dada quando ele estiver em artigo de morte. Ou se haja ilustrado por obras contrárias a esses princípios que professou, ou haja escrito livros em contrário às doutrinas falsas que sustentou, nada disso lhe aproveita se não tiver a absolvição no caso de morte. Só é valida a absolvição dada no caso de morte, in articulo mortis.

Pergunto: foi ou não foi absolvido o conde de Cavour em caso de morte? Foi ou não foi absolvido neste caso completamente, em termos de tirar todo o escrúpulo aos representantes da religião católica? Foi: porque o padre que o absolveu, chamado a Roma, declarou as circunstâncias que acompanharam a morte do penitente, e não houve em que condenar o seu acto, e em que declarar a sua absolvição temerária. Creio que isto é um facto.

Mas qual era o fundamento da excomunhão? O fundamento era todo temporal, como declara o jornal de Roma era uma questão meramente política, era a questão do poder temporal era a ocupação de terras que pertenciam à tiara pontifícia, era uma questão como mil outras que entre nos se têm tratado, como aquela pela qual fomos excomungados os que combatemos no Porto em prol das doutrinas liberais, pela qual foi excomungada uma geração inteira desde o rei até ao mais ínfimo peão. Entretanto nós, acatando o acto, mas protestando que não o merecíamos, fomos defendendo a liberdade, e com ela a religião. (Apoiados.)

Mas vamos ao procurador da coroa. Já disse que esta excomunhão só assentava em motivos temporais. Vamos a ver o que dizia um procurador da coroa, José de Seabra da Silva.

Agora entraram em luta, no ânimo do Sr. ministro da justiça, os seus sentimentos católicos e o seu respeito a tão venerando nome, e ele está hesitando sobre qual será preferível, se o ser segregado da comunhão da igreja católica, se do grémio dos grandes jurisconsultos. (Hilaridade.)

Isto que diz este jurisconsulto é sobre a aceitação da excomunhão em Portugal, e nos outros países católicos, sobre a oposição que lhe fez o poder civil; é a produção das razões principais em que se sustentava a recusa do assentimento a receber a excomunhão. Diz ele:

«E também este capítulo se não aceitou, nem podia aceitar: primo, porque a espiritualidade da excomunhão não podia nunca jamais grudar-se nas temporalidades daquelas terras e domínios, que os santos padres possuem como príncipes temporais: secundo, porque nos casos em que os sumos pontífices, como tais príncipes temporais, se embaraçaram em dissensões e discórdias com os outros soberanos também temporais, a necessidade pública, que constitui lei suprema, de defenderem os mesmos soberanos temporais a sua alta reputação, os seus domínios, e as vidas e fazendas dos seus vassalos, foi sempre a que precisamente decidiu, não obstante as ditas excomunhões espirituais, e por isso inaplicáveis às terras e coisas temporais como acima digo. Sendo isto o que (muito a seu pesar) foram constrangidos a praticar nos casos ocorrentes os monarcas e soberanos das cortes mais religiosas e mais ortodoxas e pias da Europa.»

Não sei quais são os trâmites para levar estes auxílios aos pés do governo todavia ele mandou ouvir o procurador da coroa, e eu confio muito nesta autoridade, mais de que no Sr. ministro da justiça, visto que S. Ex.a em pontos de direito apela para ele. Seria bom entretanto dar-lhe este subsídio, para ele reconhecer quais são as tradições do nosso direito público, e como em outras épocas governos de outra tempera e com outras condições de existência respeitavam a opinião pública, mantinham os direitos riais e provavam que eram um ser moral e não um séquito inexplicável de subserviências a todas as paixões e a todos os interesses.

Isto ao menos tinha um pretexto nobre, desculpável: mas pode haver um ministro beato que não compreenda semelhante doutrina, o que é um mal...

O SR. MINISTRO DA JUSTIÇA: - Peço a palavra por parte do governo.

O ORADOR: - O Sr. ministro pediu a palavra por parte do governo. Diga-me S. Ex.a qual é a substancia do ofício do Sr. patriarca. Diga-me se ele não pôs nas mãos do governo o meio de resolver esta questão. Diga-me se ele se pode recusar a dar a licença, tendo-a já dado. E se está persuadido de que, quando o governo o insinue, como se costuma fazer em tais casos, ele não dará mediatamente a licença, e se por um princípio de consciência, sem ordem do poder temporal, a quem é obrigado a obedecer, salvos os assuntos puramente religiosos, pode negá-la. Se o patriarca pudesse insurgir-se contra o poder temporal em assuntos que não são religiosos, o ministro seria o espectador imbecil de todas as desordens e de todas as discórdias políticas.

A missa não se diz, porque não estamos em 1834. A missa não se diz, porque estão mortos ou amortecidos os caracteres que restam daquela grande e nobre luta;  porque se vai extinguido a geração que queimou a pólvora, sofreu o cadafalso, as fomes e a miséria para fazer triunfar estes princípios, que o Sr. ministro renega; porque há ministros neste país que pensam que uma nação pequena deve aceitar as tristes condições do seu estado, e que o meio de a fazer levantar não é associá-la a todas as causas simpáticas, e ter um governo que possa mais do que ela.

Estamos aqui sessenta. Afora o Sr. ministro da justiça, não há um só que amanhã, sendo ministro, não resolva o negócio sem nenhuma contenda com a corte de Roma, sem nenhum desagrado com o núncio. Nem é coisa para desagradar, nem para ofender a consciência de ninguém, abrirem-se amanhã as portas de um templo, e ir a população de Lisboa desabafar ali os seus sentimentos de mana em honra de um homem que não faltou nem à igreja nem a Deus.

O conde de Cavour era um grande homem, era o tipo dos homens de Estado. (Apoiados.) Não sei se esta relutância, esta frieza que há em se lhe concederem as honras fúnebres, da parte do ministro, é por ser o tipo de uma confrontação desastrosa para S. Ex.a!

O conde de Cavour tinha as primeiras qualidades de um homem de Estado desta época: tinha uma alta inteligência, um grande desprendimento de si, e sobretudo sentia o que pensava.  (Apoiados.) O homem que não ilumine os seus actos intelectuais com o sentimento, e não o tenha diante dos olhos, o homem que não reuna em si sentimento e cabeça, não pode dirigir um povo. Ele tinha estas qualidades, e por isso tomou sobre si uma causa sobre todas nobre - a causa da Itália, a reivindicação do esquecimento ingrato de todas as nações, a reconquista do solar da civilização primitiva, - porque tudo ali se passou, e ali é que nós fomos buscar as ideias liberais, entrando naquele alcácer com o Tito Lívio e o Virgílio na frente.

E triste é a sorte em circunstâncias destas, quando os elos dos acontecimentos humanos se desencadeiam entre nós, quando temos a fortuna de presenciar esta obra da geração actual, e ver satisfeitos tantos direitos, pagas tantas dívidas, levantadas tantas esperanças: triste é a sorte do país que, tendo de presenciar todos esses acontecimentos, tem a desgraça de ver almas frias e corações adormecidos, que não sabem elevar-se à altura deles e acompanhá-los nos seus efeitos e reflexos, se os podem ter, sobre a nossa nacionalidade e futuro!

- Peço a Deus que se diga uma missa por alma do conde de Cavour; e aos poderes públicos que nos façam o não menor benefício de nos dar outro governo, digno de nós e da época em que vivemos. (Vozes: - Muito bem).

 

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