José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

1 - Projecto da Constituição de 1838 (5-04-1837)

 

 

SESSÃO DE 5 DE ABRIL DE 1837

 

Senhores! Não sei definir o sentimento que me domina, tendo de usar da palavra, que tanto me foi regateada. Seja ele qual for, nem me impede, nem me desobriga de falar. Maravilhado com a extraordinária notícia de que há um tribunal, um ser, uma inteligência superior, a que se deu o pomposo nome de espírito humano, pelo qual se inculcaram como definitivamente resolvidas todas as questões de direito público, como claramente demonstrados todos os direitos dos povos, e como conhecidos e determinados os interesses de todas as nações - eu entro cheio de timidez na questão da organização política do meu país, com as fracas luzes do meu espírito, e contrariarei talvez as decisões desse grande poder, cujos arestos eu até aqui considerava, e ainda persisto em considerar, mais como opiniões que era permitido combater, do que como preceitos a que era forçoso sujeitar-nos.

Senhores! Está para mim chegada a ocasião em que é indispensável que eu deposite francamente no vosso seio as minhas opiniões políticas; e para vós também é vindo o momento em que deveis dar um solene documento da vossa tolerância.

A minha convicção é forte e enérgica; e quando o espírito se enche duma convicção destas, ainda que as ideias que a formam se possam chamar perigosas, ainda que pareça imprudência pronunciá-las, ainda que o silêncio seja um dever, esse dever cumprido deixa o remorso de uma falta cometida. Quando uma convicção sincera e profunda se apodera do homem, e a sua língua se não presta a manifestá-la, ou essa língua não é desse homem, ou ele é dotado de uma prudência cem vezes mais perigosa que a mais ilimitada franqueza.  Tolerância, lembrei-a, não a peço; exigi-la-ia, se de nós fosse preciso exigir alguma virtude de homens públicos; - prendem-nos deveres de mútua complacência; é preciso que cada um de nós respeite as opiniões dos outros, para que as suas sejam respeitadas; eu respeitá-las-ei todas, combatendo aquelas com que não concordar, e espero que as minhas serão respeitadas, sem deixarem de ser combatidas. (Apoiado.)

Atenção, essa peço eu; e os únicos títulos, que apresento para a merecer, são a ingenuidade das minhas confissões e a brevidade do meu discurso.

Para que a consideração da minha pouca idade, alguns preconceitos levantados sobre a exaltação das minhas opiniões políticas, e mesmo o preâmbulo de prevenções, que tenho feito, não atemorizem as consciências tímidas de alguns dos meus colegas e os não ponham em receio de que vá sair da minha boca alguma explosão de princípios pouco concordes com a dignidade do trono e com a estabilidade da monarquia - eu, denunciando a minha seita, patentearei em uma só palavra a minha crença. Caracterizar-me-ei por um apelido, que não pode dar suspeita de grande exageração política, e que nós estamos muito acostumados a ouvir pronunciar neste congresso. Eu também sou doutrinário; mas a minha doutrina é a que se vai ouvir.

Se nós julgamos ter dado um grande passo de progresso declarando o princípio da soberania nacional, enganamo-nos. Confessarmos este grande dogma político é reconhecermos a força das cousas, não contestarmos os fenómenos do dia, e sujeitar-nos à influência invencível dos sucessos. Seria preciso que rasgássemos as nossas próprias procurações, que desconhecêssemos o facto da nossa existência política, - seria preciso que déssemos um inaudito testemunho de imoralidade e cepticismo para negarmos a luminosa verdade de que no povo reside a soberania.

Aquele filósofo, que, cortado o corpo de bastonadas, e tendo no sentimento da dor a prova da sua existência, ainda assim continuava a duvidar dela, seria um símile exacto deste congresso, se ele negasse o princípio da soberania popular. Confessá-lo, não foi pois virtude nossa, foi necessidade.

Mas confessar um princípio é nada; é preciso defini-lo para lhe não cercear a importância, e submeter-nos às suas consequências para não parar em uma teoria estéril. Ora definir o princípio da soberania popular é reconhecer que o povo é o único senhor de todos os poderes políticos, de todas as faculdades governativas; e sujeitar-nos às suas consequências é reconhecer que ele pode delegar o exercício destes poderes como quiser, e em quem quiser.

O princípio da soberania popular e a cessação dos abusos da Carta foram a grande conquista de 9 de Setembro; e esta conquista foi que nos levantou inimigos fora e dentro do país. A Europa do Direito Divino não pode sofrer que nós quebrantássemos os seus dogmas de escravidão; e os que viviam do desgoverno da Carta enraiveceram-se pela volta a um regimen de ordem e de responsabilidade. Estes inimigos fizeram aliança entre si, e esta aliança comum fez o seu comum descrédito. Os nossos inimigos internos, apoiando-se para as suas maquinações nas influências do estrangeiro, são contrários à nossa nacionalidade; e os estrangeiros que, para combater a nossa revolução, se ligam ao partido dos abusos, querem estorvar a nossa prosperidade.

Se pois nós reconhecemos e definimos o princípio da soberania popular, se nos sujeitamos às suas consequências, e se exercemos, por delegação especial, essa soberania, - inquestionavelmente estão reunidos em nossas mãos todos os poderes do estado, e temos direito a distribui-los e dividi-los como melhor nos parecer.

  Permiti, senhores, que me eleve a esta altura, e que tire a medida das nossas faculdades do espírito das nossas procurações, sem me prender a palavras, para evitar o embrulhar-me em questões que tocam com muitos dos nossos contemporâneos, e se referem a sucessos em que muita gente está envolvida.

Se consideramos os fins e a natureza das associações políticas, achamos que é indispensável que nelas haja leis, julgador, execução; isto é, poder legislativo, judicial e executivo.

Examinemos se estes poderes, no projecto da Constituição, estão divididos de modo que esta divisão dê as maiores garantias de ordem e de liberdade.

Juiz só, a julgar só; um rei só, com ministros responsáveis, a executar só; uma câmara só, a legislar só;  - eis a minha monarquia, eis o meu governo representativo. (Muitos apoiados.)

Creio que ouvi apoiados de outra parte * além destas cadeiras;  se continuarem, sento-me. (Vozes: Nada, nada, tal não há.)

Pareceu-me; seria um engano, mas um engano, que julgo não mostrar outra coisa senão o meu zelo pela ordem. (Muitos apojados.)

Vejo, pelo projecto da Constituição, que não pode completar-se a lei sem a cooperação do trono; mas vejo que pode completar-se a sua execução sem a concorrência do poder legislativo; - vejo que o trono pode demitir os legisladores populares, pode estorvar que a lei se faça, e que ele tem um colégio de legisladores seus; mas não vejo que o poder legislativo possa demitir os delegados do executivo, que possa estorvar a execução, e que tenha algum colégio de executores próprios. Com mais clareza: vejo que o trono tem o veto absoluto, o direito de dissolver, e o de nomear os senadores. Finalmente, vejo nesta organização do projecto, não uma divisão igual de poderes, mas uma sujeição completa do legislativo ao executivo; vejo aquele estabelecido de forma que as suas decisões podem a cada momento ser atacadas e destruídas, e o trono convertido em padrasto político, que não pode legalmente ser atacado.

Notemos agora as expressões artificiosas com que se costumam encobrir ou disfarçar a aspereza e exorbitância dos direitos que se concedem à coroa, e os poderes e forças fictícias, que se inculcam como próprias para neutralizar a sua acção. Ao veto absoluto dá-se modernamente o nome mais suave de sanção livre; mas é preciso confessar que a suavidade da frase não diminui em nada a força da ideia. A vontade do trono sempre destrói a vontade do corpo legislativo; e a lei, que a sabedoria de um congresso tinha julgado útil ao país, morre às vezes por um capricho. Ser livre em sancionar é ser absoluto em proibir. Ao direito de dissolver chama-se direito de apelar para o povo; e esta expressão, além de artificiosa, é falsa. Quando se apela, é de um tribunal para o outro; mas aqui apela-se do povo para o mesmo povo, porque a sentença ou decisão do corpo legislativo, que motiva a sua dissolução, sendo dada pelos representantes do povo, é sem dúvida a sentença popular.

Além de que não vela o povo pelos seus mandatários, não julga os seus actos, não tem meios de os desaprovar? Não conhece ele os seus interesses, não sabe quem lhos promove, ou lhos arruina? Pois o povo, que é o juiz nato dos seus representantes, que tenha direito de os demitir. E que acontece quando se dissolve o corpo legislativo? O governo cerca a urna eleitoral de toda a sua influência. Ao cidadão necessitado, que serve a nação, diz-lhe: «Se me não vendes a consciência, reduzo-te à miséria». AO ambicioso: «Se me dás o teu voto, abro-te o caminho das honras e das riquezas, e franqueando-te o estádio senatório, investir-te-ei do direito perpétuo de legislar, sem que te seja preciso humilhar-te à urna para receberes a honra de uma legislatura temporária». Ao timorato, mas amigo do país, clama-lhe com as exagerações populares, com as vistas ambiciosas das oposições, com as democracias e com a anarquia.

É isto, Sr. presidente, apelar para o povo, ou obrigar o povo a reformar a sua sentença?

Se o povo obedece e a sentença se reforma, o ministério, altivo com a vitória, corre desatinado ao complemento dos seus projectos, e a escravidão cai sobre o país: - se o povo persiste em suas primeiras escolhas, e manda à coroa os homens de que ela se quis desafrontar, e se os ministros, não querendo receber a lei da nação, contrariam ainda a sua expressa vontade, a revolução vem abalar o edifício social.

Diz-se também que o corpo legislativo pode retirar a confiança ao ministro, e recusar-Ihe os tributos; mas quando com tanta ênfase se fala neste direito de recusa, é preciso não esquecer, como creio que esquece, que o poder executivo, tendo o poder de dissolver, ou o exercita provocado por essas recusas, ou prevenindo-as se antecipa a exercitá-lo. Que importa que o corpo legislativo recuse maioria ou tributos, se uma pronta dissolução anula o efeito desses seus actos? A dissolução é além disto a morte dos corpos colectivos, e o suicídio, não sendo natural, não é fácil. Um corpo legislativo só com muito custo toma uma política que lhe atraia a dissolução: - o receio de morrer sempre lhe acanha os brios.

O direito de recusar tributos, sendo um direito importante em si, é sempre usado com muita prudência, e assim mesmo dá mais frutos de calamidade e desordem, do que de liberdade e ventura. Consulte-se a história (os factos são os mestres da política) e havemos de notar que, por uma vez que um corpo legislativo tem recusado tributos, cem vezes o poder executivo tem dissolvido corpos legislativos. Que denota isto? Se os tributos são recusados, e se se lhe segue a dissolução, no intervalo das novas eleições, ou eles continuam a perceber-se, a despeito da recusa, e então o povo, pagando-os, e o ministério, tratando de os receber, quebrantam as leis fundamentais do sistema representativo, ou esses tributos se não pagam efectivamente e uma quadra de penúria, de descrédito e inacção governativa pesa sobre o país. No meio destas alternativas muitas vezes a revolução aparece; e eu não quero concorrer para que se faça uma constituição, onde o princípio vital da liberdade não esteja seguro nas formas e disposições terminantes dela. (Apoiado).

Diz-se que estes direitos nunca podem ser exercidos em dano do país, porque a opinião pública tem meios fortíssimos de censura e desaprovação, com que enfreia todos os poderes e modera todos os excessos. Sr. presidente, pois não se quer dar ao corpo legislativo, tribunal onde se reúnem todas as luzes da nação, onde todos os interesses são representados, a força suficiente para contrariar as pretensões exageradas do executivo, para subordinar a sua vontade aos interesses nacionais, e quer-se sujeitar esse mesmo executivo às incertezas da opinião pública, ao apaixonado das suas decisões, à irregularidade das suas sentenças? Sr. presidente - é extraordinário! A inviolabilidade real é o princípio elementar da liberdade e da ordem, é a base do sistema representativo, é o mais seguro penhor da estabilidade do trono. Esta inviolabilidade repousa e baseia-se toda na inacção governativa; e se este princípio se quebrantasse, se a inviolabilidade se contestasse, o trono perdia o prestígio e as prerrogativas da majestade, e em luta com a nação, ou era derribado pelos braços do povo, ou encadeava o povo aos seus degraus. Assim eu acredito, senhores, eu defendo com todas as minhas forças o princípio de que  o rei reina e não governa. Ora quando se contesta a imprudente aglomeração de poderes de que se cerca a coroa, sempre os partidários do desequilíbrio político nos argumentam com o esplendor, com a majestade do mesmo trono. Pois se os poderes que se concedem ao trono não é o trono que os exercita; pois se a majestade, se o esplendor da realeza, dependem da sua estranheza aos negócios públicos, e estão ligados à carência desses poderes, - como se quer legitimar a concessão deles pelos mesmos motivos que mostram a inconsequência de lhos conceder?!

Sr. presidente, não é pelo trono, é pelo proveito dos que o cercam, que se lhe acumulam poderes exorbitantes; é para encobrir o domínio oligárquico com o manto real; é para comprometer os príncipes nos desvarios dos homens de estado, e satisfazer ambições em dano da sociedade.

O que até aqui tenho exposto é para mim suficientíssimo para rejeitar o projecto da comissão. Mas, Sr. presidente, além disto, vejo que o artigo desse mesmo projecto, que trata da formação da segunda câmara, estabelece que os senadores serão vitalícios. Eu reputo este princípio contrário à dignidade senatória, inimigo da liberdade e oposto à segurança do trono. Vejo que só à coroa é dado o poder de nomear senadores, e isto considero eu como uma restrição desnecessária aos direitos populares, e como um fatal presente feito à mesma coroa; e vejo finalmente que os senadores podem ser nomeados sem número fixo, e nesta faculdade descubro, ou a morte da liberdade, ou o perigo das revoluções. Também li (e oxalá que não lesse!) uns artigos transitórios, que estão unidos a esta parte do projecto, onde se estabelece que o trono só daqui a seis anos entrará no direito exclusivo de nomear os senadores; mas que actualmente o povo concorrerá para essa nomeação. Concede-se hoje ao povo participar de um direito com o trono, e daqui a seis anos esse direito une-se todo ao mesmo trono! Que é isto? Não queremos nós conhecer o espírito progressivo da época? Queremos renegar do evangelho do século, e negar as tendências da nossa idade?

Que profecia terrível de retrogradação é esta para o nosso país? Pois o povo português daqui a seis anos há-de ser privado de um direito de liberdade, que hoje se lhe confere? O povo português há-de ter menos capacidade para ser livre daqui a seis anos, do que hoje? (Apoiado, apoiado.) Isto confunde-me, isto é inaudito! Aqui não ha doutrina a combater, há só uma profecia a esconjurar. Eu empenho pois todos os poderes do céu e da terra para que a levem para longe de nós, na profunda e grata convicção de que o povo português há-de caminhar sempre na estrada do progresso e da liberdade, debaixo dos auspícios da ordem e da civilização.

Sr. presidente, segundo a minha exposição, talvez amanhã se diga que sou republicano. Se o fosse, havia de dizê-lo, porque o nome não tem fealdade. Mas eu não sou republicano, nem esse nome é de apetecer no nosso país. Todos os homens públicos, que entre nós mereceram esse apelido, têm assistido aos funerais da liberdade, trajando galas e cantando hinos de alegria. Eu amo os tronos, porque vejo neles um princípio inocente na organização social; julgo que todos os danos que têm feito não vêm deles, mas do modo de os constituir, do erro de os cercar de direitos terríveis, que lhes são funestos. O trono entregue às suas atribuições de beneficência, fora das contestações políticas, escudado pela sua indiferença governativa, há-de descansar sempre sossegado à sombra das simpatias populares.

Sr. presidente, terminarei o meu discurso, repetindo a minha profissão de fé política, que tanto folgo que seja de todos os portugueses conhecida, como desejo que por ninguém seja desfigurada. - Juiz só, a julgar só; um rei só, com ministros responsáveis, a executar só; um corpo legislativo só, a legislar só; - eis aqui a minha monarquia, eis aqui o meu governo representativo.

 

Biografia      Baptismo e morte      1º Centenário do nascimento

1º Centenário da morte      Iconografia      Discursos

 

HJCO

Página anterior     Índice     Página seguinte

Dez.2000