José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

12 - 2º discurso sobre a questão das irmãs de caridade - 10/7/1861

 

 

SESSÃO DE 10 DE JULHO DE 1861

 

Eu faria o maior esforço sobre mim mesmo se, tomando a palavra nesta casa, deixasse predominar no meu discurso alguma pretensão de efeito oratório, se não julgasse que é do dever do homem público, primeiro que tudo, manifestar o seu pensamento, mostrar as suas ideias, e dar as suas opiniões definidas sobre as questões que ocupam as casas onde lhe é permitido orar. É guiado por estes princípios, e só por eles, que eu vou em poucas palavras terminar o discurso, que ontem tive a honra de pronunciar perante a câmara.

Apresenta-se um argumento para se insistir na necessidade de receber congregações estrangeiras, dedicadas especialmente ao exercício da caridade nas suas diversas aplicações; e este argumento, assentando sobre bases falsas, sobre apreciações inexactas do estado da nossa administração, dos nossos recursos, da nossa capacidade e dos nossos meios de beneficência, e extremamente perigoso, porque tende a desautorar-nos; e, aplicado a todos os negócios do Estado, é a declaração implícita de que carecemos dos meios de nos governarmos.

Diz-se: «Venham irmãs da caridade francesas, porque já não há entre nós quem tenha o instinto da caridade; perdemos a educação dos serviços desta virtude; só dias possuem a ciência de enfermeiras de um doente, de lhe ministrar a tempo o remédio, de velar com carinho a sua cabeceira, de estar como convém junto ao seu leito. Venham irmãs da caridade francesas, porque só elas é que têm o talento e perseverança para educar crianças; só elas é que possuem, por uma revelação especial, a doutrina católica, para lhe poderem transmitir; só nelas finalmente é que podemos depositar os cuidados da educação pública.»

Se este argumento prevalece, se querem tirar-lhe todas as consequências que encerra, eu vou fazer dele aplicações a todos os serviços do estado. Mas espero que, ao fazer uma dessas aplicações, se levantara alguém do banco dos ministros, e dirá: «nessa conclusão é atrevida nos não queremos que o argumento vá tão longe.» Se estamos autorizados, pelo mau estado da organização da nossa beneficência pública, a mandar vir quem nos estabeleça no país os seus verdadeiros institutos e as suas verdadeiras práticas, também podemos, pela aplicação do mesmo princípio, pedir a algum país estrangeiro ministros que nos governem.

Mas eu, detido por um princípio de decoro no caminho dessa perigosa argumentação, não espero que ela cegue a aplicações contra as quais se levantaria talvez o interesse ou a vaidade...

Não há país nenhum que tenha mais grandiosos recursos morais, religiosos e pecuniários do que o nosso, para atender à beneficência pública em todas as suas aplicações; o que nos falta é reconhecei-os, manejai-os e aplicá-los devidamente sendo o espírito do cristianismo, e segundo a nova filosofia da caridade.

É extremamente honroso para nos esse copioso, esse suculento orçamento dos recursos da caridade, juntos e acumulados pelas dádivas dos soberanos, pela beneficência dos particulares, e por essas imensas e poderosas confrarias, cujos intuitos são respeitáveis, mas que eu quisera que, sem serem destruídos, fossem ilustrados pelas luzes do tempo. Os seus meios de caridade, não quisera eu que fossem distraídos das aplicações que tiveram na sua origem: mas desejava que se examinasse se excedem essas aplicações, para se darem as sobras outro destino. É este um vastíssimo campo a desbravar, uma tarefa de grande magnitude a empreender, para que não basta talvez a elite das nossas inteligências.

Nós, por exemplo, temos muitos hospitais. Mas quantas terras, quantas povoações importantes, quantos centros de população não carecem dos hospitais precisos, não para acudir a epidemias, porque elas são o extraordinário das misérias humanas, mas para acudir ao tratamento das doenças ordinárias? Sim, porque, enquanto em certas povoações se acumulam instituições riquíssimas, que gastam uma grande parte dos seus rendimentos em faustos, pompas e luxos religiosos, (apoiados) e as confrarias consomem os seus recursos em abusos administrativos, onde não é possível meter luz, em outras partes os doentes agonizam, não faltos de remédios, mas faltos de agasalho, a velhice extenuada pelo trabalho doméstico pede esmola, sem haver um estabelecimento que lhe abra as portas no último quartel da vida e vemos chusmas de crianças de ambos os sexos pedindo a instrução e agasalho que se lhes não dá, havendo aliás nessas mesmas povoações casas aparatosíssimas, estabelecidas com o maior luxo, destinadas a obviar a outros males, sem que se faça uma distribuição equitativa da caridade por todas as misérias da vida humana! Nos temos por exemplo, em Lisboa, o hospital do S. José: é uma casa magnífica, perfeitamente montada, na aparência: mas é a negação de um hospital, sem aludir a insalubridade das enfermarias, que determina uma mortalidade espantosa, a qual não se devia esperar nem da perícia dos médicos, nem do tratamento dos doentes.

Que direi do hospital do Porto, desse grande e célebre edifício, feito e levantado pela mais fervorosa e mais rica vaidade, diante de cuja arquitectura o espectador se extasia, mas o médico se horroriza, porque tem uma temperatura oposta à conservação da vida ainda na sua maior robustez? E entretanto esse grande monumento da vaidade lá vai continuando a ter uma aplicação indevida, quando se podia e devia apropriar aos numerosos usos civis, de que é susceptível. e dar-se à Misericórdia o dinheiro preciso para estabelecer um hospital, ou mais de um, nas condições em que eles se devem estabelecer, segundo as enfermidades, e segundo a conveniência regional desses estabelecimentos. (Apoiados.)

Estão na secretaria do reino, e datam de muito tempo, completos trabalhos sobre beneficência pública, nos quais estão determinados os rendimentos dos hospitais, em que consistem esses rendimentos, e tudo o que se pode fazer neste capitulo. Mas o que temos nós?

Temos um conselho superior de beneficência pública, composto de todas as notabilidades religiosas, do patriarca mesmo, de todas as notabilidades civis, de homens de diversas condições, alguns dos quais estão à testa da administração de estabelecimentos de beneficência, e não tenho notícia nem das reuniões desse conselho, nem das actas dos seus trabalhos. E é tal a abstenção do governo sobre estes assuntos, que ainda não achei o poder executivo servido por pessoas que tenham tido força para acabar com o abuso condenável e insuportável que se prática na cidade do Porto, onde cada irmandade mantém e conserva um cemitério particular junto das igrejas, não sendo possível obrigá-las a enterrar os seus confrades no cemitério público!

Estamos lamentavelmente atrasados neste ponto; e convenço-me de que, se metade da energia e do zelo que se tem desenvolvido a favor das irmãs da caridade, se tivesse aplicado a estas e outras reformas, teríamos perfeitamente organizados estes serviços!

Mas se as irmãs da caridade dão remédio a tudo isto, eu voto que elas venham! Se elas trazem remédio, luz, instrução, inteligência, coragem para resolver todas estas questões, e para aproveitar o orçamento da nossa beneficência pública, eu votaria que elas viessem. Mas não o acredito. E, se se reconhecer esta necessidade, temos de a reconhecer em outros pontos, e a primeira coisa a fazer seria irmos embora, e mandar vir também de país estrangeiro uma câmara completa de deputados. (Riso.)

E já temos feito assim; porque desde muito tempo estamos acostumados a encomendar generais aos diversos países. Já tive na mão a conta de quanto tínhamos gasto nestas encomendas, e calculei que, tendo gasto metade ou a terça parte das quantias que despendemos com elas, teríamos estabelecido no país boas escolas militares; e, acabando com esta lei absurda de promoções por antiguidade, teríamos, não digo generais verdadeiros, mas generais capazes de desempenhar este papel. O conde de Lipe custou muito caro; o general Beresford creio que também não foi barato. Foram encomendas caríssimas. Na nossa guerra civil acabámos por mandar vir de fora, cada partido o seu, dois generais; o partido liberal mandou vir o general Solignac, o partido miguelista mandou vir Brumont…

O SR. LOBO D'ÁVILA: - Mas no exército liberal foram os generais portugueses que decidiram a questão.

O ORADOR: - Se o ilustre deputado me fez esta observação por julgar que eu ofendia as capacidades militares deste país, não me compreendeu; o que fez foi dar mais apoio à minha ideia. Nos temos grandes capacidades, e digo e insisto que o que era necessário era aproveitá-las a tempo competente. E mesmo no tempo em que se andou a mendigar capacidades estrangeiras, achavam-se entre nós capacidades militares muito distintas.

Mas esta tendência para as irmãs da caridade é uma questão de elegância; e a elegância e o gosto seduzem-se com tudo quanto é belo e novo. A ideia da moda é uma ideia universal. No dogma não pode haver moda, mas na aplicação pode havê-la.

Eu já ouvi dizer: «Horror! Às enfermeiras do hospital de S. José andam de balão!» (Riso.) Pode-se acreditar que uma mulher de balão possa ter fé e espírito de caridade para tratar um enfermo? (Riso.) Para se ser boa enfermeira é necessário ter uma touca muito grande?! Eu dou muito pouco pela touca e pelo balão, e muito pela habilidade, perícia e bons sentimentos. (Apoiados.)

Não temos beneficência? Venham as irmãs da caridade francesas! Não temos soldados? Venham de fora, bem impossibilitados de se mover, com uma gravata que lhes tire a mobilidade do pescoço, porque um soldado para ser perfeito há de ser um estafermo. Venham os soldados ingleses. Já vieram; e depois julgou-se que um soldado era o contrário de tudo isto, e os mesmos ingleses o reconheceram. Precisamos de legisladores? Venham legisladores, os mais afamados na antiguidade, que, segundo nos ensina a literatura, eram os gregos... Mas não suscitemos susceptibilidades: venham de qualquer nação; mas venham, porque estamos desprovidos de tudo!

Não nos desconsolemos, porém, de estarmos faltos de tudo, porque tivemos outro lá nos jornais a consoladora notícia de que tínhamos um ministro que manejava perfeitamente o estilo do ridículo. (Riso.) O país que tem destas maravilhas - pode prescindir de muitas outras coisas! E tanto mais que este estilo se maneja muito facilmente, porque às vezes e uma condição natural da oratória, inspirada pela própria pessoa que a maneja, e que não tem senão que inspirar-se em si mesmo! «Mas as irmãs da caridade estrangeiras, não as queremos: queremos as portuguesas.» Isto é que eu não entendo. Esta opinião é que confunde todas as minhas ideias. Eu suponho que as irmãs da caridade são uma instituição católica, feita por uma bula da autoridade católica para todo o orbe católico. Há o instituto, mas não há nem irmãs da caridade portuguesas, nem francesas, nem inglesas. Donde vem pois esta pretensão de irmãs da caridade portuguesas? Confesso que me custou a entender isto. É uma utopia e uma grande excentricidade.

Não há irmãs da caridade portuguesas, nem com que, nem com quem as fazer. Pergunto: com quem as querem fazer? Com as que cá estavam? Não fizeram elas as mais enérgicas e terminantes protestações de que, no tempo que estiveram debaixo da autoridade do prelado diocesano, tinham estado contra sua vontade e com quebra do seu instituto, pelo que pediam perdão, ao geral, do seu desregramento? Com outras não pode ser; e já um digno membro da outra câmara disse que, se se criasse uma nova congregação de irmãs da caridade portuguesas, dentro de dois meses o seu instituto era francês, e justamente francês.

Pois se não há instituto de irmãs da caridade senão francês!... Sendo o centro da congregação em Paris, as irmãs da caridade portuguesas seriam francesas, porque tiravam a sua nacionalidade da do seu chefe.

Pois quem é que se persuade, quem é que podia conceber que havia de existir uma ordem em condição inferior à outra e fora da lei comum, e que as pessoas pertencentes a essa ordem não haviam de ansiar por se unir às irmãs da caridade que eram reputadas a expressão genuína daquela instituição? Depois, como se há de criar?! Com que bens, com que dotação? Se reprovo que se recebessem irmãs da caridade para uma congregação já criada, mais reprovo, porque o julgo um grande absurdo que se crie uma nova congregação desde os fundamentos. (Apoiados.)

O país católico quer irmãs da caridade, e diz ao chefe da igreja: «Concedei-nos uma bula especial para termos irmãs da caridade portuguesas, com um instituto próprio, e sem a tradição do verdadeiro espírito da sua origem.» Mas qual é o vosso intuito neste pensamento? É porque os poderes públicos aqui são fracos? É porque não podendo nos resolver esta questão convenientemente, não tendo força para dizer o que queremos e o que não queremos, procuramos um meio termo que não faça mal a ninguém, e que nos salve a nossa responsabilidade?

Mas a autoridade de uma religião, qualquer que seja, o papa, por exemplo, se se lhe fizesse este pedido, respondia muito bem: «Governem-se lá como entenderem, mas eu não faço leis senão para o meu povo.»

Eu acho já absurda a ideia da criação das irmãs da caridade portuguesas; mas diz-se que não é com as regras de S. Vicente de Paula que se quer a nova instituição, mas umas irmãs da caridade portuguesas segundo uma ordem nova. Não se fala no instituto de S. Vicente de Paula, diz-se: «E porque o governo reconhece as vantagens e os piedosos frutos que se podem colher do instituto português das irmãs da caridade, reorganizado em conformidade dos cânones da igreja católica, e das leis da sociedade civil, os ministros de sua majestade têm a honra de submeter à sábia consideração das cortes a seguinte proposta de lei.»

Creio que estas palavras organizar na conformidade dos cânones da igreja católica, supõem que é uma nova congregação, para a qual se deve pedir autorização ao papa, pois de outro modo não sei em que interviessem os cânones aqui.

Portanto, para estas irmãs da caridade há de se impetrar do papa uma bula? E para quê? Para determinar quem há de fazer a regra, se o papa mesmo, se o geral de S. Vicente de Paula, para este caso somente, se o próprio governo? E o governo poderá assumir as funções de estabelecer a regra de uma ordem religiosa, fazer os seus estatutos e mandá-los ao papa para aprovar? Creio que a cúria de Roma não aprovaria tal procedimento. Portanto, as palavras que li não podem significar isto.

A insistência na criação desta nova ordem de irmãs da caridade faz-me recordar o celebre pedido: «Faça-me um soneto, ajuda que seja pequeno.» (Riso.)

Desenganemo-nos: isto é uma grande pequice, uma grande excentricidade! E aqui temos, nos documentos publicados pelo governo, um solene desengano do que é o instituto das irmãs da caridade. Todos estes documentos concernentes às irmãs da caridade foram publicados em língua portuguesa; este foi publicado em francês. Mas é curioso, curiosíssimo; e eu vou lê-lo. A bula está aqui já; é este documento. O que é preciso e ver se lhe dão o beneplácito ou não. Vem no Diário de Lisboa, e digo-o para que se não pense que é algum documento apócrifo. É a declaração do superior das missões de S. Vicente de Paula ao cardeal patriarca, na véspera da sua saída de Lisboa em 13 de Julho de 1857. Diz ele «Seria para desejar... (o modo de pedir é modesto) que houvesse em Lisboa uma casa central das irmãs da caridade, onde fosse colocada uma administração superior da comunidade encarregada de tratar directamente com as autoridades eclesiásticas e civis do reino, sem que estas fossem obrigadas a corresponder-se com Paris...»

De modo que o superior não contesta, não põe a menor dúvida em que as irmãs da caridade fiquem sujeitas aqui ao prelado português, no que respeita à jurisdição e às funções eclesiásticas. Faz esta grande concessão! A dúvida está no que diz respeito à obediência ao superior da missão, em tudo que toca à regra da ordem. A questão não é quanto à sujeição ao prelado ordinário português sobre os assuntos eclesiásticos; é só, sim, quanto à obediência ao geral da missão com relação às regras da ordem.

Mas a questão é outra: a questão é que essas religiosas são membros de uma congregação que tem estatutos, cujas estipulações não nos agradam, e uma organização que nos intimida, porque as irmãs da caridade, seja dito de passagem, não são senão uma emanação do espírito jesuíta, e em volta dessa congregação se juntam todas as ideias que ficaram desbaratadas e destruídas pela perseguição que se fez a essa instituição. Essas tendências, porém, são acobertadas e protegidas por uma etiqueta que todos devemos respeitar, como são os princípios de caridade, religião e consolação, - coisas santas, justas e boas, cobrindo coisas perniciosas e nefastas à verdadeira caridade e à verdadeira religião. (Apoiados.) Mas nós estamos ainda na primeira estação: a organização final, o ideal, o que devia contentar as vistas do superior da ordem das irmãs da caridade está aqui: «...Seria este um meio eficaz de preparar e pôr à prova as vocações, e por consequência de tornar esta instituição nacional, ficando contudo unida à casa mãe de Paris. Para realizar este pensamento bastaria destinar para este objecto uma casa vasta, que tivesse alguns recursos e uma igreja. Os missionários e as irmãs poderiam aí estar estabelecidos e servir a igreja, que ficaria sendo comum às comunidades...» Não são comunidades; o padre superior é que é um grande ignorante, tendo o atrevimento de chamar comunidades às irmãs da caridade.

«...Não é necessário que a propriedade lhes seja dada; basta que fiquem com o uso, continuando a pertencer a propriedade à autoridade eclesiástica.» Já sei o que isto é; e mais uma repartição que tem de ser incorporada no ministério, de modo que quando qualquer tiver precisão de falar ao ministro, responde-lhe o porteiro da secretaria: «Não lhe pode falar agora, porque está com o superior das irmãs da caridade.» Ora os meus ouvidos recusam-se a ouvir essa resposta. Não fui educado nisto; saí de Portugal quando não tinha ainda a idade de ouvir isto, e quando vim já o não ouvi, e quero morrer sem o ouvir. (Apoiados.)

Diz o superior: «Sem que estas fossem obrigadas a corresponder-se com Paris.» É uma concessão que faz o padre. Diz ainda: «Será este um meio de preparar e pôr à prova as vocações, e por consequência de tornar esta instituição nacional.»

Não se pode perder uma só frase. Será isto um meio eficaz de preparar o espírito para a prova das vocações?

Tudo quanto está neste papel é substancioso e importantíssimo. Mas pergunto o que é preparar os espíritos para as provas das vocações? É por qualquer modo ingerir-se no seio de todas as famílias para as trazer ao seu instituto? (Apoiados.) É segredar para o mesmo fim às senhoras, sem consentimento dos maridos? (Apoiados.) É assim que se preparam os espíritos das filhas para desaparecerem do seio das suas famílias? (Muitos apoiados.) É assim que entre famílias respeitáveis se estabelece a cizânia? (Apoiados.) Isto é fazer roubos sacrílegos, roubo sacrílego de uma alma, de uma existência, seduzindo-lhe absolutamente o espírito e o coração, como aconteceu há pouco, no Porto, com uma donzela, que estando próxima a passar para debaixo das ordens do director desta corporação, e apresentando-se-lhe sua mãe, lhe disse com os olhos no chão: «Não vos conheço!» - «Não me conheceis?» disse a mãe. - «Repito: não vos conheço; apartai-vos de mim, que pertenço a Deus e só a Deus!!...»

Eis aí o que é preparar o espírito para as vocações! (Muitos apoiados.)

Há mais. Disseram-me que uma senhora, estando no leito da morte, pediu, por princípios de devoção sincera, nem outros podiam nela imperar, que o seu leito de dor fosse cercado por algumas irmãs da caridade; e nesta pretensão extrema, tendo-se alguém dirigido a quem devia prover para que essas irmãs viessem a casa da moribunda, para orarem com os padres, disseram-lhe que, no estado em que estava a instituição, era preciso recorrer ao director; e foi preciso expedir um telegrama para Paris, para se saber se as regras de S. Vicente de Paula consentiam que, por pedido de uma agonizante, fossem enviadas irmãs da caridade para junto do seu leito! Era preciso para este acto da caridade cristã e humana licença do superior!! (Sensação.) Não afirmo o facto, mas há na câmara quem diga que é verdadeiro.

O SR. MENDES DE VASCONCELOS: - É verdade.

O ORADOR: - Vamos aos meios práticos. É singular, único (mostrando o documento que estava lendo) que este documento não fosse traduzido em português; está escrito só em francês; e o que é mais singular ainda é que, depois de transcrever este documento, diz o copista : «Não se contem nada mais no original.» E que devia e podia conter mais?! (Riso.)

Visto isto, que devemos nos fazer? Pela minha parte, louvo, celebro, animo, acompanho, promovo e agradeço todos os esforços feitos pelos particulares, pelo governo do estado, pelas autoridades superiores ou pelas autoridades de todas as categorias, tendentes a obstar a que o pernicioso pensamento exarado neste papel se venha a realizar. Pela minha parte, não cessarei de bradar aos restos desse velho partido liberal, que não têm ajuda amortecido as suas convicções por meio das transformações políticas por que temos passado, e a essa geração nova que abriu os olhos com a liberdade, que se acautele contra estes sofismas, e que nos unamos todos e formemos todos um antemural contra essas influências, que são perseverantes, incessantes, como demonstra a historia das imãs da caridade. (Apoiados.)

Louvo por consequência os Srs. ministros na parte eficaz, ou não eficaz, que eles têm tomado para fazer com que se não realize o pensamento que com as irmãs da caridade se tem em vista.

Louvo o ministério passado pela lealdade com que executou a legislação que então governava esta parte da administração pública. Creio e sei que é exacta, exactíssima a declaração aqui feita, de que no tempo da administração do Sr. Fontes não entrou maior número de irmãs da caridade francesas do que aquele que a lei permitia.

Louvo a câmara pelos votos que der ou tiver de dar, para com a sua importante intervenção pôr por uma vez termo a esta invasão, sempre renascedora, e que desde 1839 não tem cessado de espreitar ocasião oportuna para o restabelecimento de uma ordem religiosa, a um de que o exemplo serva de precedente para depois virem todas as outras.

Já se disse, e creio que com sinceridade, porque quem o disse era capaz de cumprir o que dizia: «Eu não temo a reacção das irmãs da caridade. Venham elas, e nós as obrigaremos a observar as leis do país, e senão tomaremos as medidas que se julgarem convenientes.» Esta política na boca de outro homem seria temerária, mas na do Sr. Fontes não o é, pois reconheço-lhe todas as qualidades para desempenhar um programa, porque é um homem de governo e de forte vontade.  Contudo, é temerária esta política, considerada em abstracto, porque na matéria sujeita podem não servir de nada as qualidades pessoais do ministro, em quanto que podem ser muito convenientes em outra qualquer ocasião e em outro qualquer assunto. Não posso, portanto, confiar nelas para a execução desta medida, porque esta política tem pecha. Não há reacção religiosa; mas há reacção verdadeira, real e palpável, e eu tenho medo dela. (Apoiados.) Pois então não viram as irmãs da caridade pedir hospitais? Não foi isto o que representaram ao ministro? «Venham as irmãs da caridade, disse o ministro, venham, visto que não vem para viver em comunidade.» Vieram as irmãs da caridade, e seis dias depois, ou oito já estavam em comunidade, ou creio mesmo que já entraram em comunidade. «Venham, mas para os hospitais.» E passados três dias já estavam nas escolas. «Venham as irmãs da caridade, mas venham só tantas quantas o governo determinar que venham.» Creio que eram umas dezoito, e pouco tempo depois vieram sete vezes dezoito. Foi-lhes mandado um alvará; desobedeceram. Depois uma portaria: desobedeceram. Disse-se-lhes que obedecessem ao prelado: disseram que já não era possível, e que estavam muito arrependidas do pouco que tinham obedecido, porque sentiam sobre si as iras do céu. Estavam dispostas, vinham prevenidas para todas as hipóteses. Depois disse-se-lhes: «Largai a casa.» Responderam: «Não; e estamos resolvidas a professar.» Portanto estão desobedecidos todos os mandados do governo, reforçados por todos os poderes do estado, estribados numa forte opinião pública, numa imprensa que clama e num parlamento que é avesso a esta instituição.

Não se diga que o decreto de 9 de Agosto de 1833 não abrange esta instituição, visto que ali só se fala das ordens religiosas do sexo masculino, e estas são do sexo feminino. A questão não é só das irmãs da caridade francesas são duas ordens de que nos estamos tratando. A congregação de Rilhafoles é especialmente compreendida no decreto. (Interrupção.) É outra congregação lazarista: creio que são parentes e muito cegados, (riso) e o seu espírito é um só. Receamos que essas instituições, constituindo-se poderosas pelas riquezas e influência das famílias, se tornem nefastas aos poderes do estado e ao exercício das liberdades públicas, porque todas elas são filhas do mesmo pensamento; e sejam o que for, irmãs ou não irmãs, pertencendo ou não a uma instituição diferente, ou a outra ordem religiosa, entendo que estão compreendidas no mesmo decreto de 9 de Agosto. Depois fala-se em obediência ordinária. Isto está condenado pelas próprias palavras do decreto, que prescreve a extinção das ordens religiosas. O decreto, depois de fazer considerações históricas e muito lúcidas sobre a origem das corporações religiosas, mostra a necessidade de as extinguir, porque não eram compatíveis com as ideias do tempo. Pô-las debaixo da jurisdição ordinária, diz o relatório do decreto, não resolvia nada, não destruía os seus inconvenientes, e contra esses inconvenientes é que o decreto é feito. O decreto de 1833 não acabou uma só, extinguiu todas as ordens religiosas: se não extinguiu as femininas, extinguiu as masculinas, e cá está uma masculina.

O SR. LOBO D'ÁVILA: - Foi o decreto de 1834.

O ORADOR: - Pode-se sempre citar, e principalmente numa época em que os homens públicos têm a ventura de repetir os edictos das leis na presença daqueles que tiveram a glória de assiná-las.

Quem nos havia de dizer que as irmãs da caridade, treze ou catorze senhoras, esquecidas pelos ódios revolucionários, escapadas aos edictos das leis que destruíram aquelas congregações, e respeitadas pelo público durante muito tempo, deviam ser o núcleo de pretensões tão exageradas, de questões tão graves como esta de que nos estamos agora ocupando? Começaram tão poucas, e em tão pouco tempo têm avolumado tanto, que já hoje são objecto exclusivo da nossa aplicação e motivo de perturbações nos poderes do estado. (Muitos apoiados.)

O meu predilectíssimo amigo, o Sr. Mártens Ferrão, (torno a repetir o superlativo se ele não existisse na gramática, eu criava um especialmente para este caso); (riso) o meu predilectíssimo amigo, com a ilustração e sinceridade que o caracterizam, em vez de diminuir, de restringir a questão ao seu espírito, foi tratá-la nas suas tendências e efeitos naturais, e encará-la debaixo das relações de princípios, com a franqueza e convicção que ele põe em todos os assuntos.

                                                                                                     >>>HotwordStyle=BookDefault; Sustentou o meu ilustre amigo que o direito de ensino era um direito primo co-irmão do direito de manifestar o pensamento, que era o apanágio essencial da nossa individualidade, que as leis do estado deviam respeitá-lo, ou pelo menos não lhe pôr mais restrições do que as que eram exigidas pela ordem pública, e que o estado tem obrigação de prover ao ensino, mas não o direito de ensinar exclusivamente.

Eu aceito completamente estas ideias, mas alargando-as. Não quero procurar a origem doutrinal deste argumento de fervoroso respeito pela liberdade. aplicado no dia seguinte àquele em que a liberdade triunfou, contra os votos da escola que muitas vezes fez disto argumento para lograr os seus intentos.

Respeito a liberdade, respeito todas as liberdades, admiro-as, sigo-as e quero todas as suas consequências. Mas o que não quero é que a liberdade seja por tal modo sublimada que se destine ao suicídio; (muitos apoiados) e que de concessões em concessões, com princípios que lhe são opostos e adversos, ela seja levada a sancioná-los. (Muitos apoiados.)

Admito a liberdade do ensino; mas quero também a liberdade religiosa, não como está na Carta, porém franca, completa e absoluta. Não é a tolerância de todos os cultos, que não são consentâneos com a religião da maioria, não e só a tolerância, é a igualdade do culto que eu desejo.

Se a doutrina do ilustre deputado é que não haja culto legal, que cada um tenha a religião que quiser, eu aceito-lha completamente, porque para mim é um grande absurdo isto de religião da maioria. A religião é da consciência, e na consciência não há maioria nem minoria.

Seria um grande absurdo contar por números, por cabeças, estas aspirações inumas que o homem pode ter para Deus, e o modo como pode conceber as verdades religiosas. À consciência é toda uma, e a de um só homem é tão respeitável como a de trezentos homens; não há nela maioria nem minoria, porque é uma emanação de Deus, e dela é que nasce e se gera o sentimento religioso. O meu é tão forte, tão grande, tão intimo, como o de qualquer homem que a mim seja igual, ou como o de todos os homens juntos.

Qual é a nação que pode dizer que tem a religião da maioria dos seus habitantes? Pois catorze consciências são mais do que uma? Catorze opiniões são; mas catorze consciências, não.

Portanto, se o ilustre deputado e meu predilectíssimo amigo está disposto a votar este princípio, eu voto a liberdade de ensino, porque a liberdade de ensino é consentânea, congenial concomitante com a religiosa, neste sentido latíssimo em que eu a apresentei. E se o ilustre deputado citou Lamartine para autorizar as suas ideias, eu direi que Lamartine, já muito antes de ter clamado pela liberdade de ensino, tinha insistido nesta opinião. Temos liberdade de tudo, do comércio, da imprensa, de tudo, - e só não libertamos Deus! Porque Deus não é livre quando tem maioria e minoria, 0,1 quando enumeramos as consciências pelos métodos falsos de contar que temos admitido. Figurem Deus com maioria ou com minoria: a comparação autorizaria muito os ministros, mas Deus parece-me que, apesar da sua omnipotência, também se veria gravemente embaraçado. (Riso).

Mas a liberdade do ensino com um governo a superintendei-a, e esse governo pertencente a uma nação que tenha uma religião dominante, que significa? Na ilustrada concepção do ilustre ministro, uma inquisição, (apoiados) mas uma inquisição pacífica, sem opressão, sem sevícias, embora sempre com autoridade suprema derivada de qualquer princípio. E essa liberdade é nada diante dessa supremacia. Portanto, ou liberdade completa e absoluta, ou as restrições necessárias para que a liberdade se não perca pela força da sua generosidade.

Mas a câmara deve saber que eu não tenho feito proposta alguma que não tenha sido uma imitação autorizadíssima de propostas feitas em outros países e em circunstâncias idênticas, nem sustentado doutrina que não tenha sido sustentada pelos mais abalizados publicistas da Europa. Que proponho eu na minha moção? Que se compile e revalide o nosso direito a respeito de associações ou corporações religiosas. Muita gente diz: «Pois o direito existe ou não existe? Se existe está publicado, e publicá-lo outra vez é enfraquecê-lo. Se não existe, é criá-lo de novo, e será talvez imprudente criá-lo.» Estes raciocínios são extremos, são lógicos: mas os homens de estado, as grandes nações não se governam por eles.

Em 1828, creio eu, houve na França, pouco mais ou menos, uma situação como esta. Havia antes muitas congregações autorizadas e não autorizadas, toleradas e não toleradas, e com o domínio da restauração apareceram outra vez todas; creio que se reformaram umas, que se criaram outras de novo, de maneira que os olhos do governo francês começaram por um instante a anuviar-se com a vista de tão variegadas congregações, e para lhes por cobro fez uma segunda edição do direito escrito estabelecido. Estabeleceu-se pois o seguinte: «Fica proibida a introdução em França de congregações religiosas, excepto daquelas a que por leis especiais for permitido entrarem em território francês.» Isto já estava estabelecido, mas promulgou-se de novo.

É o que fazem as congregações religiosas. Quando querem estabelecer as suas pretensões não proclamam doutrina nova, proclamam a doutrina já antes proclamada; e o meio de obstar a essa proclamação nova de doutrina velha é fazer promulgação nova de lei velha. Uma congregação proclama o que já proclamava há cem anos; nós promulgamos uma lei que já promulgámos há cem anos. O modo de obstar a que essas congregações consigam o seu fim é os poderes públicos estarem sempre alerta; e, se quando elas falarem, falarmos nós também, parece-me que não chegará a estabelecer-se o vasto desenho da congregação do padre Étienne. É este o meu desejo. (Apoiados.)

Esta lei, como disse, foi publicada, (e isto prova que não suo as opiniões dos partidos, nem as opiniões dos príncipes o que muitas vezes governa os estados, mas sim as necessidades públicas) esta lei foi publicada por Carlos X!  Um ministro corajoso representou-lhe que era preciso pôr cobro àquela desorganização, àquele aspecto de anarquia, e receando que os sentimentos piedosos do rei pudessem pôr dúvida à sanção da medida, disse-lhe: «Esta lei pode tocar com a consciência de vossa majestade  convém que vossa majestade a medite por algum tempo.» O rei podia sancioná-la em três dias, mas vinte e quatro horas depois disse: «Convém à tranquilidade dos meus estados publicar esta lei». E publicou-a. Segundo disseram os interpretes da sua vontade e os historiadores da sua consciência, fê-lo com grande dor e sofrimento nas suas afeições religiosas, mas cumpriu rigorosamente o seu dever. Nos estamos neste caso. Eu peço uma coisa racional e justa; mas para aqueles, para quem não bastam estas considerações, direi que peço uma coisa que já se fez, e parece-me que assim ficarão mais encorajados, e será menor a sua hesitação.

Quanto ao ensino, as leis francesas são mais rigorosas do que o meu ilustre amigo indicou. Na lei de 1844, a respeito do ensino secundário, que não sei se cegou a ser lei, mas que teve a sanção dos poderes públicos, e eu cito-a, não como lei, mas como autoridade; nessa lei, foi introduzida uma ordenança de 1838, que já se observava, e que passou de portaria ou coisa semelhante a ser lei. Onde está estabelecido nessa ordenança? O seguinte. (Leu.)

Eis aqui como era então interpretada a liberdade do ensino. E note-se que, mesmo àqueles que se destinavam ao ensino eclesiástico superior ou inferior, se exigia a promessa de não pertencerem a corporação alguma religiosa, a fim de desvanecer qualquer suspeita de influência de autoridade superior no seu espírito.

Quanto ao ensino, para que fiquem bem definidas as minhas ideias, direi que eu quero um ensino público e religioso que seja pago pelo Estado e vigiado pela autoridade civil. Depois admito a liberdade religiosa, segundo as condições que acabei de expor; admito o ensino livre emanado dos poderes civis, acompanhado da instrução religiosa, mas da instrução religiosa dada pelo clero português. (Apoiados.) Mais nada. (Apoiados.) São estas as minhas ideias, as minhas opiniões e as minhas convicções. (Apoiados.)

Concluo neste ponto, perguntando ao Sr. presidente do conselho de ministros, ou antes reiterando a minha pergunta a S. Ex.a, - se S. Ex.a sabe, se tem conhecimento oficial do facto a que ontem me referi se julga, no caso que se tenha dado, que ele é permitido pelas leis do país; e, se não é permitido, de que meios pretende lançar mão para obstar a este e outros factos semelhantes? Fica esta pergunta dependente da resposta de S. Ex.a», para ele a dar ou durante esta discussão, o que me parece mais natural, ou quando o julgar mais útil, de modo que possa satisfazer a esta minha requisição sobre tão importante objecto. Não espero que S. Ex.a julgue que o silêncio a este respeito seja um procedimento digno do lugar que ocupa, nem do seu carácter cavalheiroso, mesmo conservando-o para o bom êxito das negociações diplomáticas que porventura existam a respeito da questão das irmãs da caridade.

Tenho concluído o assunto principal. Não quero o instituto das irmãs da caridade, nem como ele existe, nem mesmo como o governo o propõe no projecto que apresentou. Quero a organização da beneficência pública por meios civis, e intervindo a autoridade civil. (Apoiados.) Quero juntamente a instrução religiosa enquanto for ministrada pelo clero português. (Apoiados.)

Vou concluir, tocando de passagem, para satisfação da minha consciência, para decoro do partido liberal e para honra desta terra, num ponto importante. Festejo e celebro o grande facto político que tivemos a ventura de presenciar - a reunião de um grande povo debaixo de um único governo, inspirado das mais altas ideias humanitárias, (apoiados) e isto depois de tão longas eras de opressão, (apoiados) depois de tantos actos de coragem e de patriotismo como os que se deram para cegar a realizar este grande acontecimento. (Apoiados.)

O governo pagou um justo tributo aos sentimentos liberais desta terra, à civilização do país e à opinião europeia, reconhecendo o governo de Itália. (Muitos e repetidos aplausos.) Mas resta-me exprimir o meu sentimento de pesar por que o governo praticasse este acto tão tardiamente, (apoiados) tirando-lhe muito do valor político que podia ter em relação a nossa situação, aos nossos interesses, e muito mais à delicadeza e melindre que devemos àquele grande estado! (Apoiados.)

O SR. MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS (A. J. D'ÁVILA): - Peço a palavra por parte do governo.

O ORADOR: - Sei que havia muitos espíritos timoratos que temiam que, com o nosso pronto reconhecimento do governo de Itália, fossemos sancionar uma doutrina que podia mais tarde ser aplicada contra a nossa nacionalidade e era em parte neste mesmo argumento. era neste mesmo reparo que eu fundava as minhas instâncias para que o governo português se apressasse a fazer o que fez mais tarde. (Apoiados.) O princípio de vida para a Itália é o princípio por que nós havemos de viver; (apoiados repetidos) é o princípio pelo qual nos vivemos com a nossa independência desde longa data; é o princípio que nos dá direito a existir; é o princípio que nos habilita a sustentar sempre a nossa individualidade nacional diante da Europa toda, (muitos apoiados e aplausos gerais) porque é o princípio da dignidade, da alma e do espírito nacional! Essa dignidade, essa alma e esse espírito nacional é que nos mantém como país livre que somos e com a independência que temos. (Apoiados.) A Itália sustentou-o vantajosamente em todas as transacções diplomáticas que lhe deram vida à face da Europa.

A Europa reconheceu e reconheceu tardiamente; e ao governo do nosso país faltou o instinto diplomático e político para se apressar a fazer esse reconhecimento logo depois da Inglaterra, porque devíamos ser a primeira nação a fazei-o depois dela. E neste acto, vejo eu uma falta à nossa política tradicional externa, e ao que indicava o bom senso político.

E a razão por que se não fez?… Disse-se: «Nós esperámos por uma potência católica; não havíamos de ser a primeira potência católica a fazer esse reconhecimento.» E que tem a questão da Itália com o catolicismo?! (Apoiados.) Pois questões de religião, pois interesses de nacionalidades, estão porventura sujeitos, neste ponto, a considerações cerebrinas e a aplicações especiais que por modo nenhum aqui tem cabimento?...

A França reconheceu o reino de Itália tardiamente, porque sobre a França carregava directa ou indirectamente a responsabilidade deste facto, e porque a França, reconhecendo a Itália, quase se comprometia a resolver a questão de Roma, e essa questão era em extremo complicada. A França podia, portanto, calar-se e tardar. A Espanha que havia de reconhecer? Não reconheceu nem há de reconhecer nunca a criação do reino de Itália, porque esta é contrária às suas ambições futuras, porque é contraria a uma certa pretensão, talvez elevada, que ela tem, de ser o porta-estandarte do catolicismo, e porque a Espanha, todos o sabem, era altamente afecta à causa do rei de Nápoles. A Áustria não podia reconhecer os seus desastres de guerra, o retalhamento do seu território e a debilidade do seu império. A Prússia, com pretensões a ser cabeça dos estados alemães, hesita em fazê-lo, porque tem de dar a mão à Áustria sem consentir que seja morta, nem que triunfe. A Rússia, envolvida em questões importantes, e agrupada naquele número de nações e de povos, que historicamente tinham sido opressores da Itália ou não simpatizavam com a sua causa, não podia facilmente prestar-se a esse reconhecimento.

Mas nós! Nós, aparecendo uma nacionalidade, era do nosso dever reconhecê-la: era do nosso dever saudar esse grande facto, consubstanciar-nos com ele por todos os modos e apesar de todas as eventualidades! Porque isto era consentâneo com a nossa individualidade; e muito mais desde que estava previsto que mais tarde esse facto se realizará forçosamente.

Portanto, se o facto se realizou, a nossa hesitação pode ser explicada pelo constrangimento em reconhecer o reino de Itália, dando azo a suspeitas de que não entendemos quanto tal facto nos era vantajoso.

Mas havia, de mais a mais, deveres especiais. Nós éramos italianos: nós, portugueses, éramos italianos porque tínhamos a carta de cidadãos piemonteses. Quando um capitão, um rei soldado e generoso, vindo da batalha de Novara, que foi para a Itália o mesmo que foi para nos a batalha da Cruz dos Morouços, se viu aturdido, superior à sua desgraça, mas não superior à sua dor, e furtando-se às vistas das cortes e dos soberanos, de jornada em jornada através da Europa, não como se tivesse fugido do campo da batalha, mas como se tivesse de se esconder, à lembrança de tamanhos desastres, nos últimos confins da terra, veio parar ao Porto - ali uma povoação guerreira, que nos dá o exemplo e a pragmática de tudo quanto é liberdade, (muitos apoiados) reconheceu que tinha na honesta casa da Torre da Marca um transunto fiel das recordações gloriosas de que ela gozava! (Apoiados.) Ali viu em Carlos Alberto a história de D. Pedro, e cercou esse rei dos mesmos respeitos e dedicações que tinha consagrá-lo ao capitão debaixo de cujas ordens havia pelejado pela causa da liberdade, (apoiados) e pela causa do povo, que é a causa de todos. (Apoiados).

O Porto estremecendo pela saúde de um rei desgraçado, como tinha estremecido pelo seu rei, manda emissários e emissários, que lhe tragam a certeza de que pulsava ainda esta vida que lhe inspirava tanto afecto. E nos últimos momentos do príncipe infeliz, e no seu sofrimento, acompanhou-o com tantas lágrimas e deu tais provas de dor cívica, que o governo da Sardenha julgou dever premiar com o foro de cidadão piemontês ou italiano os cidadãos que se tinham ilustrado naqueles actos de dedicação ao rei, que tinham chorado pela causa da Itália, na impossibilidade de a defender com as armas nas mãos! (Apoiados.)

A um povo irmão, ligado por tais vínculos a um povo que, dentro das muralhas do Porto, deu tantas provas dos seus sentimentos a este povo pertencia cerrar os ouvidos a considerações diplomáticas de menor importância, e, levado dos estímulos generosos de uma política forte, ser o primeiro a reconhecer esse grande facto, a reconhecê-lo extremosamente, e a fazer desse reconhecimento e desse facto menção especial no discurso da coroa. (Apoiados.)

E é assim que se ganha alguma coisa na Europa, é assim não é isolando-se os ministros de todo o sentimento público, concentrando-se, amesquinhando a sua cabeça em considerações da sua situação política não pensando senão em que os querem substituir nos perigos da situação em que se acham. e pondo o seu espírito e a sua alma na escala das suas pretensões.

O Piemonte, se fosse governado por tais inspirações quando se levantou a guerra do Oriente, não mandava lá os seus exércitos, não hasteava lá a sua bandeira, e não começava, na irmandade dos campos de batalha, essa irmandade diplomática, que tanto tem valido à reorganização da Itália.

Não é a pequenez dos estados, é a pequenez dos homens que os governam, que os condena a uma perpétua inferioridade, porque não sabem, nos recursos da sua inteligência e na força da sua alma, achar os meios de contrabalançar ou de suprir a pequenez do território, a pouca população e a pouca opulência do seu país.

Eu sinto que o Sr. ministro dos negócios estrangeiros - isto sem fazer ofensa à vastidão dos seus conhecimentos e à flexibilidade do seu espírito, costumado a considerar estreitamente as questões financeiras num país que só agora começa a ter finanças, e S. Ex.a foi sempre ministro quando não as havia! - eu sinto que o Sr. ministro dos negócios estrangeiros considerasse com este hábito do seu espírito uma questão que não se decidia por princípios desta espécie, e que S. Ex.a por momentos não se elevasse à altura que um assunto desta ordem pedia.

(Vozes: - Muito bem.)

 

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Dez.2000